— Pô Milinha, estou
cansada de ser menina. Vida de mulher não é mole. Vou virar menino.
— Credo Julinha, como é
que você via fazer isso?
Deixa para mim, Agora
vou dormir e amanhã eu resolvo.
Pois é. Julinha estava
decidida a mudar de lado. Virou a cara para a parede e fechou os olhos. Mas
Milinha não conseguiu dormir logo. Ficou pensando, pensando.
— Essa minha irmã é
maluca mesmo. Tá sempre fazendo coisas diferentes. Será que ela vai virar
menino mesmo?
No dia seguinte, um
domingo de muito sol, quando as duas se levantaram, Milinha logo perguntou:
— E daí, Jú, vai virar
menino ou não?
— Vou. Já comecei.
— Não estou vendo nada.
Você tá do mesmo jeito.
Julinha pegou uma
tesoura e cortou rente seus cachinhos.
— Que horror! Gritou Milinha.
Você ficou um bicho!
— Meninos não precisam
ser bonitos. Só meninas.
— Escuta Jú, conta para
mim. Por que você quer ser menino? Pois eu estou muito contente de ser menina.
— Não seja boba. A vida
deles é mais gostosa. A única obrigação é estudar. Veja o Zeca e o Tiago. Vão
chegando da escola, tirando os sapatos no meio da sala, jogando a mala de
qualquer jeito. Quem é que vai catar? Quem a mamãe manda guardar?
— É. Nós.
— Eles ajudam a mamãe?
Não, só brincam. Cada brincadeira divertida...
— É mesmo.
— Pois é. Por esses
motivos e outros mais, virei menino. Pode até me considerar um moleque.
Milinha e Julina
desceram as escadas para o café da manhã. Dona Íris já estava na cozinha.
— Ah! Que bom que vocês
já levantaram. Bom dia meninas!
— Bom dia mamãe.
— Julinha, você ponha a
mesa e Emilinha, você venha me ajudar. Julinha, o que você fez com o cabelo.
Que horror!
Julinha respondeu:
— Eu virei menino. De
hoje em diante só brinco e faço bagunça.
— Que besteira é essa? Amanhã
vou levar você no salão para acertar esse cabelo. Que pena! Seus lindos
cachinhos...
— Vou brincar,
respondeu Julinha.
— Não vai não, vamos
arrumar a mesa.
Julinha não atendeu a
mãe. Sumiu pela porta do quintal com um pedaço de pão com manteiga na mão. Ah! Que
vida voa iria ter!
Dona Íris foi atrás:
— Volte aqui menina.
Que será que deu nela?
Julinha passou aquela
manhã de domingo brincando, longe de casa. Jogou bola, subiu em árvores, brigou
e até falou um bocado de nomes feios, a danada.
Na hora do almoço, com
a barriga roncando de fome, voltou para casa. Dona Íris estava furiosa com ela:
— Onde você esteve
menina? O Zeca e o Tiago andaram atrás de você. Não arrumou as camas. Sumiu. Você
está precisando de um castigo.
— Ora, mamãe, nada
demais. Estive brincando na rua, do outro lado da praça.
Os irmãos olharam para
ela e Zeca, o mais velho falou:
— Não quero minha irmã
na rua. Vai ficar na boca da molecada. Depois sou eu que tenho de meter o braço
neles.
— Isso mesmo, disse
dona Íris, lugar de mulher é em casa. Onde já se viu menina brincando na rua?
Desta vez não contei pro seu pai. As não repita.
— Ora, não me amolem
vocês. Agora sou menino, não sacaram ainda?
Zeca e Tiago desataram
a rir. Riram tanto que ficaram até com dor de barriga.
Mas Julinha nem ligou:
— Que é que há, ó meu, sou
palhaço agora? E virou as costas e subiu as escadas. Quando desceu, Milinha
estava ajudando dona Íris a terminar o almoço de domingo, Tiago e Zeca,
sentados ao lado de seu Batista, assistiam o fim de uma corrida de automóvel.
— É, pensou, vou ficar
homem mesmo para o resto da minha vida que não sou boba e fiar mulher.
Depois do almoço, onde
todos caçoaram dos cabelos dela e ela aguentou calada, dona Íris falou
seriamente:
Julinha, você via arrumar
a cozinha sozinha, já que não ajudou em nada de manhã. E nada de desculpas.
— Não, virei homem.
HOMEM. Olhem para mim, não estão vendo?
E saiu para a rua outra
vez, deixando os pais boquiabertos.
— Zeca, Tiago, vão atrás,
vigiem sua irmã.
Julinha saiu pela rua
chutando todas as pedras, latas e tampinhas que encontrou pelo caminho. Achou
até bom os irmãos irem junto com ela. Foram até o córrego que passava no fim da
rua e brincaram a tarde inteira.
— Sabe mana, até que
você é legal para brincar, falou Zeca.
— Brincar aqui é
gostoso.
— É, mas não vem com
essa de ser homem não.
— Não enche o saco e
muda o disco, respondeu Julinha.
Depois de uma semana,
dona Íris e seu Batista já estavam preocupados. Julinha mal fazia suas lições,
brincava de dar socos, não ajudava na casa e nem mesmo arrumava a sua própria
cama. Além do mais, virou uma bagunceira de primeira. Quando saia do banho,
deixava tudo inundado, como se um vendava tivesse passado no banheiro. Jogava
futebol na posição de goleiro, empinava pipa e duas reclamações por comportamento
chegaram em casa. Não pegou mais nas suas bonecas, só vestia jeans e camiseta e
brigava na rua.
— Batista, precisamos
levar Julinha num psicólogo, disse dona Íris. Estou muito preocupada com o
comportamento dela.
— Deixa que eu vou ter
uma conversa com ela primeiro.
— Não vai adiantar
nada. Já gastei minha saliva tentando explicar para ela como as coisas devem
realmente ser. Ela não ouve, não obedece.
Seu Batista chamou
Julinha no quarto dele, para uma conversa.
— Minha filha, sua
atitude não está correta. Você está preocupando muito a mamãe e a mim também.
— Tá tudo bem, pai.
Estou fazendo tudo certinho como os meninos fazem. Sou um garoto legal agora, e
vou crescer e ser homem.
— Julinha, você é
mulher, nasceu uma menina, e é uma filha muito querida.
— Mas virei menino pai.
Não quero ter a vida de mulher. É uma barra papai.
— Julinha, os homens
trabalham fora de casa para ganhar dinheiro e manter a casa.
— É nada, o Zeca e o
Tiago não ganham dinheiro. Só brincam.
— Mas vão fazer tudo o
que eu faço quando crescerem.
— Mas a mãe trabalho.
Dá aula. E uma porção de mães também ganham dinheiro. E a mamãe cuida de tudo aqui
em casa, não cuida?
— Mas é mulher, dona de
casa.
— Por isso eu sou
menino e vou ser homem. É mais legal, maior moleza.
Seu Batista desistiu.
Falou com dona Íris:
— É melhor procurar um
psicólogo para ela.
Mas, nem psicólogo deu
jeito na teimosia de Julinha. Foi jogar dinheiro fora. Ela estava, cada dia que
passava, mais convencida de que era um menino.
Quem resolveu o
problema foi dona Íris. Convocou a=toda a família para uma reunião depois do
jantar.
— Quero falar com vocês
todos. Estou entendendo a Julinha e tenho uma proposta a fazer.
— Que proposta? Perguntou
seu Batista.
— Primeiro quero dizer
que eu e o papai trabalhamos para manter nossa casa. Vocês, crianças, estudam.
O trabalho das crianças é estudar. Respondam se estou certa?
— Está, todos
responderam.
Pois bem, de hoje em
diante, todos nós vamos ter nossos trabalhos fora de casa e tarefas aqui dentro
de casa, sejam homens ou mulheres.
— Pera aí, mamãe, essa
não, gritaram Zeca e Tiago.
— Que ideia mais maluca
Íris? Protestou seu Batista.
— Pois é isso mesmo.
Cada um de nós vai participar das obrigações daqui da casa. Se não concordarem
comigo, também vou virar homem — e a Milinha também — e quero ver quem cuida de
suas roupas e quem vai fazer a comidinha gostosa que vocês comem todos os dias.
É claro que tudo isso
deu muita discussão mas foi assim que dona Íris resolveu o problema de Julinha
e os de sua casa também.
Todos ajudavam, tanto
os meninos quanto as meninas, pois todos eram donos da casa e usufruíam as
coisas boas de um lar.
E Julinha virou menina
outra vez, voltou a ter seus cachinhos e brincar com suas bonecas, por que,
afinal de contas, ninguém é de ferro.