Psiu!
— 1 —
Fátima olhou para o menino
brincando debaixo da mangueira.
— Ele parece estar crescendo,
mas é tão indefeso, pensou em voz alta.
Fátima voltou seus pensamentos
para uns meses atrás, para o dia em que encontraram o garoto agachadinho na
beira de uma estrada, apavorado e sujo, cara de bobo e olhar vazio.
A caravana estava indo para
Araraquara fazer um show no aniversário da cidade.
— É mês de folclore, dissera Paco. Vamos apresentar “A festa do
bumba-meu-boi”.
Ela fora contra:
— Não! Esta peça é a mais chata que você escreveu. Uma saqueira!
— Mas é uma comédia, contestara Paco. Dia de festa é dia de comédia, dia
de rir, de alegria total.
— Mas é chata, um horror, ela teimara.
Os outros integrantes do grupo não haviam dado palpite.
— Vocês não acham? Ela pedira o apoio deles.
— Acho sim, respondera Nanete timidamente, ela era sempre uma
maria-vai-com-as-outras.
Júlio não havia aberto a boca,
como sempre caladão e na dele.
Haviam rodado pela estrada
discutindo as peças do repertório, ela e Paco, sem chegare a nenhuma conclusão,
ele sempre teimoso e querendo fazer valer sua opinião, até que pararam num
espaço largo do acostamento, uma área de lazer com água potável.
Fátima se lembrava muito bem
disso porque, quando todos desceram para beber água e dar uma esticada nas
pernas, el ficara rodeando o caminhão novinho em folha, admirando a pintura
vermelha, chocando cada pedaço dele com os olhos, toda orgulhosa. Era lindo,
enorme e reluzente, o lar e o local de trabalho deles, enormes leras douradas
faiscando e anunciando: “CARAVANA PIRILAMPO” em cima, TEATRO AMBULANTE mais
abaixo.
Os componentes haviam se
dirigido para a bica d´água, mas Fátima ficara ali, pensando no quanto tivera
de trabalhar para que conseguissem compra-lo.
Se ela não tivesse feito isso
não teria encontrado Psiu. Ele estava lá, sentado no chão, todo encolhido, um
enorme chapéu na cabeça, quase invisível no meio de tanta roupa enrolada n
corpinho magrela. Mais parecia um monte de trapos sujos e velhos do que uma
criança, e estava assustado como um coelho.
— Gente, venham ver o que eu
achei, havia gritado espantada.
A criança havia procurado
fugir, mas ela, muito esperta, agarrara os bracinhos dela, prendendo-a
firmemente.
— Não vá embora! Onde estão
seus pais?
Os outros haviam se aproximado.
— Ora vejam só! Acho que está
perdida, dissera Paco. Vamos recolhê-la e entregá-la para a polícia na próxima
cidade.
— Como é o seu nome?
Perguntaram.
Os olhos do coitadinho haviam
se enchido de lágrimas e como o dedo preto de sujeira colocado em cima da boca
fechada só dissera:
— Psiu! Psiu!
Nanete tinha falado baixinho:
— Não tenha medo. A gente é
amiga. Pode dizer o seu nome.
— Psiu! Psiu! Respondera a
criança como que pedindo silêncio.
O nome dele ficara sendo Psiu.
Todos haviam, achado esse, um bom nome, como outro nome qualquer.
Fátima também se lembrava como
ele estava sujo e fedia a gambá. Também se lembrava como fora fácil à decisão
de não entrega-lo à polícia. Psiu ficara com eles como mascote da caravana. Era
uma criança muito estranha, muito quieta, sempre pedindo silêncio com um psiu,
como se estivesse com medo. Mas falava, não sabia quem era, não sabia de sua
família nem de onde viera. Tinha no máximo uns dez anos, parecia não saber ler,
vivia acocorado nos cantos com ar de bichinho assustado, ensimesmado e
tristonho, mesmo com todo o amor que recebia dos quatro atores ambulantes.
Paco chegou da cidade e entro
no acampamento da caravana. Vinha com uma mocinha magrela, de cabelos lisos.
— Esta é Coralice. É assim
pequena mas já é maior. Deixou o Circo Irmãos Coragem e vai trabalhar com a
gente. Já fiz um teste com ela. Acho que ela tem futuro.
— Que bom, disse Fátima.
Poderemos ampliar o nosso repertório com mais uma atriz.
— Arranjo um lugar na barraca
para ela. Só que vai ficar um pouco apertado para viajar, disse Paco.
— Não faz mal, retrucava
Fátima.
Paco, o chefe, também
resolveu:
— Vamos começar a por o Psiu
em cima do palco. Assim podemos encenar uma peça com crianças.
Fátima, mulher de Paco, às
vezes concordava com ele:
— É uma boa. O público sempre
gosta.
Psiu começou a trabalhar com o
grupo junto com a magrela Coralice.
No dia seguinte começaram a
ensaiar “O velho avarento” escrito, dirigido e encenado por Paco, que fazia
também o papel do velho pão duro, mudou até a voz e o jeito de andar para
parecer idoso. Psiu, que parecia mudo, só não era porque falava quando
precisava não iria dizer uma palavra. Fazia o papel de um menino, neto do velho
avarento e ficava brincando com um carrinho de plástico num canto do palco
durante a última cena. Quando ele quebrava um prato (nos ensaios o prato também
era de plástico) que ficava em cima da mesa, o velho batia nele com uma
bengala, gritando:
— Desastrado! Prato custa
dinheiro!
Aí, Psiu saia correndo do
palco e a cena continuava sem ele, com outro ator entrando para brigar com o
velho.
Paco explicou para Psiu o que
ele precisava fazer, como se fosse uma brincadeira e os ensaios até que foram
bem, ninguém caracterizado, era Paco mesmo que fingia bater no menino e que
gritava com ele. Depois abraçava-o e dizia:
— É tudo mentirinha, só para
fingir tá?
Quando o ensaio geral ficou
bom, levantaram acampamento e rodaram para uma cidade para levar a peça e
faturar algum dinheiro. Vestiram uma roupa velha em Psiu e Paco se disfarçou de
velho, peruca branca e barba branca de Papai Noel. Virou um perfeito velho,
parecia de verdade.
Quando as luzes se acenderam a
peça começou. Psiu nem ficou com medo de ver tanta gente olhado para ele, ficou
a ele, brincando com o carrinho de plástico no canto do palco. Também não ficou
com medo de ver tantas luzes em cima dele. Parecia até que estava gostando da
brincadeira. Continuou no seu lugar, do jeito que fazia nos ensaios, sem se
incomodar com a conversarada no palco atrás dele. Quando ouviu a sua deixa, se
levantou em direção da mesa, esbarrou nela, direitinho, o prato despencou —
agora era um prato preparado para partir em dois quando batesse na madeira do
chão —, e virou dois cacos, só então ele percebeu que não era seu amigo, Paco
que estava ali, fingindo de bravo, era um velho mesmo, com uma ameaçadora
bengala, gritando as mesmas palavras:
— Desastrado! Prato custa
dinheiro!
Psiu não saiu correndo do
palco como nos ensaios. Mergulhou num túnel escuro, comprido, foi girando
dentro dele de cabeça para baixo, rodopiando até chegar numa porta que se abriu
subitamente, deixando uma luz forte e brilhante iluminar a escuridão. Então
naquela luz apareceu a figura de um velho de barbas que sorria para ele.
Começou a chorar e a gritar.
— É mentira! É mentira! meu
avô era bom! Ele era meu amigo, não era esse velho malvado.
Precisaram tirar Psiu do palco
para que ele saísse do túnel escuro. O público nem percebeu que ele havia
entrado no túnel e encontrado seu avô. Achou que tudo aquilo fazia parte do
enredo.
Fátima abraçou o pequeno:
— Quieto, querido, não precisa
chorar. Você falou sobre seu avô, você conseguiu se lembrar de alguém de sua
família?
Mas o espetáculo continuar em
cima do caminhão e o garoto correu para chorar sozinho dentro da cabine Só
quando todos acabaram o trabalho é que foram procurar o pobrezinho.
— Não assustem o garoto, pediu
Fátima abraçando-o com carinho.
— Conta pra gente conta Psiu,
como se chama ele, quem era seu avô? Onde morava? Conta Psiu.
— Chamava vovô, soluçou ele.
Era bonzinho, fazia carrinho de rolemã para mim, nunca me bateu.
— Onde ele mora Psiu?
Ele apontou para cima:
— No céu. Ele está morando lá.
Conta mais Psiu, pediram.
— Ele estava lá na porta, no
meio da luz, no fim do túnel escuro.
Depois desse dia, Psiu começou
a falar do avô. Falava mais vezes ficou menos calado e ensimesmado, parecia até
mais alegre. Sua memória abriu um compartimento especial onde morava seu velho
avô e todas suas boas lembranças. Mas foi só este compartimento que se abriu.
Psiu não se lembrava de mais nada. Só de seu avô.
— 2 —
—
Nanete começou a ensinar Psiu a ler e a escrever Comprou uma cartilha e um
caderno para ele. Júlio ensinava o menino a fazer contas. Psiu aprendia tão
depressa que parecia que já sabia tudo aquilo, que estava apenas recordando as
lições.
—
Ele não é nada bobo, comentou Júlio. Eu acho que ele já sabe essas coisas mas
esqueceu tudo.
Fátima
ensinava geografia. Não que ela soubesse geografia. Ela aprendia junto com ele
num atlas e num livro, ia lendo para ele e mostrando as cidades e os rios, as
montanhas e os mares nos mapas. Coralice contava a história do mundo para ele,
pedaços que ela se lembrava de ter estudado. Era uma história aos pedacinhos
porque Coraline não tinha sido uma boa aluna e colocava o Napoleão Bonaparte na
Guerra da Independência dos Estados Unidos e D. Pedro I em Araçatuba, dono da
cidade e de um tal do dia do Fico.
Todos
estavam entusiasmados com o progresso do menino, rápido demais e se achavam
responsáveis por sua educação. Cuidavam dele o melhor que podiam enquanto
viajavam pelo país levando ao povo a arte do palco através das peças escritas
por Paco.
Mesmo
no palco Psiu já conseguia trabalhar melhor, chegando mesmo a dizer algumas
falas com muita segurança. Ele era menino, menina anjinho e capetinha, usava
peruca de cachinhos, asinhas ou rabinho, tudo de acordo com os textos de Paco,
ensaiado por Coralice.
Paco estava com uma peça nova, saída do
forno "O violão de estimação", que só precisava ser aprovada pela
censura. Muitas vezes a censura era um delegado de polícia que lia a peça e
dava um alvará de apresentação.
— Não vejo a hora de acabar esta nojeira de
governo para agente poder dirigir uma peça melhor, mais autêntica, mais dentro
da realidade do povo, desabafou Paco.
— Fátima entrou na conversa e ia dizendo:
— No tempo em que a gente trabalhava no
circo, lembra-se Paco, a gente nem precisava escrever peça, só escrevia se
quisesse. A gente encenava cada farsa tão boa! Hoje eles cortaram tudo...
— Mutilam os textos, às vezes o enredo nem tem
sentido quando passa pelas mãos deles, comentou Nanete.
— Coralice perguntou:
— Os seus também Paco?
— Não, eu já escrevo pra censura nenhuma
botar defeito, sou macaco velho e curtido. Minhas peças são aprovadas na
íntegra, mas vocês sabem, são testemunhas vivas que eu não faço lavagem
cerebral no povão, Deus que me livre desta tarefa nojenta.
— Um dia não teremos mais isto, suspirou
Fátima. Parece incrível que isto ainda existe em 1977.
— Acho que vai demorar muito, lamentou
Paco. Tenho uma vontade louca, uma vontade me roendo aqui dentro de fazer uma
peça sobre um ditador, e vou escrever, será a primeira a ser feita quando tudo
mudar, isto eu prometo.
Eles gostavam muito de conversar à noite,
enquanto jantavam e esperavam a hora de dormir. Relembravam os velhos tempos,
relembravam a vida do circo onde haviam trabalhado juntos, falavam sobre o
teatro que algum dia teriam numa grande cidade, sobre o novo caminhão, sobre
assuntos que gostariam de representar, peças que gostariam de fazer, personagens
que queriam ser. Paco contou-lhes que a nova peça tinha como personagem principal
um violão.
-— Vamos precisar cantar? Perguntou
Coralice. Minha voz é horrível, sou desafinada e se meu personagem precisar
cantar, não sei não.
— Só a Fátima e o Júlio vão cantar,
respondeu Paco. A Fátima até que é afinada e canta direitinho, me cantou até
pra casar com ela.
Todos riram da Fátima que falou:
— É, mas só sei canções antigas, do tempo
da minha mãe e não sei tocar violão. O Júlio toca bem.
— Toca Júlio, toca. Toca um pouco pra
Fátima cantar, pediram.
Júlio não se faz de rogado!
— Mas só se Fátima cantar, disse pegando
seu violão.
— Tá bom. V á lá. Não sei se vocês vão
gostar. É uma canção antiga.
O violão foi dedilhado com maestria, o som
encheu a noite e Fátima começou, entrando certinho no tom, até parecia que
tinham ensaiado antes.
"Era o meu lindo jangadeiro
Dos olhos verdes da cor do mar."
Ela cantava suavemente, Júlio também
acompanhando certinho. Psiu foi se aproximando, os olhos arregalados, atraído
pelo som. Então ele entrou no túnel escuro mais uma vez, mergulhou dentro dele
e foi rodando rodopiando, solto no ar, até chegar no fim, na luz onde ele
estava deitado num quarto, numa cama quentinha e macia e um vulto de mulher,
ele não podia ver bem quem era, cantava pra ele a mesma melodia.
— Para! Para! Não! Não! Gritou saindo do
túnel para o colo de Nanete.
Todos ficaram em silêncio.
— Porque Psiu? Perguntou Fátima.
Psiu começou a chorar:
— Eu entrei no túnel escuro outra vez. E eu
estava lá, eu mesmo. Era eu, deitado na minha cama e ela cantando pra mim. Ele
cantava isso aí pra eu dormir, cantava esta música.
— Ela quem, Psiu, conta pra gente quem era
ela, pediu Fátima.
— Não sei, só sei que ela gostava de mim e
cantava isso aí pra eu dormir. Não sei, não sei.
Fátima abraço o menino carinhosamente,
tirando dos braços de Nanete.
— Deixa pra lá, deixa estar, agora eu canto
esta música pra você dormir, tá? Assim você poderá se lembrar dela.
Depois desta noite Psiu começou a namorar o
violão. Sentava-se em frente dele e ficava com os olhos grudados ali, até
parecia que o pinho guardava a canção dentro de sua caixa.
Fátima comentou com os amigos
— Alguém, acho que a mãe dele, tocava
violão e cantava pra ele. Um dia ele vai se lembrar e vai poder viver melhor.
— 3 —
Depois
que "O violão de estimação" foi encenado com muito sucesso, contando
a história de uma boia fria que virou cantadora famosa no mundo do disco, a
Fátima cantando sem desafinar, fizeram mais duas peças, duas comédias muito
engraçadas lá pelas bandas de Goiás. Então Paco começou a ensaiar
"Carmem", que não tinha sido escrita por ele mas tinha a aprovação da
Censura Federal. Eles iriam para a festa do peão boiadeiro de Barretos, como
iam todos os anos como contratados pelos organizadores da feira, deixando Goiás
para trás e entrando no Estado de São Paulo. Paco rodava o caminhão pela
estrada. Precisava chegar antes do evento para contratar alguns extras para o
papel de soldado.
— Acho
que deveríamos encenar algo mais alegre, uma farsa, afinal é dia de festa e
você sempre falou que drama não é para festa, opinou Júlio.
Mas Paco,
que resolvia tudo como chefe da caravana, decidiu:
— Mudei
de ideia. Quem tem cabeça tem direito de mudar de opinião. Há muito tempo não
encenamos um bom drama e acho que é a ocasião certa. Se não houver
receptividade, não der certo, o público levantar e sair, estas coisas que podem
acontecer, entraremos com “A Deusa assanhada” ou “O rabo do diabo” que já estão
na ponta da língua e não precisa e ensaio.
— Vai dar
um trabalhão, disse Fátima. Você tem que mandar fazer até fardas para os
soldados, a gente não tem isto no guarda-roupa.
— Não faz
mal, teimou Paco. Vamos encenar “Carmem”.
Chegaram
bem antes da feira. Paco arrumou os extras, mandou confeccionar os uniformes,
gastou dinheiro (que não estava sobrando, muito pelo contrário), ensaiou o grupo.
Os ensaios foram acelerados à medida que se aproximava o dia da inauguração.
Psiu adorou o movimento, ficou zanzando livre pelo recinto da feira, vendo a
montagem das barracas, do parque de diversões, prestando atenção no vai e vem
do pessoal engajado na preparação dos festejos. Quando a festa foi inaugurada
ele adorou os rodeios, os cantores regionais, as pessoas bonitas andando de um
lado para o outro. Era a primeira vez que participava de festejos tão bonitos e
alegres. À noite, quando a história de "Carmem" estava acontecendo em
cima do caminhão, ele ficava admirando as luzes da roda gigante, os carros da
montanha russa.
Paco
reclamou:
— Psiu
nem viu os ensaios. Ele faz parte da caravana e precisa conhecer todas as montagens,
mesmo que não participe do elenco.
Psiu foi
intimado a ficar atrás dos bastidores, um cenário muito bonito, num ponto em
que poderia observar o que se passava no palco. Quando os soldados entraram no
palco para prender o personagem principal, Psiu mergulhou mais uma vez no túnel
negro.
Rodopiou,
rodopiou e entrando cada vez mais no fundo, sem saber o que iria encontrar quando
enxergasse a luz brilhante no fim dele. Lá no fundo na luz muito clara seu pai estava
nítido. Não sorria pra ele como seu avô, o havia feito, apenas olhava na
direção dele com um ar de tristeza e sofrimento estampados no roso barbado. De
repente no meio da claridade soldados apareceram como num passe de mágica,
comandados por um homem pequeno e corpulento. Psiu. viu seu pai espancado,
surrado elevado para fora da claridade.
O homem corpulento
gritava:
— Terrorista!
Terrorista!
— Não
levem meu pai, por favor! Ele não é terrorista!
Os gritos
de Psiu foram socorridos por Coralice que estava por perto e tinha acabado de
sair de cena.
— Ele é
bom! Não botam no meu pai!
— Calma,
baixinho, sussurrou ela, calma Psiu.
Ele
voltou do túnel num piscar de olhos, chorando nos braços de Coralice, que o abraçava
com força, com medo de ele entrar no palco e arruinar o espetáculo.
A
apresentação terminou a Fátima recolheu Psiu nos braços.
— Conta
pra gente Psiu, conta o que você sabe. Nós somos seus amigos. Pode confiar em
nós.
No meio
das lágrimas Psiu falou:
— Meu pai
foi preso. Os soldados entraram, bateram nele. Eu vi meu pai gritando. Sangue,
saiu sangue dele!
— Calma,
meu filho, disse Paco. Não fale, só responda as perguntas, tá?
— Tá,
concordou soluçando.
— Como
era seu pai, você se lembra?
— Grande
forte e bom. Eu gostava dele.
— Você se
lembra qual o nome dele? Faça força, precisa lembrar garoto.
— Lembro.
Dr. Carlos Braga.
— Você se
lembra porque ele foi preso?
Psiu
começou a chorar de novo.
— Ele não
fez nada. Ele era bom, não era bandido.
— Tudo
bem, garoto, tudo bem, disse Paco. Você se lembra como tudo aconteceu. Consegue
fazer isso Psiu?
— Consigo.
Minha mãe levou agente pra cozinhar...
— A gente
Psiu? Você e quem mais?
— Não
sei... a gente... lembrou a gente pra cozinha e fez psiu pra gente ficar quietinho
lá. Acho que era minha mãe, eu não consigo me lembrar dela. Eu fiquei olhando o
que acontecia na sala por um pedacinho da porta que não estava bem fechada.
Bateram nele, os soldados, o homem mandou e gritava terrorista, comunista,
sub... sub... não me lembro...
— Será
subversivo? Era essa a palavra? Perguntou Fátima.
— Acho
que era isso, não me lembro, nem sei o que é. O homem baixo gordo era um
mandão. Mandava gritando e os outros faziam. Eu fiquei lá não ajudei meu pai...
— Você
não poderia fazer nada. É apenas um menino. E sua mãe?
— Não me
lembro. Só me lembro disso que eu contei.
Psiu não
chorava mais, parecia muito cansado.
— Vou
levar o coitadinho pra cama. Foi demais pra ele, disse Fátima.
— Dá um
copo de água com açúcar pra ele, disse Paco.
— Não,
disse Fátima. Beber água na hora de dormir é xixi na cama na certa. Vou cantar
pra ele... até ele dormir..
— 4 —
Agora os
integrantes da caravana sabiam o que tinha acontecido à família de Psiu, o nome
do pai dele, alguém para procurar. Era um nome muito comum, mas um dia topariam
com a família Braga do Psiu.
Depois da festa do peão boiadeiro a
caravana seguiu pra Minas Gerais para cumprir alguns compromissos, viajando
durante mais de três meses pelo triângulo mineiro. Depois foram para o sertão
do Mato Grosso do Norte. Psiu continuava seus estudos com seus amigos, estudos
meio estropiados, mas com professores de muito boa vontade. Estava mais falante,
mas andava tristonho. Todos estavam muito preocupados com ele.
— Acho que devemos arranjar um psicólogo
pra ele, disse Nanete.
— Como pode falar isto, menina? Disse Paco.
Nós viajamos como ciganos, não paramos em lugar nenhum.
— É, bobagem minha, concordou Nanete.
— Acho que se ele se lembrar da mãe tudo se
resolve. Já li uma peça teatral, há muito tempo com esse tema, um enredo até
bem interessante, disse Paco.
— Mais dia, menos dia ele vai se recordar
dela e de tudo, disse Júlio.
Fátima opinou:
— Porque você não escreve uma peça de
fantasma?
— De fantasma? Qual é a ideia? Perguntaram
curiosos.
— Eu acho que, se houver o fantasma de uma
mulher que aparece para uma criança ele
poderá se lembrar da mãe, dizer que ela não morreu, etecetera e tal, coisas
assim.
— Será? Perguntaram.
— E não vale a pena tentar? Ele sempre se
lembra do passado pelas peças, né?
— É, você até que tem razão, disse Paco. Vou
escrever uma peça especialmente para ele, com tudo o que se passou, com avô
velho de barba branca, música de violão que ele ouvia pra dormir, pai sendo
preso e mãe aparecendo, como se fosse a vidinha dele, isso é aquilo que nós
sabemos da vidinha dele com a família.
Paco começou no dia seguinte e, em uma
semana, a história estava pronta. Era mesmo uma mistura completa. Tinha avô,
tinha "era o meu lindo jangadeiro", tinha soldado prendendo homem,
tinha terrorista, tinha também um fantasma de mulher que aparecia para uma
criança.
A oficina começou depois que Psiu foi pra
cama. O grupo se reuniu pra ouvir e ler a peça. Paco, como autor, foi o leitor
enquanto os outros prestavam atenção. Ele tinha feito um milagre, era uma
história muito engraçada mesmo, uma miscelânea de vários assuntos misturados.
Cada autor iria fazer mais de um papel, entrando e saindo de cena trocando de roupa
e peruca, trocando de maquilagem, tudo muito rápido, exigindo muito deles.
— Psiu não poderá ver os ensaios, disse
Paco. Pelo menos não poderá ver o pedaço do fantasma. O papel dele é pequeno e
vai ser ensaiado à parte. Só vai participar do conjunto no dia da estreia. Nem
no ensaio final ele poderá aparecer. A Coralice vai fazer o favor de ficar fora
e tomar conta dele. Vai ensaiar o menino, tá?
— Tudo bem, concordou. Eu já sei. Na hora
da verdade eu vou agir. Oriento o menino.
Os planos foram seguidos ao pé da letra, Tim-Tim
por Tim-Tim, todos com esperança de ver a vida de Psiu esclarecida. Paco não
submeteu sua peça à D. Censura. Sabia que se o fizesse iria ferir os
sentimentos dos poderosos e não iria ser aprovada.
— Vamos nos arriscar, disse Paco. Os
soldados vão bater pra valer no homem e vão chamá-lo de terrorista e subversivo.
— Não vai ficar mal? E muito perigoso!
— Poderemos ser presos.
— Por isso vamos levar a peça num lugar bem
pequeno onde nem as pessoas percebam. Com gente muito simples mesmo na plateia.
Numa currutela onde não haja delegacia e delegado, cadeia e soldado.
Paco já tinha tudo na cabeça, todos os
planos feitos para a armadilha que iriam armar para Psiu. Seus cúmplices
aprovaram tudo.
— 5 —
A caravana chegou no pequeno arraial de uma
rua só. Foi uma festa, a rua repleta de gente que corria atrás do caminhão
pensando que ele estava só de passagem. Quando pararam no campinho de futebol
do vilarejo, todos desceram e foi um aplauso geral, um grande viva estourou no
ar. Paco pediu silêncio com as mãos e grito:
— Hoje à noite, as oito em ponto tem
espetáculo de graça. Compareçam todos com suas cadeiras.
— Viva a caravana Pirilampo! Gritou o povo
feliz, mal acreditando no que estava acontecendo.
Já a sete horas havia gente sentada, gente
esperta que quer colocar suas cadeiras bem perto e não perder nada, nem um
gesto, nem uma fala. Velhos, jovens, crianças, lá estava toda a aldeia quando o
caminhão acendeu as luzes com a eletricidade roubada de um .poste da
vizinhança. O palco ficou iluminado, o cenário colorido esperando os atores, um
oh! Saindo de todas as bocas, a admiração brilhando nos olhos das crianças e
dos adultos.
As oito em ponto o espetáculo começou. Psiu
pronto para entrar em cena ao lado de Coralice viu as cenas com o velho, viu
Fátima cantar ao violão, riu com as palhaçadas do texto, riu com a correria dos
atores que trocavam de perucas, roupas e maquilagem num piscar de olhos, riu
com o público que se sacudia nas cadeiras.
Na hora de entrar em cena Coralice o
empurrou.
Psiu entrou no palco devagarinho, pé ante
pé, sozinho. As luzes diminuíram mas ele nem ligou. Tinha apenas que gritar umas
poucas palavras de acordo com o texto:
— Minha mãe está escondida. Está brincando
comigo. Vou chamá-la de novo. Mamãe! Mamãe!
Ele teria que fechar os olhos, contar até
dez, abrir os olhos no cinco e sair do palco no dez, dizendo:
— Desisto, vou embora.
O público levou um baita susto, a plateia
se encolheu vendo Nanete, toda maquiada de azul, a peruca esvoaçando, soprada
por um ventilador escondido, pairando no ar e envolta em um filé fantasmagórico.
Quando Psiu abriu os olhos só viu afigura de Nanete quase em cima dele,
dizendo:
— Você está me procurando, meu filho?
Psiu não disse sua fala e não saiu do
palco. O túnel abriu sua boca escura e o devorou, e lá dentro dele ele ia
passando por portas que se abriram, uma porta, outra, outra e outra, ele rodopiando
e depois de todas as portas lá longe, a última toda iluminada com a figura de
uma mulher caída no chão, o rosto voltado para ele, olhos fechados e muito
pálida. De repente o túnel sumiu, a figura sumiu a porta sumiu.
— Mataram minha mãe! Levaram meu pai e
mataram minha mãe! Gritou desesperado. Meus irmãos estão esperando por mim na
cozinha, lá na minha casa.
Coralice entrou no palco e tirou o menino de
lá. O espetáculo continuou com ofantasma aprontando, a plateia rindo e se
recuperando do susto. Coralice levou Psiu em prantos para a cabine do caminhão
e ficou com ele nos braços, esperando pelos companheiros. As luzes foram se
apagando, o público foi para casa feliz. Paco, Júlio, Fátima e Nanete cansados,
correram para ele. Fátima o abraçou:
— Agora você sabe tudo, querido. Nós também
sabemos.
— Ela caiu no chão, soluçou Psiu, bateram
nela até ela cair, Acho que ela morreu.
— Ela pode não estar morta, querido. Pode
ter caído desmaiado. O que você fez quando viu sua mãe caída no chão? Perguntou
Fátima.
— Saí da casa, larguei meus irmãos na
cozinha, saí correndo, correndo, esqueci que meu nome era Bruno. Fiquei
andando, andando até vocês me acharem. Eu deixei meus irmãos sozinhos, minha
mãe caída no chão, não sei porque, soluçou.
Porque ficou assustado, só por isso. E
fugiu. Eu teria feito a mesma coisa, disse Nanete.
— E apagou tudo na sua cabeça porque o que
você viu foi muito feio, disse Júlio.
Psiu ficou tremendo, nos braços de Fátima.
Estavam todos emocionados.
— Paco, você é um gemo, disse Coraline e
todos concordaram com ela.
Fátima beijou o menino e disse:
— Calma, Psiu. Você vai contar pra nós
sobre sua família, aos poucos, não precisa ser agora.
— É isso aí, garotão, falou Paco. Agora
você sabe que tem um nome e uma família. Tem um pai, e uma mãe que deve estar
viva, tem irmãos. Nós vamos achá-los juntos, disse Paco.
Júlio continuou:
— E um dia não vai mais haver repressão,
todos vão pensar o que quiser, não vai haver censura, todo mundo vai poder
falar o que pensa. Um mundo de coisas feias que estão acontecendo na nossa
terra vai ter um fim. Haverá liberdade para todos, prisão só para criminosos,
gente limpa e de cabeça governando e todos poderão estar juntos novamente.
— Pode acreditar nisso, garoto, disse Paco.
Vou escrever a sua história e fazer uma peça muito bonita depois que tudo
terminar e a liberdade chegar. Nós temos esperança.
São Paulo, 1977