A
Velha que não Podia Morrer
Desacorçoado,
a mão coçando a cabeça, Matias não sabia mais o que fazer, tinha que pensar,
pensar, pensar... Havia sido despedido há seis meses da fábrica de plástico,
onde trabalhara por dez anos.
Felizmente
havia colocado a mão num bom fundo de garantia, mas o seguro desemprego estava
chegando ao fim.
Havia
usado a grana do fundo para dar entrada numa casinha, para ficar livre do
aluguel. A prestação era pequena, na ocasião da compra, ele achara que logo
estaria empregado novamente, que seguro desemprego aguentaria até arrumar outra
colocação, ele era bom no que fazia, tinha competência e era um danado de um
trabalhador. Agora se achava num mato-sem-cachorro, não arrumava nada e o
dinheiro do seguro estava no fim.
Sua
mulher, Jussara, sempre conseguia alguns trocados, se virando, como manicure,
num salãozinho do bairro e fazendo uma ou outra faxina, mas não dava para muita
coisa o que a pobre conseguia ganhar.
E
ele, nada! Não conseguia nada de fixo, carteira assinada nem se fala. Matias
havia pensado que logo arranjaria um novo emprego, era ótimo injetor de
plástico, mas, nada!
Os
tempos andavam bicudos e babau seguro-desemprego.
Matias
e Jussara, sentados à mesa da cozinha, conversavam a respeito. Meu Deus, ainda
deviam duas prestações da cozinha para as casas Bahia, não pagando, ele iria
ficar com o nome sujo, o que dificultaria mais ainda a vida.
Desajeitado,
Matias muniu-se de lápis e papel para fazer contas. Ele não tivera muitos
estudos, mas conseguiu fazer e refazer as contas para calcular as despesas da
casa. O que a mulher ganhava dava apenas para o arroz, o feijão, o pão, a cesta
básica e olhe lá. Naqueles meses passara correndo atrás de emprego, os patrões
andavam exigentes, queriam gente como curso, com diploma. Nem bicos ele
conseguia arranjar. Não era velho, estava com 43 anos, mas não conseguia nada.
Nem para porteiro de prédio.
Meio
a contragosto, falou como chefe da casa:
—
O jeito é ir buscar sua velha em Minas, mulher. Precisamos contar com ela.
A
dita cuja velha, era a mãe de Jussara, morava num lugarejo prá lá de Governador
Valadares, em casa própria.
Matias
continuou expondo seus pensamentos, Dona Emília recebia a aposentadoria dela e
a pensão do seu velho falecido, dois salários inteiros. A coitada nem tinha
onde gastar naquele cú do mundo.
—
Se ela vender a casa, podemos acabar de pagar a nossa. Ela deve ter alguma
grana guardada, é econômica, não gasta. Afinal, se ela vier morar aqui conosco,
esta casa também será dela.
—
Acho que você tem razão, homem de Deus. A mãe até que pode ajudar, mas não vai
atender você. Eu é que tenho de falar com ela.
—
Também acho, nós não temos outra saída, tá tudo russo. Vamos ver o preço da
passagem.
Dona
Emília morava sozinha em Mendes Pimentel, lugarejo pequeno, pobre e de poucos
recursos.
Da
ninhada de filhos que tivera só sabia de Jussara, morando em Carapicuíba, perto
de São Paulo. Era a única eu lhe escrevia regularmente, dando notícias,
mandando fotos dos netos. Os outros filhos, o mundo tinha engolido devorado,
tinham sumido há muitos anos, não sabia se estavam vivos ou mortos, Jussara era
a única ligação dela com o passado.
Por
isso, quando sua caçula apareceu naqueles cafundós, foi uma choradeira só, mãe
e filha se abraçando, os vizinhos rodeando, o café sendo coado no fogão de
lenha para comemorar o evento inusitado.
Com
a porta da frente fechada e o fogo apagado, Jussara começou a desfiar seu
rosário, a contar o seu sufoco, três meninos ainda estudando, Matias
desempregado, sem conseguir nada.
E
veio o convite, quase uma súplica imposição mesmo, Dona Emília precisava ir
embora com a filha, precisam da ajuda dela, não podiam contar com mais ninguém
neste mundo de Deus.
Dona
Emília relutou um pouco, afinal era uma decisão que carecia de um tempo para
por as ideias em ordem, mas, finalmente, depois de três dias de incertezas ela
acabou concordando. Não é que ela precisasse de médico, andava com umas
tonturas, não podia comer de tudo, até mandioca frita fazia mal pro seu
estômago. Ali, naquele fim de mundo, tudo era mais difícil. Ela não andava
muito bem de saúde, o trabalho duro da roça, a labuta debaixo de sol forte
havia liquidado com o velho, agora parecia que queria acabar com ela também.
Jussara
ficou assustada:
—
Não fale assim mãe, pelo amor de Deus! A senhora vai viver muito, cidade grande
tem muito recurso e nós vamos cuidar da senhora. A senhora não pode morrer mãe!
A
senhora não pode morrer mãe, palavras benditas que segurara Dona Emília neste
planeta por alguns anos, ente o Hospital das Clínicas e Carapicuíba.
Toda
família de Matias viveu na corda bamba por anos, apesar da ajuda dos dois
salários de Dona Emília e com o que Jussara conseguia ganhar. De vez em quando,
Matias conseguia alguns bicos para o frango de domingo, para as linguiças e as
salsichas com pão. O sonho da carteira assinada nunca se concretizou. Os três
meninos cresceram, longe das raivas, muito unidos, conseguiram fazer cursos
técnicos. Começaram a trabalhar cedo e juntaram suas economias com a finalidade
de poder comprar, para o pai, um carrinho de pipoca e montar um salãozinho para
a mãe exercer o ofício de manicure.
Dona
Emília era um fio de gente, sempre doente, diabética, hipertensa, mas lúcida,
ela sempre buscava os remédios grátis, e fica na fila do guichê. Finalmente ela
percebeu que Jussara e a família sobreviveriam sem ela, os meninos trabalhando,
o carrinho de pipoca com ponto certo para trabalhar, Jussara no seu salão de
beleza, tinha até uma cabelereira para ajudar com a freguesia. Parecia que tudo
tinha entrado nos eixos.
A
velha senhora deitou-se na sua cama, não quis mais se levantar. Agora ela já
podia sair deste planeta, podia morrer.
E
morreu.