domingo, 23 de dezembro de 2012

Conto: Menino? Menina?



— Pô Milinha, estou cansada de ser menina. Vida de mulher não é mole. Vou virar menino.

— Credo Julinha, como é que você via fazer isso?

Deixa para mim, Agora vou dormir e amanhã eu resolvo.

Pois é. Julinha estava decidida a mudar de lado. Virou a cara para a parede e fechou os olhos. Mas Milinha não conseguiu dormir logo. Ficou pensando, pensando.

— Essa minha irmã é maluca mesmo. Tá sempre fazendo coisas diferentes. Será que ela vai virar menino mesmo?

No dia seguinte, um domingo de muito sol, quando as duas se levantaram, Milinha logo perguntou:

— E daí, Jú, vai virar menino ou não?

— Vou. Já comecei.

— Não estou vendo nada. Você tá do mesmo jeito.

Julinha pegou uma tesoura e cortou rente seus cachinhos.

— Que horror! Gritou Milinha. Você ficou um bicho!

— Meninos não precisam ser bonitos. Só meninas.

— Escuta Jú, conta para mim. Por que você quer ser menino? Pois eu estou muito contente de ser menina.

— Não seja boba. A vida deles é mais gostosa. A única obrigação é estudar. Veja o Zeca e o Tiago. Vão chegando da escola, tirando os sapatos no meio da sala, jogando a mala de qualquer jeito. Quem é que vai catar? Quem a mamãe manda guardar?

— É. Nós.

— Eles ajudam a mamãe? Não, só brincam. Cada brincadeira divertida...

— É mesmo.

— Pois é. Por esses motivos e outros mais, virei menino. Pode até me considerar um moleque.

Milinha e Julina desceram as escadas para o café da manhã. Dona Íris já estava na cozinha.

— Ah! Que bom que vocês já levantaram. Bom dia meninas!

— Bom dia mamãe.

— Julinha, você ponha a mesa e Emilinha, você venha me ajudar. Julinha, o que você fez com o cabelo. Que horror!

Julinha respondeu:

— Eu virei menino. De hoje em diante só brinco e faço bagunça.

— Que besteira é essa? Amanhã vou levar você no salão para acertar esse cabelo. Que pena! Seus lindos cachinhos...

— Vou brincar, respondeu Julinha.

— Não vai não, vamos arrumar a mesa.

Julinha não atendeu a mãe. Sumiu pela porta do quintal com um pedaço de pão com manteiga na mão. Ah! Que vida voa iria ter!

Dona Íris foi atrás:

— Volte aqui menina. Que será que deu nela?

Julinha passou aquela manhã de domingo brincando, longe de casa. Jogou bola, subiu em árvores, brigou e até falou um bocado de nomes feios, a danada.

Na hora do almoço, com a barriga roncando de fome, voltou para casa. Dona Íris estava furiosa com ela:

— Onde você esteve menina? O Zeca e o Tiago andaram atrás de você. Não arrumou as camas. Sumiu. Você está precisando de um castigo.

— Ora, mamãe, nada demais. Estive brincando na rua, do outro lado da praça.

Os irmãos olharam para ela e Zeca, o mais velho falou:

— Não quero minha irmã na rua. Vai ficar na boca da molecada. Depois sou eu que tenho de meter o braço neles.

— Isso mesmo, disse dona Íris, lugar de mulher é em casa. Onde já se viu menina brincando na rua? Desta vez não contei pro seu pai. As não repita.

— Ora, não me amolem vocês. Agora sou menino, não sacaram ainda?

Zeca e Tiago desataram a rir. Riram tanto que ficaram até com dor de barriga.

Mas Julinha nem ligou:

— Que é que há, ó meu, sou palhaço agora? E virou as costas e subiu as escadas. Quando desceu, Milinha estava ajudando dona Íris a terminar o almoço de domingo, Tiago e Zeca, sentados ao lado de seu Batista, assistiam o fim de uma corrida de automóvel.

— É, pensou, vou ficar homem mesmo para o resto da minha vida que não sou boba e fiar mulher.

Depois do almoço, onde todos caçoaram dos cabelos dela e ela aguentou calada, dona Íris falou seriamente:

Julinha, você via arrumar a cozinha sozinha, já que não ajudou em nada de manhã. E nada de desculpas.

— Não, virei homem. HOMEM. Olhem para mim, não estão vendo?

E saiu para a rua outra vez, deixando os pais boquiabertos.

— Zeca, Tiago, vão atrás, vigiem sua irmã.

Julinha saiu pela rua chutando todas as pedras, latas e tampinhas que encontrou pelo caminho. Achou até bom os irmãos irem junto com ela. Foram até o córrego que passava no fim da rua e brincaram a tarde inteira.

— Sabe mana, até que você é legal para brincar, falou Zeca.

— Brincar aqui é gostoso.

— É, mas não vem com essa de ser homem não.

— Não enche o saco e muda o disco, respondeu Julinha.

Depois de uma semana, dona Íris e seu Batista já estavam preocupados. Julinha mal fazia suas lições, brincava de dar socos, não ajudava na casa e nem mesmo arrumava a sua própria cama. Além do mais, virou uma bagunceira de primeira. Quando saia do banho, deixava tudo inundado, como se um vendava tivesse passado no banheiro. Jogava futebol na posição de goleiro, empinava pipa e duas reclamações por comportamento chegaram em casa. Não pegou mais nas suas bonecas, só vestia jeans e camiseta e brigava na rua.

— Batista, precisamos levar Julinha num psicólogo, disse dona Íris. Estou muito preocupada com o comportamento dela.

— Deixa que eu vou ter uma conversa com ela primeiro.

— Não vai adiantar nada. Já gastei minha saliva tentando explicar para ela como as coisas devem realmente ser. Ela não ouve, não obedece.

Seu Batista chamou Julinha no quarto dele, para uma conversa.

— Minha filha, sua atitude não está correta. Você está preocupando muito a mamãe e a mim também.

— Tá tudo bem, pai. Estou fazendo tudo certinho como os meninos fazem. Sou um garoto legal agora, e vou crescer e ser homem.

— Julinha, você é mulher, nasceu uma menina, e é uma filha muito querida.

— Mas virei menino pai. Não quero ter a vida de mulher. É uma barra papai.

— Julinha, os homens trabalham fora de casa para ganhar dinheiro e manter a casa.

— É nada, o Zeca e o Tiago não ganham dinheiro. Só brincam.

— Mas vão fazer tudo o que eu faço quando crescerem.

— Mas a mãe trabalho. Dá aula. E uma porção de mães também ganham dinheiro. E a mamãe cuida de tudo aqui em casa, não cuida?

— Mas é mulher, dona de casa.

— Por isso eu sou menino e vou ser homem. É mais legal, maior moleza.

Seu Batista desistiu. Falou com dona Íris:

— É melhor procurar um psicólogo para ela.

Mas, nem psicólogo deu jeito na teimosia de Julinha. Foi jogar dinheiro fora. Ela estava, cada dia que passava, mais convencida de que era um menino.

Quem resolveu o problema foi dona Íris. Convocou a=toda a família para uma reunião depois do jantar.

— Quero falar com vocês todos. Estou entendendo a Julinha e tenho uma proposta a fazer.

— Que proposta? Perguntou seu Batista.

— Primeiro quero dizer que eu e o papai trabalhamos para manter nossa casa. Vocês, crianças, estudam. O trabalho das crianças é estudar. Respondam se estou certa?

— Está, todos responderam.

Pois bem, de hoje em diante, todos nós vamos ter nossos trabalhos fora de casa e tarefas aqui dentro de casa, sejam homens ou mulheres.

— Pera aí, mamãe, essa não, gritaram Zeca e Tiago.

— Que ideia mais maluca Íris? Protestou seu Batista.

— Pois é isso mesmo. Cada um de nós vai participar das obrigações daqui da casa. Se não concordarem comigo, também vou virar homem — e a Milinha também — e quero ver quem cuida de suas roupas e quem vai fazer a comidinha gostosa que vocês comem todos os dias.

É claro que tudo isso deu muita discussão mas foi assim que dona Íris resolveu o problema de Julinha e os de sua casa também.

Todos ajudavam, tanto os meninos quanto as meninas, pois todos eram donos da casa e usufruíam as coisas boas de um lar.

E Julinha virou menina outra vez, voltou a ter seus cachinhos e brincar com suas bonecas, por que, afinal de contas, ninguém é de ferro.

 

 

 

Conto: Par Perfeito

Criticar, dar palpite em vista de um acontecimento, é fácil, mas para saber o porque do acontecido, uma investigação profunda dos fatos, carece ser feita, deve-se bisbilhotar a fundo, e, muitas vezes os fatos são difíceis de serem encontrados por um simples mortal não afeito a este ofício.
Dizem, os sabidos doutores, entendidos nos assuntos da psicologia e dos estudos da alma humana, a meu ver, questões deveras complicadas, que os sentimentos de amor e de ódio estão muito próximos um do outro, que um amor muito intenso pode se transformar em violento ódio, dependendo das circunstâncias e vicissitudes da vida. Era voz corrente que o Dr. Dionísio Nogueira Camacho, emérito desembargador exercendo suas funções no fórum de São Paulo e dona Alda Nogueira Camacho, sua santa e devotada esposa, estavam ligados por um profundo amor, vivendo uma lua de mel que já durava trinta e sete anos, vida conjugal exemplar e ditosa, mesmo não tendo produzido nenhum rebento. A pobre dona Alda era considerada estéril, não houvera tratamento, médicos nas clínicas especializadas, tanto nos Estados Unidos como na Europa, nem mezinhas, rezas, novenas e promessas que fizessem com que o ventre da coitada conseguisse segurar uma só cria sequer. Ela abortava antes do terceiro mês de gestação. Mas este revez não tinha impedido a felicidade do casal, cantada em verso e prosa pelos amigos e pela vasta parentela, um amor tão lindo e fiel, duas almas gêmeas se completando.
Além de exemplar dona de casa, anfitriã perfeita e socialite modelo, dona Alda era fogosa amante, devotada e fiel esposa e mãe amorosa de um homem só, seu amo e senhor.
Foram trinta e sete anos de vida conjugal, tempo em que nadaram em felicidades, viajaram pelo mundo durante as férias forenses e gozaram as bênçãos de uma fartura financeira. A venturosa bonança durou até o dia em que o dr. Dionísio emigrou para o astral num assalto em que tentou reagir, indignado por ter que submeter a sua meritíssima figura de homem da mais alta justiça à vontade de dois marginais que interceptaram com motos o seu carro, num congestionamento da Avenida Rebouças.
Arrasada, dona Alda viu sua vida naufragar com a perda do marido.
Uma parte da sua felicidade tinha partido para sempre. O falecido havia lhe deixado bens, uma polpuda pensão e uma enorme solidão.
O primeiro ano de viuvez foi de luto fechado, viveu encolhida na preta desolação da roupa fechada dos pés à cabeça, rios de lágrimas sem fim.
Nunca houve defunto mais pranteado do que o desembargador Dionísio Nogueira Camacho. Como uma reclusa, dona Alda se trancou em casa e para a vida, nem parentes, nem amigos conseguiram tirá-la daquele estado de desolada prostração.
No segundo ano de viuvez, o luto foi aliviado. Vestida de cinza ela se dedicou à arte da pintura em porcelana. Arrancada de casas, diga-se de passagem, muito a contragosto, pela irmã caçula, ela concordou em substituir o preto total por um cinza chumbo, enfeitando as blusas com golas e punhos brancos. As duas irmãs se matricularam num curso de artesanato, a vida tinha que continuar. Foi um ano de muito trabalho, totalmente dedicado à nova atividade. Dona Alda fabricou presentes para amigos e para toda a família — canecas, xícaras e bules, açucareiros, pratos e pratinhos, vasos, enfim, todas as quinquilharias costumeiras que se faz nesse tipo de curso. A solitária viúva já não aguentava mais desenhar e colorir florzinhas delicadas em pratos e pratinhos quando lhe insinuaram que ela deveria fazer um curso de computação, que estava na moda, que era o mais moderno meio de comunicação, um show.
Assim, aprender a lidar com uma máquina que lhe era totalmente estranha, tornou-se a meta do terceiro ano de viuvez. Foi realmente espantoso como dona Alda e o computador se deram bem, se completara tinham sido feitos um para o outro. Ela se encontrou dentro do seu novo passatempo, aprendendo com facilidade e espantosa rapidez, passando de um curso para o outro, pensando até em fazer um curso avançado de informática. Tinha finalmente encontrado um vício, algo que talvez pudesse preencher a lacuna de sua vida, a falta que ela sentia em poder se dedicar a alguém, no caso o falecido, seu amado nunca esquecido dr. Dionísio.
Adquiriu um HP com proessador intel, 160 gb, uma impressora fotográfica HP, com scanner e copiadora, câmera digital, microfone e se conectou com o mundo. Instalou o equipamento em seu próprio quarto, móvel, cadeira estofada com rodinhas, com espaldar alto, tudo do bom e do melhor.
Assim passou dona Alda, de luto aliviado, o terceiro ano de sua sofrida viuvez, ainda afastada das festas, das badalações, das viagens e do clube, navegando na internet, descobrindo novos mundos.
Quando dona Alda tirou definitivamente o luto, no quarto ano, ainda prateava o falecido, nunca esquecido dedicado esposo. Invadiu o escritório do saudoso dr. Dionísio para se instala, ao lado dos alfarrábios de direito civil, penal, fiscal e outros direitos, lugar sagrado e intocável. Ela tinha conservado a sala como o falecido a deixara, limpa e arrumada, como um santuário que esperasse a volta do marido. Nessa invasão ela começou a remexer nas gavetas do falecido. Nunca tivera coragem de penetrar naquele mundo misterioso ao qual nunca tivera acesso quando o marido era vivo. Apenas a criada que limpava a sala e o seu advogado que precisou de documentos para cuidar da vida financeira dela tinham penetrado no lugar sagrado. Dona Alda abriu as gavetas, examinou as anotações com a caligrafia de seu amado Dionísio e verte lágrimas de saudades. Ela nada entendia dos assuntos do desembargador, mas, desde que havia iniciado a bisbilhotice, continuou como se não pudesse parar. Numa gaveta da escrivaninha, a última, quase toado o chão, encontrou um revólver de tambor, ela nem sabia que tinham arma em casa. Ao lado dele um livro, O Levitã, de Hobb. Segurou o livro com as mãos, achou o título esquisito. Viu a foto no meio das páginas, uma ampliação em preto e branco. Lá estava o marido falecido, quarentão, usando a camisa de seda estampada esporte, presente dela no dia dos namorados. Ela se lembrava que achara a camisa chique quando a tinha visto em um manequim de uma loja do shopping Iguatemi e havia comprado para o marido que só usava terno e gravata, sempre tão formal. Lá estava o dr. Dionísio ao lado de uma mulher jovem, não era feia, e de um menino. Atrás uma dedicatória — “para Dionísio, meu amor, se lembrar de mim e de seu filho Júnior, quando não puder estar conosco, sua Janete”.
Branca como uma folha de papel, quase desmaiando, o sangue lhe fugindo do rosto e o coração disparando freneticamente, ela precisou fiar mais de uma hora esparramada na Berger do falecido para conseguir ficar de pé. Ela se lembrava vagamente de ter visto o rosto daquela mulher junto com um rapazote espinhento enquanto o caixão do defunto baixava para a cova.
O filho da puta tinha uma amante e um filho, e ela não sabia. Meu Deus! Tantos anos carregando chifres sem nunca perceber nada! O finado deveria ter sido um mágico em matéria de descrição, pois, nunca ouvira um comentário desabonador a respeito dele. E a mulherada, as amigas, que falavam da galinhagem dos homens, que tudo sabiam e eram loucas por um fuxico, nunca lhe tinham contado nada! E contariam se soubessem, eram línguas viperinas e maldosas, invejosas da felicidade dela. Meu Deus! Será que ainda estavam juntos quando ele batera as botas?
Trinta e sete anos de vida conjugal perfeita se desmancharam naquela hora, o amor intenso se transformou em raiva e ódio não menos intensos.
Dona Alda era uma mulher ferida. Mesmo sofrendo uma dos maior do que a dor que havia padecido com a morte do seu homem, não comentou com ninguém o seu achado sinistro. Todo o seu corpo, toda sua alma pediam vingança e ela resolveu botar chifres no defunto.
Ficou ainda alguns dias em estado de choque e foi o computador que lhe deu as respostas que ela precisava. Entrou no site Par Perfeito, que achou discreto e o conveniente para arrumar um home, qualquer cara vestindo calças, para ela, no tempo certo, para exibir para o mundo que Dionísio não seria o único homem de sua vida, e para que o defunto se revirasse no seu caixão de jacarandá, caríssimo por sinal.
Ao lado de uma foto dez anos mais nova, seu perfil a descrevia como viúva ainda jovem, querendo gozar a vida, em boa situação financeira. Obviamente não faltaram respostas, querendo gozar a vida, em boa situação financeira. Obviamente não faltaram respostas, candidatos do Arroio ao Chuí, de todos os tipos, que ela ia descartando depois de trocar algumas mensagens. Estava encantada com tantos assédios, já se haviam passado quarenta anos, estava distante desses afazeres românticos ligados ao amor e à pquera. Depois de dois meses de procura ela viu a foto de um candidato, sujeito ainda jovem, João Batista. Ficou pasma, meu Deus! O sujeito era a cara do falecido quando mais jovem, incrível! Os mesmos olhos fundos, a mesma testa com as entradas laterais, mesmo nariz, a boca grande com dentes fortes, cabeleira preta, muita lisa, penteado para trás.
Entusiasmada, respondeu logo, encontrar o que estava procurando, seu par perfeito, e começaram um namoro eletrônico. No começo trocaram mensagens diárias, horas de bate papo, depois com sua webcam e equipamento apropriado, se viam e se falavam. Até a voz de João Batista lembrava a do falecido, grave, morna.
Todos os dias, depois do almoço, dona Alda se dedicava a se produzir, maquiagem esmerada para disfarçar as poucas imperfeições que o botox não escondera, vestido novo, joias para conversar com João Batista, conversa esta, sempre às três horas da tarde, que se prolongava até as cinco e meia.
Ele se dizia médico cirurgião, estava sempre de branco, tirava plantão depois das dezenove horas em vários hospitais, estava ocupado a noite, dormia de manhã, era solteiro, mas pretendia se amarrar, procurava alguém, não queria uma mocinha de cabeça oca, umas burras. Gostava de mulheres maduras.
Dona Alda estava exultante, tirou o luto, voltou a sorrir, a frequentar o clube e as antigas amizades. Era como se ela estivesse reconquistando o seu Dionísio, sem aquela odiosa Janete para atrapalhar. Passaram a se encontrar em motéis, e ela tinha a sensação que estava corneando o falecido, o velho Dionísio, e, quando ela ia encontra-lo levava-lhe presentes e recebia um buquê de rosas vermelhas.
As amigas estranharam. Depois dos anos negros de pranto, a viúva havia mudado da água para o vinho, tinha um ar de felicidade estampada no rosto.
Pressionada, ela contou seu envolvimento com João Batista, sua aventura cibernética, omitindo as idas aos motéis. As amigas foram categóricas em adverti-la dos perigos desse tipo de amizade e namoro. Ela retrucou, ela estava sendo sincera, abrira-se como um libro expondo sua vida, sua solidão e tinha certeza de que ele era um homem de caráter, não mentiria. Será? A dúvida ficou plantada na sua cabeça, os homens são mentirosos, dissimulados, não tinha ela sido enganada pelo próprio marido falecido?
Dona Alda achou por bem investigar o candidato a marido. Procurou um profissional, detetive por ofício, contratou-o para seguir João Batista quando eles saíssem do motel. Um mês inteiro de investigação — ela tinha muita esperança que João Batista não fosse falso com ela —, o detetive cobrara os olhos da cara, mas ela não queria ter dúvidas.
Pobre dona Alda, o relatório do detetive decepcionou-a — João Batista não era médico, trabalhava mesmo a noite, era porteiro de uma boate na Rua Rego Freitas, onde recebia gorjetas. Era amigado com uma vendedora da C&A, de nome Jandira, tinha uma filha, até o computador que ele usava era da tal Jandira e ele usava-o quando ela estava n batente vendendo camisetas.
O sofrido coração da viúva quase não aguentou o baque. A decepção foi imensa. A cópia do seu amado, porém traidor Dionísio, não passava de um malandro em busca de uma mulher rica e vulnerável. Ela havia sido uma babaca, havia aberto seu coração para ele, entregado seu corpo. O que ela via era um Dionísio em carne e osso, zombando dela, enganando-a outra vez, fazendo-a de boba.
Sua frustação foi seguida de uma intensa raiva e repugnância. Quietametne se produziu, maquiou-se, abriu o computador e deletou João Batista, com um vestido novo estampado de flores miúdas, óculos escuros chegou às três horas da tarde no endereço dado pelo investigador, tocou a campainha, uma casa geminada, sem jardim, na Vila Clementino. João Batista abriu a porta boquiaberto, e dona Alda descarregou o revólver do falecido nele, matando Dionísio para sempre e saiu. Entrando devagar no carro.
Afinal todos os Dionísios não passavam de desalmados.
 
 

Conto em dois atos


Uma História de Amor,
Esperança e Suor em Dois Atos

1º Ato


Teruo Ogaki se encontrava em estado de graça no Natal de 1990. Tinha um emprego excelente numa grande empresa, conseguira amealhar um om dinheiro na poupança e era dono do coração da moça mais bonita da sua empresa, recentemente eleita Miss Cargil, Ednéia dos Santos, copeira da diretoria. Foram quatro sessões de cinema, cinco jantares na pizzaria da cidade e três idas ao afamado motel Eclipse que culminaram num noivado com aliança e anel.

Um único senão embaraçava a bem aventurança de Teruo Ogaki, a oposição de seu pai. Seu Takeo Ogaki havia chegado com 15 anos de idade, direto para o interior de São Paulo, com sua família, para trabalhos de agricultura. Três anos depois de árduo trabalho, seu Takeo mudou-se para o Paraná para ter o seu próprio chão e iniciar uma granja. Foram tempos difíceis, a família trabalhava de sol a sol, de domingo a domingo, muitas vezes passando as madrugadas vigiando a criadeira cheia de pintinhos, acendendo fogueiras para que não sucumbissem à friagem da noite.

O trabalho árduo e o ambiente isolado da granja impediram o jovem Takeo de se confraternizar com outros jovens, que aprendesse os costumes da nova terra. Assim, por causa das vicissitudes da vida, Takeo continuou japonês, seguindo os costumes de seus pais que, de acordo com a tradição de seus antepassados, providenciou uma jovem japonesa para o filho. Seu Takeo dificilmente aprovaria o casamento do filho com uma gaijin.

Teruo havia realizado o sonho do pai, tinha se graduado e pós-graduado na Faculdade de Agronomia de Bandeirantes. Engenheiro agrônomo, com um ótimo currículo, não foi difícil para ele ser contratado por uma multinacional, a Cargil, com filial em Cambará, onde ele havia nascido e crescido, onde aprendera a ser brasileiro e paranaense.

Ele era grato ao pai que lhe havia proporcionado a educação universitária, mas gostava de decidir por ele mesmo os passos que daria em sua própria vida.

A jovem Miss Cargil, estava radiante. Não era loucamente apaixonada pelo seu japonês, gostava muito dele, mas não era boba. Onde ela, Ednéia dos Santos, pobre, filha do seu Santinho, pedreiro, bêbado, espancador e truculento, iria encontrar um partidão como o agrônomo que, além de ser da diretoria da firma, além de possuir um carro quase novo, não bebia, era estudado e bem vestido? E, depois de tudo o que ele sabia sobre a família dela, estava apaixonado e estava comprando tudo o que ela queria, um enxoval de rico para o casório?

A lua de mel com a vida acabou em julho de 1991. O estado de beatitude de Teruo foi esfacelado por uma simples carta, curta, em que sua demissão era-lhe comunicada, a dispensa irrevogável do lugar ao sol que ele havia conquistado por seus próprios méritos.

Começou então sua peregrinação para a reconquista de sua felicidade. O casamento foi adiado. Andou de Seca a Meca procurando uma colocação para que pudesse recuperar o status perdido, mas as portas se fecharam para ele. Desarvorado ele viu as perspectivas de uma vida própria, próspera e tranquila ao lado de sua Ednéia, desmancharem-se no ar como bolhas de sabão.

Teruo não queria ser mais um granjeiro, não queria seguir os passos do pai e essa foi a causa principal da decisão que tomou e que iria modificar sua vida.

Ele se juntou à leva dos decasséguis e foi contratado para trabalhar no Japão. Sua principal meta era ir sozinho, ganhar dinheiro no Eldorado, voltar e se estabelecer num negócio rentável com sua doce Ednéia. Era uma questão de adiar por algum tempo seus planos.

Ednéia não concordou com ele. Como, iria ele, deixa-la por tanto tempo? Não senhor, não queria fazer o sacrifício de ficar esperando, ela iria junto, casada, muito bem casada e não era um dos seus sonhos andar de avião? Além disso, ela já sabia algumas palavras em japonês, não agradecia sempre as gentilezas dele com um “arigatô gusaimassi!, não dava bom dia, para ele, com um “orraiô”. E, ademais, quando voltasse ao Brasil, ela seria uma mulher viajada.

2º Ato

Agora, no terceiro ano do novo milênio, Ednéia já não tem a cintura de pilão, nem os cabelos longos. Engordou muitos quilos e a silhueta de miss é uma lembrança do passado.

Levanta-se cedo todos os dias para levar os três filhos à escola e depois, segue para a rua principal da cidade, para um restaurante popular brasileiro, onde exerce o ofício de cozinheira, fazendo feijoadas e tutus, entre outros pratos.

Às vezes é chamada de mames, outras vezes de okasan. Já fla fluentemente a língua da terra, gosta de comer sushi, sashimi e sukyaki. Nunca se esqueceu da viagem de lua de mel, no avião jumbo, que trouxe os dois para o Japão, viagem que custou a venda do carro de Teruo.

Teruo sai mais cedo que ela para a fábrica onde trabalha desde que chegou ao Japão. Já tem alguns fios de cabelos branco nas têmporas, está mais rijo, mais cusculoso, fala português com os amigos e com a família e japonês no trabalho. O sonho de enriquecimento rápido se esvaiu, mas não sumiu de seu coração a esperança de voltar ara Combará, de dar uma guinada na sorte ingrata.

Com todas as dificuldades , o casal se tornou mais unido. A vida árdua e as esperanças foram os ingredientes que fortaleceram a união de Teruo e Ednéia. O inverno gelado já não os incomoda mais, embora ainda sintam saudades do sol tropical do Brasil, e, também, sabem se defender dos terremotos.

Os dois sonham em cruzar os ares para voltar, mas o orçamento é apertado. Com três crianças para alimentar e vestir é difícil economizar. O trabalho é estafante, tanto na fábrica como no fogão, semana atrás de semana, a vida passando entre os trabalhos domésticos, a família e a labuta no serviço.

Teruo, às vezes, se lembra saudoso, dos tempos da Cargil, quando trabalhava sem uniforme de fábrica, sem sujar as mãos. Mas, ele consegue enfrentar a realidade de sua situação precária que, no início de sua vida no Japão, qualificava como desmoralizante.

A vida social do casal se resume às reuniões barulhentas nos fins de semana, quando se juntam aos amigos brasileiros para uma batucada, para uma cervejada ou para dançar. Nessas horas alegres, ele de jeans, ela de minissaia e sandálias plataforma, vestidos no melhor estilo brasileiro, cantam e dançam como se fossem ora a porta-estandarte e o mestre-sala de uma escola de samba, ora passistas. E se esquecem de tudo, levam a alma, deixando aflorar neles o mais puro sentimento latino.

 

 

 

Conto: O Milagre


O Milagre

Milagres? Não sou muito chegada nesses mistérios de fé e sempre fiz pouco deles. Mas Dona Lola afirma, de pé junto, que milagres acontecem, não os despreza, muito pelo contrário, enaltece todos eles e o Santo Milagreiro responsável pelo acontecido. Ela me garantiu que, no sertão da Bahia, onde ela nasceu e viveu boa parte de sua vida sofrida, o povo põe muita fé neles, pois não é o serão povoado de santos milagreiros que são a salvação de todo? O povo do sertão não sobrevivia por puro milagre?

O fato é que dona Lola, mulherzinha cheia de vida, ainda empenada nos seus setenta anos, atribui a um milagre poder estar vivendo na abastança, podendo criar seus netos no “bem-bom”.

Bem, vou contar o que ela me segredou, num momento de fraqueza, por pura necessidade de dividir com alguém o inaudito acontecimento que mudou o rumo de sua vida. Ela me garantiu que eu era a primeira pessoa a quem ela confiava o seu segredo e esperava total sigilo, que tudo ficasse entre nós. Mas eu não assumo nenhuma responsabilidade pelos fatos, estou passando ipsis literis com me foi narrado. O leitor pode explicar o acontecido como melhor lhe apetecer, eu me reservo o direito de interpretar o sucedido da minha maneira e do meu modo de pensar.

Conheci dona Lola — eu sempre tive dúvidas que este fosse o seu verdadeiro nome —, numa aprazível praia do litoral do Paraná, Matinhos, onde eu havia alugado um apartamento para passar alguns dias. A época, fora de temporada, fazia com que a cidadezinha estivesse às moscas, praias vazias, comércio parado. Por dois dias eu amarguei um silêncio desesperador, engolindo saliva, solitária, louca para achar uma companhia para conversar. Por isso não me foi difícil me aproximar da velhinha plantada no meio da areia numa cadeira colorida, sob um guarda-sol listrado. Sentei-me ao lado dela pedindo licença, ela foi extremamente gentil e entabulamos uma conversação sem compromisso. Em pouco tempo nos fizemos amigas. Dona Lola estava ali veraneando com os netos. Achei estranho, um tanto inusitado, crianças em período escolar deveriam estar sentadas em carteiras e não brincando na praia. Mas ela me explicou e eu me dei por satisfeita:

— Gosto de vir aqui quando há sossego. Tiro as crianças por quinze dias da escola, deixo meu comércio nas mãos de funcionário e venho gozar as excelências deste lugar lindo.

Ela tinha cinco netos ao todo, a mais velha com doze anos, e mais um rapaz de vinte, que não era seu neto de sangue, mas que era como se fosse.

— É Josué me contou. Está comigo desde os dezesseis anos. Vivia na rua, abandonado, sem família, um cão sem dono, jogado ao deus-dará. Hoje é meu braço direito, de comprovado devotamento, meu ajudante inestimável no meu estabelecimento comercial, entende as particularidades do comércio melhor que eu. E ainda é um motorista porreta.

Ficamos amigas, passávamos as horas juntas, fazíamos moquecas memoráveis, jogávamos baralho enquanto o bando de netos e o agregado se divertiam pela praia e pelas ruas.

Só no último dia das férias dela, ela se abriu comigo. Primeiro ela me passou um santinho e enquanto eu examinava a estampa, começou a falar:

— Sabe, a senhora pode não acreditar, mas não foi um santo milagreiro baiano que me valeu na minha aflição. Foi um santo que mal e mal eu conhecia, um santo aqui do sul, santo de paulista, tão porreta como um santo do nordeste. Mas tudo é santo, pois não é? Vou lhe contar que há quatro anos eu estava no maior misere, no maior sufoco, morando numa favela fedida, com estes meus netos para criar, tudo com uma pensão de salário mínimo deixada pelo meu defunto marido, que Deus o tenha! Uma mixaria que mal dava para pagar o barraco, eu morava de aluguel. As crianças, coitadas, sem escola, eu não tinha meios para mandar os coitados estudar. Mas tinha que criar os bichinhos. Não que não tivessem mãe. Minhas filhas nunca tiveram um pingo de juízo, viviam soltas no mundo, fazendo o que, eu não sei, nem nunca soube. Elas só apareciam no meu barraco para desovar mais uma cria, depois se mandavam para o mundo sem a barrigada, de minissaia, numas blusinhas que mal tapavam o corpo, o umbigo de fora. Para que? Não sei. Dinheiro? Nunca falaram nisso, nenhuma ajuda, nenhuma responsabilidade. Embuchavam, pariam e jogavam a cria no meu colo, sem perguntar se eu tinha ou não como o que comprar o leite. Já era um milagre eles estarem vivos. Não sei como não perdi nenhum deles, como vingaram. O dinheiro nunca deu, eu catava restos de feira, lixo, fazia o diabo para eles não morrerem de fome.

Pois há quatro anos, mais ou menos, eu estava por demais num sufoco, aperreada, não tinha nada no barraco, só açúcar para tomar com água. Trabalhar como? Mesmo se eu fosse moça, não ganharia o que eu precisava para educar os coitados. A roça havia sido minha escola, a enxada meu lápis.

Me amiguei nova, vim com o falecido para São Paulo, limpei muito banheiro, lavei muita cueca para ajudar o meu homem. Com pouca leitura, só consigo juntar umas letras, não podia fazer outra coisa. Meu finado marido também era sem estudo, ajudante de pedreiro por ofício, trabalhou até morrer sem ir pra frente.

Pois eu estava sem dinheiro para um pedaço de pão, as crianças de bucho vazio, jururu, nos cantos, coitadinhas. Eu tinha comigo uma estampa de santo, um santo novo para mim, de um tal de Santo Expedito, com uma oração atrás de leitura muito difícil, mas que tinham me afirmado que ele dava adjutório para as causas urgentes. E se havia uma urgência dona, era a minha e de meus coitadinhos. Eu ainda não tinha o Josué, mas como podia ter alguém mais se eu não tava dando conta do recado? Aí eu pensei, vou até a igreja dele, me arrastar no chão se preciso for, para ele tomar conta da minha aflição. O santo tinha a devoção dele numa capela perto da Estação Tiradentes do metrô. Dinheiro para ônibus, não tinha, só um passe de metrô, desses que dão para os velhos. Me agarrei com minha fé, que graças a Deus nunca me abandonou, deixei as crianças trancadas no barraco e me mandei a pé, eram quinze quarteirões até a estação do metrô. Andei como uma condenada determinada a atingir a meta almejada, fraca por falta de comida no bucho.

Quando cheguei na estação Santa Cruz, eu estava esbodegada, perna, pé, tudo doía, o sol estava quente por demais, um calor sufocante. Encostei num muro, dona, para dizer a verdade, naquela hora eu não tinha muita coragem para ir adiante, para levar a cabo a empreitada.

Foi quando eu comecei a rezar pro santo, valei-me Santo Expedido, dai-me forças pra me ajoelhar nos pés da vossa imagem, pra fazer a minha solicitação, tão carecida eu estou.

Naquela hora eu era um fiapo de gente, tão precisada, tão preocupada, que nem sei como vi o sujeitinho, um tal de Cascola, correndo na minha direção. Eu conhecia o excomungado, morador da favela e todo mundo dizia que não era boa coisa, era metido em roubalheira, com droga, assalto e outras coisas que nem me lembro agora. Só lembro de que ele vinha na disparada, com um três oitão na mão, uma sacola pendurada no braço e atrás dele um bando de policiais também de arma na mão, numa gritaria de dar gosto. Senti medo, muito medo, me encostei mais no muro, eu , naquela hora, queria que o chão se abrisse e me engolisse. Quando o perseguido excomungado passou quase grudado em mim, não parou não, jogou a bolsa no meu pé e gritou: — guarda para mim vó, depois eu pego.

O cão tinhoso, filho de uma égua, tinha me reconhecido e me transformado em cúmplice, passadora de droga. Uma baita zonzeira me dominou, um torpor nas pernas, chumbo nos pés, juro que pensei que fosse desmaiar, achei até que eu estava com o pé na cova. Como uma pedra de uma tonelada, eu caí sentada em cima da bagagem que o cão tinhoso tinha jogado para mim, e ali fiquei, sem desmaiar e vendo todo o cenário se desenrolar como se tudo estivesse se passando bem devagar.

Os policiais começara a atirar, o Cascola caiu uns vinte metros adiante, eu ali espiando a morte nua e crua do desinfeliz, o corpo do branquelo lavado em sangue, o povaréu se juntando em volta, interessado nas peripécias da ocorrência. Ninguém olhou para mim, dona, nenhum cristão pôs reparo na minha figura, eu ali em cima da maldita mala preta, descorçoada sem coragem pra me por de pé. Eu era cúmplice do defunto excomungado que deveria ter comparsas por ali. O desinfeliz havia batido as botas, mas com certeza seus amigos viriam recuperar a mercadoria.

A duras penas me firmei nas pernas bambas e nem seu como consegui me safar de fininho carregando a maleta. Segui em frente e me enfiei na igreja da Saúde, e fiquei esperando o meu coração bater no compasso normal. Arreneguei o santo paulista, me achei culpada por ter abandonado os milagreiros de minha confiança.

Então abri a sacola, devagar, com medo. Não era cocaína não dona, era dinheiro, um montão, como eu nunca pensei que pudesse existir, tudo em nota de cinquenta. Aí eu percebi o milagre realizado, pedi desculpas ao santo paulista que fez o braço do Cascola jogar a sorte nos meus pés.

Por isso não faço pouco de milagres. O santo é danado de bom, milagreiro tão porreta que nem careceu eu ficar ajoelhada suplicante em frente a sua imagem.

Nesse pondo da narrativa, eu interrompi a velha senhora:

— A senhora não teve medo, dona Lola? Medo de ser perseguida pela gang do falecido Cascola?

— Claro que tive, mas tive sabedoria de fazer o que era correto e não desmerecer o milagre. Catei uma notas de cinquenta, enfiei nos molambos do meus peitos, peguei um táxi até a favela, catei meus netos e me mandei para a Barra Funda. Eu tinha que procurar outro horizonte para me estabelecer. Comprei passagens para uma cidade do interior do Paraná e nem chego perto de São Paulo.

Dona Lola que perdoe, mas o marginal, a meu ver, não teve nenhuma sociedade com o santo. Apenas não quis que a sua maleta recheada caísse nas mãos da polícia. Ele sabia que todo o dinheiro iria sumir. Talvez ele até pensasse que se safaria e poderia recuperar a maleta mais tarde.

Mas para dona Lola, foi puro milagre.