segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Conto: A VELHA QUE NÃO PODIA MORRER



A Velha que não Podia Morrer



Desacorçoado, a mão coçando a cabeça, Matias não sabia mais o que fazer, tinha que pensar, pensar, pensar... Havia sido despedido há seis meses da fábrica de plástico, onde trabalhara por dez anos.

Felizmente havia colocado a mão num bom fundo de garantia, mas o seguro desemprego estava chegando ao fim.

Havia usado a grana do fundo para dar entrada numa casinha, para ficar livre do aluguel. A prestação era pequena, na ocasião da compra, ele achara que logo estaria empregado novamente, que seguro desemprego aguentaria até arrumar outra colocação, ele era bom no que fazia, tinha competência e era um danado de um trabalhador. Agora se achava num mato-sem-cachorro, não arrumava nada e o dinheiro do seguro estava no fim.

Sua mulher, Jussara, sempre conseguia alguns trocados, se virando, como manicure, num salãozinho do bairro e fazendo uma ou outra faxina, mas não dava para muita coisa o que a pobre conseguia ganhar.

E ele, nada! Não conseguia nada de fixo, carteira assinada nem se fala. Matias havia pensado que logo arranjaria um novo emprego, era ótimo injetor de plástico, mas, nada!

Os tempos andavam bicudos e babau seguro-desemprego.

Matias e Jussara, sentados à mesa da cozinha, conversavam a respeito. Meu Deus, ainda deviam duas prestações da cozinha para as casas Bahia, não pagando, ele iria ficar com o nome sujo, o que dificultaria mais ainda a vida.

Desajeitado, Matias muniu-se de lápis e papel para fazer contas. Ele não tivera muitos estudos, mas conseguiu fazer e refazer as contas para calcular as despesas da casa. O que a mulher ganhava dava apenas para o arroz, o feijão, o pão, a cesta básica e olhe lá. Naqueles meses passara correndo atrás de emprego, os patrões andavam exigentes, queriam gente como curso, com diploma. Nem bicos ele conseguia arranjar. Não era velho, estava com 43 anos, mas não conseguia nada. Nem para porteiro de prédio.

Meio a contragosto, falou como chefe da casa:

— O jeito é ir buscar sua velha em Minas, mulher. Precisamos contar com ela.

A dita cuja velha, era a mãe de Jussara, morava num lugarejo prá lá de Governador Valadares, em casa própria.

Matias continuou expondo seus pensamentos, Dona Emília recebia a aposentadoria dela e a pensão do seu velho falecido, dois salários inteiros. A coitada nem tinha onde gastar naquele cú do mundo.

— Se ela vender a casa, podemos acabar de pagar a nossa. Ela deve ter alguma grana guardada, é econômica, não gasta. Afinal, se ela vier morar aqui conosco, esta casa também será dela.

— Acho que você tem razão, homem de Deus. A mãe até que pode ajudar, mas não vai atender você. Eu é que tenho de falar com ela.

— Também acho, nós não temos outra saída, tá tudo russo. Vamos ver o preço da passagem.

Dona Emília morava sozinha em Mendes Pimentel, lugarejo pequeno, pobre e de poucos recursos.

Da ninhada de filhos que tivera só sabia de Jussara, morando em Carapicuíba, perto de São Paulo. Era a única eu lhe escrevia regularmente, dando notícias, mandando fotos dos netos. Os outros filhos, o mundo tinha engolido devorado, tinham sumido há muitos anos, não sabia se estavam vivos ou mortos, Jussara era a única ligação dela com o passado.

Por isso, quando sua caçula apareceu naqueles cafundós, foi uma choradeira só, mãe e filha se abraçando, os vizinhos rodeando, o café sendo coado no fogão de lenha para comemorar o evento inusitado.

Com a porta da frente fechada e o fogo apagado, Jussara começou a desfiar seu rosário, a contar o seu sufoco, três meninos ainda estudando, Matias desempregado, sem conseguir nada.

E veio o convite, quase uma súplica imposição mesmo, Dona Emília precisava ir embora com a filha, precisam da ajuda dela, não podiam contar com mais ninguém neste mundo de Deus.

Dona Emília relutou um pouco, afinal era uma decisão que carecia de um tempo para por as ideias em ordem, mas, finalmente, depois de três dias de incertezas ela acabou concordando. Não é que ela precisasse de médico, andava com umas tonturas, não podia comer de tudo, até mandioca frita fazia mal pro seu estômago. Ali, naquele fim de mundo, tudo era mais difícil. Ela não andava muito bem de saúde, o trabalho duro da roça, a labuta debaixo de sol forte havia liquidado com o velho, agora parecia que queria acabar com ela também.

Jussara ficou assustada:

— Não fale assim mãe, pelo amor de Deus! A senhora vai viver muito, cidade grande tem muito recurso e nós vamos cuidar da senhora. A senhora não pode morrer mãe!

A senhora não pode morrer mãe, palavras benditas que segurara Dona Emília neste planeta por alguns anos, ente o Hospital das Clínicas e Carapicuíba.

Toda família de Matias viveu na corda bamba por anos, apesar da ajuda dos dois salários de Dona Emília e com o que Jussara conseguia ganhar. De vez em quando, Matias conseguia alguns bicos para o frango de domingo, para as linguiças e as salsichas com pão. O sonho da carteira assinada nunca se concretizou. Os três meninos cresceram, longe das raivas, muito unidos, conseguiram fazer cursos técnicos. Começaram a trabalhar cedo e juntaram suas economias com a finalidade de poder comprar, para o pai, um carrinho de pipoca e montar um salãozinho para a mãe exercer o ofício de manicure.

Dona Emília era um fio de gente, sempre doente, diabética, hipertensa, mas lúcida, ela sempre buscava os remédios grátis, e fica na fila do guichê. Finalmente ela percebeu que Jussara e a família sobreviveriam sem ela, os meninos trabalhando, o carrinho de pipoca com ponto certo para trabalhar, Jussara no seu salão de beleza, tinha até uma cabelereira para ajudar com a freguesia. Parecia que tudo tinha entrado nos eixos.

A velha senhora deitou-se na sua cama, não quis mais se levantar. Agora ela já podia sair deste planeta, podia morrer.

E morreu.