Nome: Tijolos
Gênero: Contos
TIJOLOS
O lenço branco,
muito limpo, salpicado de bolinhas azuis, esconde quase toda cabeleira da velha
senhora, deixando apenas, aqui e ali, alguns fios brancos se misturarem às
muitas rugas que lhe sulcavam o rosto encarquilhado.
Dona Emiliana
Ferreira, em seus mais de oitenta anos, ainda lúcida, havia nascido e vivido
toda sua longa existência no bairro da Penha. Ela olha pela janela a chuva
batendo no asfalto, a água que cai mansa encharcando os tijolos das
construções, se infiltrando onde há alguma rachadura, se empoçando onde há
depressões.
Enquanto fala, Dª
Emiliana não olha para mim, seus olhos estão perdidos na Avenida Cdssa.
Elizabete de Robiano que margeia o rio Tietê e pode ser vista da janela de sua
residência no conjunto Chaparral. Apesar da idade, a voz dela é firme, com um
tom melancólico e saudoso.
— Quando menina eu
gostava dos dias de chuva porque a olaria parava, ninguém trabalhava e eu podia
ficar em casa brincando com meus irmãos.
A gente labutava
em uma olaria, sabia? Toda a família, meu pai era uma espécie de gerente, não
era o dono não.
O trabalho era pesado mas, mesmo assim, sinto saudades do meus tempos de
criança, toda a família, todo mundo empenhado na fabricação de tijolos. Escola?
Só depois de grande pude aprender a ler e escrever, não havia nenhum grupo
escolar pelas bandas da gente. Havia é um mundaréu de fábrica de tijolos por
toda a várzea do Tietê, desde a Penha até Guarulhos e todo mundo tinha
trabalho, crianças e adultos.
O material para a
olaria chegava de carroça, os animais arrastando um peso danado desde os
barreiros.
Vinha um barro
escuro e feio que a gente chamava de torba, mais um que era branco e também
areia. A gente, a criançada e a mulherada, só botava a mão no barro depois de
muito amassado e misturado. Coloquei muito barro nas formas para moldar os
tijolos e carreguei muito peso levando eles para a secagem. Só os meninos
maiores levavam os tijolos para o forno, foi muito tijolo, muito mesmo.
Depois seguia tudo de barcaça pelo rio Tietê. Lembro-me bem desses
barcos, tinham a carcaça de pinho e o fundo de peroba. Eram fabricados no
Caminho do Porto, não muito longe da Ponte de Guarulhos. Os tijolos iam para as
construções da cidade. Muitas casas aqui da Penha, de Itaquera, e São Miguel,
foram levantadas com os tijolos que a Penha fabricava. Muitos tijolos passaram
pelas minhas mãos de menina, de mocinha, de meus irmãos, de meus pais. Não
havia mãos a medir para tantos pedidos.
Mas esses tempos
são passados, esquecidos pelos jovens de hoje, são tempos encravados na memória
dos velhos, assim como eu sou agora. Tempos dos portos de areia, das chácaras
dos portugueses, no Vale do Tiquatira e no Vale do Aricanduva, cheias de
cravos, copos de leite e margaridas que iam para ser vendidas no largo do
Arouche, lá no centro de São Paulo. Tempo das plantações de morango dos
japoneses, dos tomates, dos limões, tempo das matinês de domingo que eu ia
quando mocinha, na Celso Garcia, era uma viagem chegar até o cinema. Tempo dos
bailes de São João em Itaquera — foi num deles que conheci meu finado marido,
eu já ia pelos trinta anos e ainda era solteira — tempo dos piqueniques na
beira do Rio Jacu, a gente andando pelos caminhos de terra na carroceria de
caminhão.
Quando me casei
larguei a olaria, meu finado marido trabalhava na fábrica de papel chamada
Fábrica Santa Terezinha, em Aricanduva. Ele fez questão que eu só cuidasse da
casa, tinha salário. Minha família continuou nos tijolos por algum tempo mais.
Depois tudo foi
mudando, o bairro foi crescendo, os tijolos fizeram muitas construções. Até
fábricas espalhadas pelos bairros da Penha. Hoje tudo está diferente, a região
se expandiu, tenho meus netos morando em lugar bonito, onde antes não havia luz
elétrica, nem asfalto. A Penha era diferente, a gente podia ver as colinas ainda
verdes, as estradas eram todas de terra. Só a Rua da Penha era calçada e a Rua
Dr. João Ribeiro. Não havia conforto como hoje. Agora eu vivo aqui, não
enriquei mas tenho um bisneto doutor e uma bisneta professora, de mãos
delicadas que nunca pegaram em barro. Foi esta minha vida aqui na Penha.
٭٭٭٭
Eu não havia sentido mágoa na voz de
Dona Emiliana, eu pude sentir orgulho na sua voz. Duas semanas depois deste
nosso encontro, eu recebi a notícia que ela havia falecido.