sexta-feira, 21 de setembro de 2012

 
 
Nome: Tijolos
Gênero: Contos
 
 
 
 
 
 
TIJOLOS
 



            O lenço branco, muito limpo, salpicado de bolinhas azuis, esconde quase toda cabeleira da velha senhora, deixando apenas, aqui e ali, alguns fios brancos se misturarem às muitas rugas que lhe sulcavam o rosto encarquilhado.
            Dona Emiliana Ferreira, em seus mais de oitenta anos, ainda lúcida, havia nascido e vivido toda sua longa existência no bairro da Penha. Ela olha pela janela a chuva batendo no asfalto, a água que cai mansa encharcando os tijolos das construções, se infiltrando onde há alguma rachadura, se empoçando onde há depressões.
            Enquanto fala, Dª Emiliana não olha para mim, seus olhos estão perdidos na Avenida Cdssa. Elizabete de Robiano que margeia o rio Tietê e pode ser vista da janela de sua residência no conjunto Chaparral. Apesar da idade, a voz dela é firme, com um tom melancólico e saudoso.
— Quando menina eu gostava dos dias de chuva porque a olaria parava, ninguém trabalhava e eu podia ficar em casa brincando com meus irmãos.
            A gente labutava em uma olaria, sabia? Toda a família, meu pai era uma espécie de gerente, não era o dono não.
            O trabalho era pesado mas, mesmo assim, sinto saudades do meus tempos de criança, toda a família, todo mundo empenhado na fabricação de tijolos. Escola? Só depois de grande pude aprender a ler e escrever, não havia nenhum grupo escolar pelas bandas da gente. Havia é um mundaréu de fábrica de tijolos por toda a várzea do Tietê, desde a Penha até Guarulhos e todo mundo tinha trabalho, crianças e adultos.
            O material para a olaria chegava de carroça, os animais arrastando um peso danado desde os barreiros.
            Vinha um barro escuro e feio que a gente chamava de torba, mais um que era branco e também areia. A gente, a criançada e a mulherada, só botava a mão no barro depois de muito amassado e misturado. Coloquei muito barro nas formas para moldar os tijolos e carreguei muito peso levando eles para a secagem. Só os meninos maiores levavam os tijolos para o forno, foi muito tijolo, muito mesmo.
            Depois seguia tudo de barcaça pelo rio Tietê. Lembro-me bem desses barcos, tinham a carcaça de pinho e o fundo de peroba. Eram fabricados no Caminho do Porto, não muito longe da Ponte de Guarulhos. Os tijolos iam para as construções da cidade. Muitas casas aqui da Penha, de Itaquera, e São Miguel, foram levantadas com os tijolos que a Penha fabricava. Muitos tijolos passaram pelas minhas mãos de menina, de mocinha, de meus irmãos, de meus pais. Não havia mãos a medir para tantos pedidos.
            Mas esses tempos são passados, esquecidos pelos jovens de hoje, são tempos encravados na memória dos velhos, assim como eu sou agora. Tempos dos portos de areia, das chácaras dos portugueses, no Vale do Tiquatira e no Vale do Aricanduva, cheias de cravos, copos de leite e margaridas que iam para ser vendidas no largo do Arouche, lá no centro de São Paulo. Tempo das plantações de morango dos japoneses, dos tomates, dos limões, tempo das matinês de domingo que eu ia quando mocinha, na Celso Garcia, era uma viagem chegar até o cinema. Tempo dos bailes de São João em Itaquera — foi num deles que conheci meu finado marido, eu já ia pelos trinta anos e ainda era solteira — tempo dos piqueniques na beira do Rio Jacu, a gente andando pelos caminhos de terra na carroceria de caminhão.
            Quando me casei larguei a olaria, meu finado marido trabalhava na fábrica de papel chamada Fábrica Santa Terezinha, em Aricanduva. Ele fez questão que eu só cuidasse da casa, tinha salário. Minha família continuou nos tijolos por algum tempo mais.
            Depois tudo foi mudando, o bairro foi crescendo, os tijolos fizeram muitas construções. Até fábricas espalhadas pelos bairros da Penha. Hoje tudo está diferente, a região se expandiu, tenho meus netos morando em lugar bonito, onde antes não havia luz elétrica, nem asfalto. A Penha era diferente, a gente podia ver as colinas ainda verdes, as estradas eram todas de terra. Só a Rua da Penha era calçada e a Rua Dr. João Ribeiro. Não havia conforto como hoje. Agora eu vivo aqui, não enriquei mas tenho um bisneto doutor e uma bisneta professora, de mãos delicadas que nunca pegaram em barro. Foi esta minha vida aqui na Penha.
 
٭٭٭٭
 
            Eu não havia sentido mágoa na voz de Dona Emiliana, eu pude sentir orgulho na sua voz. Duas semanas depois deste nosso encontro, eu recebi a notícia que ela havia falecido.

Título: Viagem
Tipo: Contos


 
Viagem

       

 
 

       Você vem comigo? Estou contando com você. Você vem, não vem? Quem pode resistir aos encantos de Angélica, aos seus apelos, aos seus enormes olhos claros, tão lindos, ao seu sorriso irradiando doçura? Ninguém. Não conheço ninguém. Você precisa ir comigo, é muito longe, Itaim Paulista, zona leste. Me disseram que também é perigoso. Não, não vamos de carro, só até o centro de São Paulo, deixamos o BMW num estacionamento, depois vamos de ônibus. Eu sei como chegar lá, tenho o endereço, tudo bem explicadinho, um mapa, onde tomar o ônibus. Quem me deu? A Yolanda Lacerda, você conhece, mora no Tamboré 2. Ela já esteve lá e me garantiu que é tiro e queda, conseguiu tudo o que queria. Se eu tenho problemas? Claro que tenho, e muitos. Eu e o Amaro estamos num conflito de interesses, ele anda numa sovinice de dar gosto. Nunca foi pão duro e agora deu de regular dinheiro, o que eu compro, onde gasto. O João Pedro está bocudo, me responde atravessado, não me trata como mãe, eu sou uma qualquer, uma vagabunda desmiolada. A Mariana está insuportável, não para em casa, não fala comigo, sai para as baladas todas as noites. E você diz que eu, Angélica, não tenho problemas? Além disso, o Amaro quer passar as férias na África, pode? Fazer safari, ser mordido por mosquito, não faz o meu gênero. Odeio subdesenvolvimento, quero ir para a Europa, ver shows, fazer compras em Roma e Paris... Você vê? Tenho uma pá de problemas e estou pedindo para você ir comigo até o tal de Pai Francisco. Só o sobrenatural vai poder por minha vida em ordem. A Yolanda me garantiu que é um pai de santo muito conceituado, competente. Só que é longe, pra lá da Penha. Ir até a Zona Leste tendo como ponto de partida Alphaville é mais que uma viagem, é uma excursão, mas quem pode resistir à Angélica?


        Que roupa vou usar? Lógico, básica, não vou me exibir, afinal não vou a nenhum chá beneficente. Tudo básico. Quando a louríssima Angélica, 46 anos, com aparência de 30 desceu do ônibus 2666 da Viação Itaim Paulista, no ponto indicado no mapa rabiscado numa folha de sulfite, o mapa de Yolanda Lacerda, tudo iluminou em volta dela. O seu vestir básico de perua assumida se resume num moderníssimo conjunto de jeans da Daslu (seu lugar predileto para deixar o dinheiro de Amaro), sandálias altíssimas Fernando Pires, bolsa Victor Hugo, um rabo de cavalo esvoaçante, aplique comprado em Nova York, tudo isto rodeado por um halo de perfume francês. Com o porte de uma rainha, ela anda pela rua sem calçamento, seguindo as indicações do mapa. Uma menina gritou, apontando com o dedo, como se adivinhasse a finalidade da visita: Pai Francisco é ali, na terceira casa. Outra criança acrescentou: bem onde tem uma Nossa Senhora Aparecida na varanda.
       
        Sem pavimentação, sem saneamento básico, a precariedade do lugar salta aos olhos, a imagem é de miséria total, um fim de mundo dentro de São Paulo. Em pleno dia da semana, homens e velhos senhores se amontoam nas portas dos dois botecos. Nada parece ter pressa, o cenário é estático como se o tempo tivesse parado naqueles cafundós. Não há carros circulando, apenas dois fuscas velhos, caindo aos pedaços, ferros-velhos encostados. Angélica deixa escapar sua impressão: pior que Carapicuíba. Crianças brincando, de todas as idades no meio da rua, onde estavam as creches e as escolas? Fechadas, por falta de gente, quem quer vir trabalhar aqui onde falta tudo? A prefeitura prometeu mandar gente no mês que vem. Mas ninguém tá acreditando.

        O bairro é quase todo avermelhado, as casas que são de alvenaria não são revestidas, não têm acabamento, a aparência do conjunto é de desmazelo e desolação. O esgoto corre pela rua, o mau cheiro domina tudo, não há como escapar dele.

        Enquanto Angélica desfila enfiando os saltos das sandálias nos buracos e na terra solta do caminhão, milagrosamente, sem perder o equilíbrio, uma procissão embasbacada, composta na maioria de mulheres e crianças segue os passos da rainha. Súditos de pés enfiados em havaianas, admiradores mal vestidos, bocas sem dentes. É artista de televisão? parece uma que trabalha com o Gugu, é rica, é linda, queria ser como ela, gente de televisão ganha muito, ela pode ajudar. Acho que ela trabalha na Globo.

        A casa de Pai Francisco é a melhor do lugar, de alvenaria, rebocada, caiada de branco, janelas e portas azuis, uma pequena varanda com a Santa entronizada num nicho cercado de flores de plástico. A procissão pára no portãozinho e um mulato vestido de branco abre a porta, o próprio Pai de Santo em pessoa, os colares coloridos pendurados no pescoço balançam enquanto ele abraça e beija suas novas clientes. Parece que ele está esperando visitas, velhos conhecidos, tão efusivo se mostra.

        Angélica se posiciona na cadeira de plástico numa saleta enquanto o mulato recita seu currículo, exibe suas credenciais. Quem me indicou foi Dona Yolanda? Ela lhe falou que também trabalho no Terreiro Axé Bahia em Vila Matilde? Recebo aqui as pessoas importantes, madames, gente fina que não gosta de se misturar. Políticos, figurões, pessoal de televisão. Resolvo até eleição para candidato a deputado. Faço trabalhos de aproximação e união, amarração forte, para emprego, doença, dinheiro, felicidade, abro caminhos. Madame pode confiar nos meus búzios.


        Apenas uma cortina de renda transparente, de cor indefinida, separa o consultório do afamado feiticeiro, do sofá de curvim vermelho da minúscula saleta de espera. Angélica sente-se constrangida: você pode esperar lá fora? Ela manda, dita ordens, ninguém resiste à Angélica. Lá fora, estão esperando por ela, os curiosos se acotovelam, mulheres com crianças no colo, homens sofridos sem trabalho, sem ocupação, mulheres ostentando barrigas imensas, prenhas, crianças de todas as idades. São testemunhas humildes da visita ao Pai de Santo. As especulações a respeito da Vênus continuam. Se a moça é da televisão? De que programa ela é? É gente importante, mulher de deputado? É melhor perguntar para ela quando ela sair. Um ancião adverte: silêncio, pessoal, pai Francisco não gosta de converse aqui fora quando dá consulta. Faz-se um silêncio relativo, todo mundo fica esperando o aparecimento de Angélica, com a paciência que é típica dos humildes, dos desprotegidos, dos excluídos. Quando ela surge, seu sorriso atesta os prognósticos favoráveis, a carteira generosa de Amaro se abrindo novamente sem restrições, os filhos idolatrando-a, as compras em Roma garantidas. Ela é rodeada pela turba carente e, finalmente, parece se dar conta da presença das pessoas. Meu homem está desempregado, moça, arranja um lugar pra ele trabalhar, qualquer coisa serve. Tamo passando fome, queria ganhar uma cesta básica. A senhora não precisa de faxineira? De cozinheira? Queria voltar para o Piauí, não quero ver meus meninos virar bandido, arranja a passagem pra nós, moça. Pede pro Gugu mandar auxílio pra gente. Dona, preciso de um trampo, tamo passando dificuldade.

        A medida que o ponto de ônibus se aproxima pedidos em formas de bilhetes, testemunhas da carência, da humildade, das privações, eram colocados na mão de Angélica. Uma menina abre caminho e lhe entrega uma bala, um presente generoso, outra lhe entrega uma flor de papel.

        Finalmente o ônibus sacolejante nos leva em direção do Parque D. Pedro. E eu, mera coadjuvante deste pedaço de drama, vejo Angélica despencar num choro convulsivo e despertar para a dura vida real. Afrodite renasce, dissipando com suas lágrimas a espuma de espessa névoa que há muito tempo envolvia sua existência. Pai Francisco conhece seu ofício, os problemas de Angélica se dissolvem, a bruma vai se esfumando diante da tragédia que atesta a penúria de uma grande porção da humanidade, os excluídos desta nossa grande metrópole, do outro lado de Alphaville
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