segunda-feira, 30 de abril de 2012

A FOGUEIRA


Um raio fininho de luz entrava pelas frestas de madeira no quarto onde Zefinha estava deitada, toda enrodilhada. Fazia frio para aquela época do ano, sol forte durante dia e temperatura caindo à noite.Ela e os irmãos se acomodavam num colchão de palha estendido sobre o chão, corpo contra corpo para poderem se aquecer. Não era muito tarde mas os irmãos já dormiam e ela não conseguia e seus olhos não se desgrudavam do colchão vazio do outro lado do cômodo, onde seu pai e sua mãe deveriam estar deitados. Zefinha queria dormir logo para acordar no dia seguinte, dia glorioso da sua vida, dia em que faria dez anos. A mãe lhe havia prometido, o pai também, que ela iria finalmente para a escola depois do seu aniversário, que até tinham arrumado uma vaga para ela junto com o irmão Vasco. Que coisa maravilhosa poder crescer, ir para a escola e aprender tantas coisas que ela queria saber. Ela iria todos os dias para escola, de havaianas no pé e caderno na mão mas continuaria ajudando a mãe no tanque, nas tarefas da casa, levando trouxas de roupa limpa para a freguesia. A vida era boa, tudo estava dando certo, o pai pelejando na usina, no corte de cana e na plantação, com carteira assinada.
Que felicidade, o pai ter tomado jeito largando a cachaça e trazendo dinheiro para casa, pagando o aluguel direitinho. E agora ela iria para a escola, iria crescer, trabalhar, ajudar a mãe, poder comprar sapatos novos na loja toda vez que precisasse.
Quando ela ganhasse o salário, iria comprar uns dentes para a mãe, bem lindos, iguais aos de Dona Jurema, a vizinha do lado, que tinha ouro na frente, que faiscava brilhante quando um raio certeiro de sol batia no sorriso dela. Ela tinha certeza que com lindo dentes, a mãe iria rir para todo mundo como Dona Jurema, e iria ficar feliz para sempre.
Zefinha queria dormir logo para poder acordar com dez anos, mas como poderia fechar os olhos e mergulhar no sono com tantas coisas boas acontecendo e ainda para acontecer? Como poderia dormir sem ver o pai chegar com o presente deslumbrante que ele iria lhe trazer, a tiara vermelha que ela lhe pedira e que tanto desejava ter e, ademais, a goiabada, a salsicha e a batata doce para festejar os seus dez anos? Não, não podia fechar os olhos e adormecer só de pensar em tudo aquilo e que passaria um dia inteiro fazendo aniversário, um dia inteirinho com pessoas sorrindo para ela, desejando muitas felicidades, um dia inteiro para saborear o seu aniversário que terminaria com uma festa em volta de uma fogueira no fundo do quintal. Assariam as batatas doces, a família, Dona Jurema, as crianças da vizinhança, todos festejando com
ela. Não poderia se esquecer de carpir o quintal, não poderia deixar nenhum capim no terreiro, tudo muito limpo para abrigar a fogueira. E ela seria a rainha, com a tiara vermelha nos cabelos, o centro da festança, vendo todo mundo comendo salsicha, batata-doce e goiabada, rindo para ela. Não seria uma fogueira das grandes, fogueira de gente importante que durava a morte inteira. Havia pouca lenha, catada pelos matos e no lixão, e gravetos secos. Seria um fogaréu pequeno, mas viçoso e radioso, com um fogo acolhedor, aconchegante, soltando fagulhas brilhantes para o céu e abrigando, em sua volta, a felicidade e o contentamento.
Zefinha tentou fechar os olhos para dormir, mas não conseguiu se desviar do tropel de pensamentos que invadia sua cabeça de menina. As imagens prazerosas foram aos poucos sendo substituídas por uma ponta de apreensão, um quê de inquietação que estavam se instalando, sem nenhum convite, nos seus devaneios,
tomando corpo aos poucos até se transformarem em leve angústia. E o pai porque não chegava, porque seria que estava demorando tanto, a mãe esperando por ele sentada e muda, parada como um pedaço de pau, na cozinha iluminada apenas pelos restos de brasa do fogão. Zefinha começou a ficar atenta a cada barulho da rua, às pessoas que ouvia, passar na frente da casa precisava escutar a porta se abrindo e batendo para ter a certeza que ele chegaria com sua tiara vermelha, os petiscos para serem consumidos à
noite ao redor da fogueira. Porque o pai estava demorando quando ela ansiava tanto fazer dez anos e ir para a escola?
Zefinha não poderia agüentar por muito tempo a incerteza e os pensamentos ruins que estavam passando pela sua cabeça. Xô, xô, tristeza, vai embora, a vida é boa, amanhã será um grande dia, o pai vai chegar e os dois vão se deitar no colchão que está esperando por eles.
Um torpor foi tomando conta da menina, ela se deixou vencer pelo sono que, finalmente chegou, e veio inundando-a com um sonho prazeroso, ela vestida como um anjo esvoaçante, os pés calçados por sapatos e meias brancas, como uma ricaça, lendo um livro cheio de figuras coloridas, a mãe correndo a brincar com os irmãos, rindo com dentes alvos e brilhantes, o pai, sério como sempre, mas com o rosto cheio de felicidade. O barulho da porta da cozinha batendo e as passadas fortes no chão, fizeram com que, a contra-gosto, ela acordasse, mesmo não querendo sair daquele sonho. A voz do pai, rude como sempre, chegou até ela, acabando de despertá-la.
— Pode juntar os trem muié, amanhã saímos, eu na boleia, tu, as crianças e as tralhas atrás no caminhão do Zé Venâncio, rumo a Mato Grosso. Fui mandado pra rua, já me deram as conta. Vamos sair do Paraná e tenta outras banda. Tô cheio de dívida e não tenho um puta tostão pra "arresolver" a vida aqui.