GUERRA É GUERRA!
GUERRA É GUERRA!
— 1 —
— Eh! Rafael. Quando é que você vai pedir a Raquel em
namoro? Perguntou André.
— Corta essa, cara! Não estou, neste momento, preocupado
com este assunto. Depois, sou muito baixinho para ela. A danada não para de
crescer!
A turminha ia subindo a rua em direção à escola onde se
encontraria com as meninas. Os quatro eram da patotinha do Rafael, irmandade
secreta e juramentada com sangue e tudo o mais, sempre juntos para, as
aprontações mais criativas da cidade. Rafael, o baixinho da 3a
série, de óculos e corado; Júnior, da 6a, compridão e imaginativo; o
Douglas, também da 6a, cobra em motores e eletricidade, desmontador
de tudo que lhe caia nas mãos; o André, da 2a, que falava pelos
cotovelos. De mochilas coloridas nas costas, lá iam eles rua acima, chutando' todas
as tampinhas e pedras do caminho, as mãos nos bolsos segurando as bolinhas de
gude e outros tesouros que traziam ali guardados. O André, tagarela e elétrico,
não parava de falar, puxando todo tipo de assunto. Douglas, seu irmão, ficou
bravo:
— Fica quieto cara, a gente tá preocupado com o
desaparecimento da Soninha. Eu era gamado nela.
— Eu também, disse o Júnior. Será que ela foi
sequestrada?
— Eu acho que foi, respondeu Rafae1. Todo mundo fala que
até a polícia está investigando. Às vezes tenho até vontade de acreditar na
história do tal do homem do saco que rouba criança ...
—
Isso é babaquice, cara! Ouvi dizer que o caso é sério, disse o Junior. Tá
sumindo menina em tudo que é lugar. Pra mim o caso é de bandido mesmo. Já deu
até na televisão, no globo repórter.
—
Eu vi a Soninha na televisão, berrou o André.
—
Larga de ser bobo, disse o Douglas. Você viu foi o retrato dela e de mais duas
meninas que sumiram de Curitiba.
O
papo estava diferente. Em vez dos assuntos de sempre, das figurinhas, do último
desenho do Pokémon, das revistinhas, pedir ou não pedir meninas em namoro, discos
voadores, extraterrestres e mutantes, ou da raiva que sentiam de algum chato de
outra turma, só falavam na Soninha da 6ª série
que tinha sumido sem deixar rastro, três dias inteiros sem ninguém saber dela, a
cidade em polvorosa, a família desesperada, a televisão e o rádio noticiando.
Estavam
quase chegando ao portão do Colégio Rio Branco quando a Raquel, irmã do Júnior
e a Débora, irmã do André e do Douglas se incorporaram ao grupo. Na porta da
escola encontraram o Pierre, mas ele não deu bola para a turma, mesmo depois do
juramento secreto que tinha feito para poder entrar nela. Pierre conversava com
o Sérgio, um garoto metido a valente, sempre pronto para meter a mão na cara de
qualquer um, despejar palavrões cabeludos em cima das meninas que corriam dele
como o diabo foge da cruz.
O
André, que costumava ver tudo e não perder nada do que se passava no pedaço, comentou:
—
Credo, o Pierre conversando com um cara daquela laia! Olha, gente, o Sérgio tá dando
uma coisa pra ele, parece figurinha!
—
Acho que ele mudou de turma, aquele patife, disse o Rafael. Agora nem quer
brincar comigo mais. Ontem fui à casa dele e estava dormindo, Dona Alice diz
que ele só dorme. Nem faz mais a tarefa. Acho que ele vai acabar bombando.
—
Deixa pra lá, se quer virar casaca que vire, não faz falta, arrematou o Júnior.
Aquele
teria sido um dia comum, igual aos outros tantos que se haviam passado, a única
novidade, a do sumiço da Soninha, já estava ficando uma novidade velha. Pois
seria um dia muito comum se o Pierre não tivesse se sentido mal na aula de
Geografia e caído desmaiado, parecendo um morto no chão. Foi um Deus nos acuda,
um tumulto na classe, um sai-dai-que-eu-quero-ver, um fuzuê pra valer. O
coitado saiu carregado, chamaram a mãe dele, Dona Alice, o médico, e lá se foi
Pierre, deixando um boato no ar que tinha morrido e que o enterro seria de
manhã, no dia seguinte. Ninguém assistiu mais aula direito, a professora pedia,
gritava, esbravejava, suplicava, ameaçava, choramingava e nada. Os alunos nem
olhavam pra ela. Quando finalmente o sinal tocou, foi uma disparada para fora
do prédio, pra valer, e a patotinha se reuniu pra decidir o que fazer e, no
jan-quei-pô foi decidido uma pernada até a casa do Pierre, simples verificação,
para que pudessem ter a certeza se ele tinha morrido ou não, se havia mesmo
virado um cadáver.
D.
Alice foi logo dizendo:
—
Não aconteceu nada, o médico vai fazer uma porção de exames amanhã. A soneira
dele deve ser anemia, não anda comendo direito, o estômago não anda bom.
Rafael
não engoliu e, depois que saíram de lá, foi logo dizendo:
—
Anemia uma oval o Pierre come mais que uma draga. Meu pai (o pai dele era
médico) falou que quem come bem não tem anemia. Só de banana ele come uma penca
por dia.
—
Eu vi o Pierre fumando, disse o André. Acho que foi isso.
—
Esse cara não perde nada. Tudo ele vê, comentou o Douglas admirado.
—
Cigarro de mamona? perguntou o Júnior.
—
Que nada! De papel! De verdade! Acho que ele não vai crescer! Meu pai falou que
criança que fuma não cresce.
—
Não vem com essa não, protestou o Rafael. Eu sou baixinho e não fumo. Não
ofende. Aqui tem coisa e nós vamos investigar. Vou falar com o Pierre ele
precisa de ajuda nem que for moral.
—
É. Mas ele virou casaca. Tá andando com o inimigo, falou Júnior,
—
Gente, ele é nosso amigo, protestou o Rafael. Vou ver se falo com ele. O Pierre
sempre foi meu chapa, faz muito tempo, desde quando ele era fraquinho e eu
defendia o coitado nas brigas. Amanhã às nove em ponto vamos reunir a patota de
baixo da nossa árvore. Se ele precisar de ajuda conto com todos. Além disso ele
fez juramento de sangue e é nosso irmão.
No
dia seguinte, bem atrasado, Rafael chegou bufando para encontrar os amigos no
lugar combinado. Todos já estavam cheios de esperar por ele.
—
Chegou o atrasadinho, gritou o André assim que viu a amigo correndo na direção
deles.
—
Atrasadinho uma oval Só agora consegui falar com o Pierre, Vocês não sabem o
que está acontecendo. Eu tô abismado até agora.
—
Conta logo pra gente, pediu a Raquel. Não faz onda. Tô morta de curiosidade.
—
Também tô louca pra saber, disse a Débora.
—
Elas pensam que só mulher é que é bicho curioso. Fala logo, cara, gritaram os
meninos.
Rafael
sentou-se no chão, cruzou as pernas, os outros também se acomodando, curiosos,
esperando ansiosos.
—
Êta cara louco pra fazer suspense, comentou o André.
Rafael
ignorou o comentário:
—
Gente, é barra pesada. Vou falar e pronto. O Pierre tá firme na droga.
—
Na droga? gritaram todos espantados numa só voz.
—
Maconha e não sei mais o quê. Ele não quis contar, mas deve ser cocaína.
—
Tô besta, simplesmente besta, disse o Júnior.
Os
garotos estavam pasmados. E 'ouviram o Rafael contar tim-tim por tim-tim toda a
história:
—
Bem, no começo. o Pierre não queria dizer nada. Mas ele quase morreu com um
troço que tomou, sei lá, acho que na escola, e a mãe dele já sabe por que o
médico sacou tudo e deu o serviço para ela. Quem passa a droga na escola é o
Sérgio, aquele sacana, cobra venenosa que só podia dar para essas coisas. O
Pierre rouba da loja da mãe todo o dinheiro que pode, rouba do pai, do avô, onde
dá, pra comprar a porcaria. Agora está se sentindo mal não sei por que, deve
ser pela droga que não faz bem pra ninguém e vão mandar o infeliz não sei pra
onde. O coitado chorou que nem bezerro desmamado, de tão desésperado que está, com
um medão de borrar as calças. Tá morto de medo e não contou pra ninguém que foi
o Sérgio. Pediu pra ninguém abrir o bico.
Que
coisa, disse Débora. Quem diria? Logo o Pierre, tão quietinho, tão bobinho...
—
Por isso mesmo. Se fosse esperto ninguém levaria o infeliz na conversa, opinou
Douglas.
—
Precisamos fazer alguma coisa, gente, disse o Rafael.
—
O quê? Contar pra polícia? Ele que conte, problema dele, disse o Júnior
impiedosamente.
—
Ele não vai contar pra ninguém, só contou pra mim porque sou amigo dele, já
livrei a cara dele de muita encrenca, mas ele disse que se eu contar pra alguém
estou traindo a nossa amizade ... quer dizer, ele tem medo ...
—
Eu, também, aparteou a Raquel, tenho um baita medo de bandido.
Rafael
ficou bravo:
—
Mulher é isso aí, a gente põe no meio de homem e elas começam logo a chorar de
medo. Pode ir embora se quiser, vai chorar no colo da mamãe, vai meu bem ...
—
Xi, Rafael, não precisa ficar zangado, credo. Eu num tô chorando ...
—
Tá bem, tá bem ... Agora, por favor turma, peço silêncio total. Vou botar
minhas massas cinzentas funcionando para ver o que faremos.
O
André não aguentou:
—
Qual é, cara, que novidade é essa?
Muito
sério e compenetrado, Rafael pediu:
—
Primeiro jurem que não falarão nada. O que vou fazer, o que vocês vão ter o
privilégio de ver, deve ficar em segredo, sob pena de morte pro dedo duro.
Jurem que não abrirão o bico, mesmo sob tortura, sob ...
—
Juramos, gritaram todos. Pode fazer a coisa.
—
Tá. Confio em vocês, replicou o baixinho. Pelo juramento de sangue. Por favor,
todos sentados em silêncio para ajudar a minha concentração transcendental.
Todos
ficaram quietos, esperando. Rafael fechou os olhos bem apertados, abaixou a
cabeça e levou as mãos até as têmporas. Não demorou muito, todo mundo espiando
com o rabo dos olhos pra ver o acontecimento, e um barulhinho safado, muito
baixinho mas bem inaudível, um choque-choque genial, saiu lá de dentro da
cabeça dele, foi choque-chocando por algum tempo, até os cabelos do cocuruto
ficaram de pé bem assanhados e duros.
—
Já sei. Já sei o que vamos fazer, gritou finalmente. Eureca!
—
Como é que ele fez isso? perguntou o Júnior baixinho para o Douglas.
—
Sei lá, sei lá mesmo, respondeu ele.
A
Débora, curiosa, foi logo perguntando, como se aquilo tudo fosse a coisa mais
normal do mundo:
—
Fazer o quê? Por que você não fala logo?
—
Vou falar, turma. Minhas massas cinzentas dizem que, se ficarmos em silêncio,
deixando estas barbaridades acontecendo bem no nosso nariz, seremos
responsáveis. Por outro lado ... uhm ... se a gente abrir o bico, poderemos por
em risco a vida do Pierre. Agora, se agirmos, livraremos a cara da
responsabilidade e prenderemos os bandidos que estão contaminando os nossos
amigos, matando criancinhas com drogas.
Rafael
tinha feito um discurso e tanto. Ele aproveitava estas ocasiões, quando se
lembrava que era uma boa ocasião, para fazer um treinamento prático e
preparatório para seu futuro de político, prefeito do ano 2010, deputado e
governador logo em seguida.
Raquel,
muito esperta percebeu logo:
—
Lá vem você outra vez. Que chato! Parece um bobo. Será que não pode falar
normal?
—
Não vê que estou treinando? respondeu Rafael.
Um
coro de perguntas estourou no ar:
—
Treinando pra quê, cara?
—
Po-lí-ti-co. É o que decidi ser quando crescer.
—
Que idéia mais besta, disse André. testou:
Todos
concordaram com o André que era mesmo uma ideia muito besta. Rafael protestou:
—
Besta uma oval Vocês não entenderam nada mesmo, são uns babacas!
—
Ah, é? Por quê? perguntou o André.
—
Porque não existe político pobre, porque político não trabalha, viaja de avião
sem parar e sem pagar, vive conhecendo outros países junto com a família ... e
meu pai falou que quem paga tudo pra eles é o povo ... Além disso ...
—
Não enche o saco, cara. A gente estava falando de coisas mais importantes,
atalhou o Júnior.
—
Você gosta de cortar o barato da gente. E o meu futuro não é importante?
perguntou Rafael zangado.
—
Tá bom, disse o Júnior. É importante mas tá muito longe. Vamos, por favor,
voltar ao que a gente tava falando?
—
Tá, concordou ele. Vamos seguir o Sérgio.
—
O Sérgio? perguntaram todos.
—
Claro, elementar. Se ele passa a maconha e outras mercadorias, ele deve receber
de alguém. Quem será?
—
Eu não sei, disse a Raquel.
—
Claro que não sabe, bobona, disse o Júnior. E alguém aqui sabe?
A
discussão esquentou, parecia não ter fim. Mas todos eles estavam entusiasmados
com a nova aventura de brincar de detetive. Depois de muito discutir, desviar
do assunto, confabular e combinar, ficou decidido que o André, que estava na
classe do Sérgio, vigiaria o safado na aula, o Douglas, no pátio, e as meninas
e o
Júnior se revezariam vigiando a porta da casa dele durante o dia. Durante a noite,
ficaria tudo por conta de Deus, porque não podiam sair de casa e precisavam dormir, ninguém é de ferro.
Júnior se revezariam vigiando a porta da casa dele durante o dia. Durante a noite,
ficaria tudo por conta de Deus, porque não podiam sair de casa e precisavam dormir, ninguém é de ferro.
— II —
Duas
semanas inteiras tinham se passado. No sábado e no domingo, como todo meado
queria ir para a piscina, se revezavam perto da casa do Sérgio. Ficavam dois,
conversando e brincando, para disfarçar, enquanto os outros iam se divertir no
clube. E anotavam, cada um no seu caderninho particular, tudo o que viam o
Sérgio fazer, quem entrava na casa dele e quem saía, os nomes, as descrições
das pessoas desconhecidas.
É
verdade que já estavam começando a achar a brincadeira meio chata, meio besta,
sem resultado. Mas Rafael estava sempre tratando de manter os espíritos
animados, jurando e afirmando que logo eles entrariam numa grande aventura, que
o trabalho de detetive era assim mesmo, meio paradão no começo, mas que quando
esquentava era a maior emoção da vida. O baixinho animava os ânimos às vezes
aos pedaços, convencendo a sua patota que era uma questão de tempo para a
chatice ir para os ares, terminar de vez, e dar lugar à ação que todos
esperavam ansiosamente.
Todos
os dias ele recolhia os caderninhos de anotações e estudava todos os movimentos
do Sérgio e da casa dele, que não passavam, para o desespero de todos, do
movimento normal de qualquer casa de família da cidade.
Embora
fosse alto e grandão, quase já se barbeando, já com quatorze para quinze anos,
o Sérgio ainda estava na 2ª série, junto com o André. A criançada chamava o
infeliz de retardado, débil mental, trongolão e outros adjetivos similares para
demonstrar o desprezo que sentiam por ele. Contudo. era apenas um vagabundo,
que não estudava, não fazia as tarefas e não se importava com a escola. Não era
nada burro, era até bem esperto e só estava na escola ainda por influência ...
política do pai, que ajeitara para que sua matricula fosse aceita, mesmo já com
idade de ter terminado o primeiro ciclo, e por burrice da mãe que afirmava que
enquanto ele não terminasse o primário não sairia da escola. Mas, mesmo assim
os pais nada faziam para que o Sérgio fosse incentivado a sair da 2ª série.
Pois,
foi por estar na mesma classe do André, que o Sérgio invocou com o colega
quando percebeu a presença constante dele, rondando a sua casa. Por isso o
André foi dispensado de ficar perto da porta da casa dele, quando foi ameaçado:
—
Se você vier brincar ria minha rua mais uma vez, te quebro a cara, furo os
olhos, pacto as pernas e esmago o teu saco.
O
André ficou apavorado e correu para a turma, procurando resolver o problema e
se livrar da ameaça.
—
Tô com medo, choramingou o André. Não quero ser reduzido a pó, não quero ter
meus dentes rolando no chão e meus ossos quebrados.
—
Que cara medroso, esse meu irmão. E dizer que é meu sangue, disse o Douglas. É
melhor ele não ir.
Nada
parecia acontecer de novo. O Pierre fora mandado para fora da cidade, ninguém
sabia onde, nem a mãe dele falava, disfarçava, tapeava, mas não falava onde ele
estava. Ninguém falava mais da Soninha, do sequestro, só a televisão de vez em
quando comentava alguma coisa, a turma não conseguia ver o Sérgio de papo com
algum estranho, embora visse ele passar droga pra muita gente. Por isso, depois
de quinze dias de observação e de investigação, a turma se reuniu novamente,
convocada e arrebanhada, de baixo do ponto de encontro, a mangueira grande do quintal
da Raquel.
—
Gente, parece que há uma pista, uma leve pista, disse o Rafael.
—
Que pista? perguntou o coro.
—
Vou confirmar pondo minhas massas cinzentas para funcionar. Por favor, todo
mundo sentado pra me ajudar na concentração.
Todos
se sentaram, viram o Rafael se ajeitar, fechar os olhos, abaixar a cabeça,
colocar as mãos nela, o cocuruto da cabeça com os cabelos arrepiados, a cabeça
choque-chocar e o grito de eureca! encher o quintal.
—
Pronto. É isso aí. Prestem a atenção. Todas as anotações foram estudadas. Na
escola ele não encontrou com ninguém de fora, só passou droga, brigou,
conversou com muita gente. Na casa dele só entrou gente conhecida deles ou
gente conhecida da gente. Ele saiu duas vezes e ninguém foi atrás dele. E
quando ele saiu? Quando?
Não
sei, respondeu a Débora. Ele saiu e eu fiquei ali. As duas vezes que ele saiu
era eu que estava vigiando. Até faltei na escola.
—
Aí está. Quando ele sair, deve ser seguido. E nas duas vezes que a Débora
escreveu "o Sérgio saiu" foi depois da "a lavadeira trouxe a
roupa". Aí tem coisa. Raquel, você vai até a casa do Sérgio perguntar pra
mãe dele onde mora a lavadeira, que sua mãe mandou perguntar pra dar roupa pra
ela lavar, se é boa, se lava direitinho, pra despistar é claro.
—
Mas a minha mãe nem conhece a mãe dele. Vai dar caca, retrucou a Raquel.
—
Tá bem, respondeu o Rafael. Nesse caso vou eu. A minha conhece a mãe dele.
—
Eu acho mais lógico, respondeu o Júnior. E depois que você descobrir o endereço
da lavadeira?
O
Douglas adiantou:
—
É vigiar a casa dela, descobrir se há alguma ligação. Será que há? Não é isso,
gente?
—
Acertou na mosca, falou Rafael.
No
dia seguinte a casa de Sérgio voltou a ser vigiada e a dona da casa recebeu a
visita:
—
Eu sou filho da D. Cecília, disse a visita. Minha mãe soube que a senhora tem
uma 'boa lavadeira e pediu o endereço dela pra pedir pra ela lavar a nossa
roupa. A mãe pediu também pra senhora confirmar se ela é boa, se lava
direitinho, se não some peça de roupa, essas coisas, a senhora sabe. Referências.
Deu
certo, Rafael saiu de lá com um papelzinho na mão onde estava escrito
"Estrada do sítio da D. Zilda Moreti, uns dois quilômetros depois da
estrada, uma casinha de madeira, D. Filomena".
—
Credo gente, é longe toda vida. Quem vai investigar lá? perguntou a Débora.
—
Deixa comigo, disse o Douglas. Eu vigio. Vou de bicicleta e faço as perguntas,
como quem não quer nada.
—
Você não pode, cara. Tá ruim em tudo que é matéria. Precisa estudar pra prova
de Matemática, disse o André.
—
Eu me viro na prova, respondeu o Douglas.
—
Que se vira nada, cara. Se você não estuda fica de castigo e aí a gente fica
desfalcado, um a menos pra trabalhar nas investigações. Vê se estuda e pega uma
nota boa, porque nunca se sabe se a gente vai ter que fazer coisas mais
complicadas. E precisamos contar com você.
E
o Rafael continuou falando, dizendo que todos precisavam ir bem nas provas,
garantir nota no caso de precisarem trabalhar mais, faltar na escola para
investigar, e coisas assim, incentivando os mais folgados que só queriam se
divertir naquele caso complicado de investigação e combate às drogas dentro
daquela cidade tão pacata e ordeira. Ele aproveitou a oportunidade para mais um
discurso, continuando seu treinamento para político do ano 2010.
—
Êta baixinho chato, resmungou a Raquel. Que mania de discurso!
Ainda
bem que ninguém ouvia a reclamação dela. Ia dar pano pra manga, gerar um bate
boca colossal, porque no fundo estava todo mundo pensando a mesma coisa. Mas a
discurseira foi encerrada e as tarefas divididas. O Júnior iria pegar a
bicicleta e dar um passeio pros lados da chácara da D. Zilda Moreti e a Débora
iriam continuar espionando a casa do Sérgio, juntamente com a Raquel, jogando
amarelinha com ela na calçada da frente.
Dois
fatos importantes aconteceram no mesmo dia, cinco dias depois do último
discurso do Rafael. Foi num sábado, um calorão danado convidando a criançada
para um mergulho na piscina. O Júnior foi para os lados da chácara da D. Zilda
Moreti, descobriu a casa da lavadeira e ficou sabendo que ela tinha um filho
maior de idade, um vagabundo chamado Pandeiro, que não fazia nada mas tinha um
Fuscão amarelo e que aparecia por lá de vez em quando. A Débora e a Raquel
seguiram o Sérgio mais uma vez, e finalmente ele fez uma coisa diferente. As
meninas sabiam que ele deveria sair porque D. Filomena tinha chegado com a
roupa limpa já algum tempo. Não deu outra. Desta vez ele foi para a Rodoviária,
sentou-se num banco como quem não quer nada e ficou olhando pra o ar. Quando
chegou o ônibus que vinha de S. Paulo, ele se levantou e ficou esperado. Um dos
passageiros que desceu, um homem magro e careca, chegou perto dele e nenhuma
palavra foi dita. Apenas entregou-lhe um pacote do tamanho de uma caixa de
sapato e entrou no boteco. O Sérgio saiu de lá e as meninas não sabiam o que
fazer.
—
Seguimos o Sérgio ou o homem? perguntou a Raquel.
—
Eu sei lá. Nós temos que seguir o Sérgio, né? Vamos atrás dele.
—
Como é que você diz "sei lá" e resolve? perguntou a Raquel.
—
Sei lá, respondeu a Débora. Agora sei lá mesmo.
Com
estes dois novos fatos, nova reunião foi convocada de baixo da mangueira.
—
Estamos progredindo e muito, disse Rafael. Bom trabalho o de vocês. Agora
sabemos que vem um homem de fora para trazer a droga. Vocês viram a cara dele?
—
Muito bem, muito bem mesmo. É como nós contamos, responderam as meninas.
—
Pena que a gente seja ruim em desenho, senão a gente podia fazer o retrato
falado dele, disse o Júnior, sempre cheio de ideias.
—
É pena, concordaram todos.
A
situação foi estudada e discutida exaustivamente. Agora já sabiam que a droga
vinha pelo ônibus de S. Paulo, direto para a mão de Sérgio. Achavam que a
família dele não sabia nada sobre as atividades criminosas dele, mas onde
entrava o Pandeiro? O vagabundo não trabalhava e vivia cheio de ouro e, de vez
em quando, fazia ponto na casa da mãe dele.
Por
que razão ele ia lá? Por que razão o Sérgio saía logo depois que D. Filomena
entregava a trouxa de roupa limpa e passada?
—
Pessoal, todo mundo sentado para ajudar na concentração. Vou colocar minhas
massas cinzentas em funcionamento para obter a resposta e a ligação dos fatos,
comandou o Rafael.
Não
deu outra. Já estavam acostumados com o choque-choque das massas cinzentas dele
o grito de guerra eureca!
—
Já sei pessoal. Examinando os fatos à luz de uma profunda reflexão...
—
Não. Discurso não! Gritaram todos.
—
Tá bom, concordou. Nas anotações da Débora, ela seguiu o Sérgio por toda a
cidade. Ele foi duas vezes à sorveteria, uma vez no fliperama, cinco vezes na
padaria e uma vez na rodoviária. Aí ele encontrou o cara que trouxe a
mercadoria. Certo?
—
Certo, gritaram todos.
—
Mas, segundo as mesmas anotações, ele só saiu com a finalidade de ir até a
rodoviária depois que D. Filomena entregou a roupa lavada, certo?
—
Certo, gritaram todos.
—
Então o recado para ele ir à rodoviária vem no meio da trouxa de roupa lavada e
quem bota o recado lá é o tal de Pandeiro, que a gente nem conhece mas já sabe
que é um vagabundo, sem-vergonha e nem mora com a mãe. Elementar.
—
Onde será que ele mora? perguntou o André.
—
Não sei, mas acho que não é na cidade, disse o Junior.
—
Isto lá é verdade, concluiu o Douglas. Já perguntei pra um mundão de gente, lá
nos bares do centro, se alguém conhece este tal de Pandeiro, aonde ele mora e
muita gente conhece mas diz que ele se mudou daqui há muito tempo. Até ficaram
admirados de eu fazer perguntas à respeito de um marginal como ele.
—
O que vamos fazer Rafael? Contar para a polícia? perguntou a Débora.
—
Que nada. Vamos continuar a investigação. Teremos que interceptar a entrega da
roupa para ver o que está na trouxa.
—
Como? perguntaram as meninas.
—
Vamos pensar, comandou o Junior.
Uns
minutos depois, o silêncio profundo foi quebrado pelo próprio Júnior.
—
Já sei. Tenho um plano. Vou dizer qual é e, se vocês concordarem, vamos seguir
o meu palpite.
Ele
expôs o plano cuidadosamente e, depois de muita discussão, palavrões e
xingamentos, emendas e apartes, chegaram a uma conclusão final. E marcaram o
dia seguinte para começar a execução do combinado.
Não
era fácil D. Filomena lavava roupa pra uma porção de gente e era muito difícil
saber-qual era a trouxa certa em cima da cabeça dela. Era preciso fazer amizade
com ela para saber o dia certo. E tinham que ter cuidado com o tal de Pandeiro,
porque se ele aparecesse em cena e desconfiasse, era perigo na certa. Mas, eles
seguissem com a primeira parte das investigações, vigiando a casa do Sérgio,
poderiam ver se ela tinha dia certo para entregar a roupa limpa.
—
De agora em diante os caderninhos de quem fica na espreita precisam ter data e
hora, disse Rafael. Se vocês tivessem colocado dia, hora, estas coisas todas, a
gente já sabia de tudo agora.
—
Como é que a gente ia saber? reclamou Débora. Eu nunca fui detetive. É a
primeira vez.
—
Bem, agora a gente já sabe. Qualquer coisa que a gente anotar põe data
etecetera e tal, disse o Douglas.
Uma
semana depois, estavam prontos para entrar em ação. E era da ação que eles mais
gostavam, da aprontação gostosa e divertida, muito melhor do que estar vigiando
e tomando nota nos caderninhos, examinando as anotações, aquela chatura de
escrever a toda hora e ficar de olho nos outros. Verificaram as anotações e
Rafael tomou nota no seu caderno: 1º) Dona Filomena pega a roupa suja na
segunda e entrega na quinta, 2º) Dona Filomena entrega na quinta para três
casas. Sai de tarde com três trouxas, na cabeça e uma em cada braço, 3º) Dona
Filomena só entrega de tarde, de manhã ela lava e à noite ela passa, 4º) Cada
quinze dias o Pandeiro vem visitá-la de manhã, 5º) As trouxas ficam prontas em
cima de uma mesa, desde a noite anterior à cada entrega.
Tinham
descoberto tudo, tim-tim por tim-tim, sem ninguém desconfiar de nada, numa
brilhante investigação de equipe. Enquanto o André e o Douglas tomaram conta da
porta do Sérgio, seguindo o danado e olhando a porta, para chegar à conclusão
que a lavadeira entregava a trouxa toda quinta-feira e que, realmente, deveria
haver um recado dentro da roupa limpa pois, outra vez o Sérgio fora encontrar
com o estranho careca, só que desta vez o lugar era diferente. O resto da turma
foi dar um passeio de bicicleta pela manhã, lá para os lados da chácara da D.
Zilda Moreti. E, lá pelas bandas da casa da lavadeira Filomena, Raquel fingiu
cair da bicicleta, para o caso que alguém os estivesse observando.
Chegaram
até a porta da casa, a Raquel mancando e chorando, dizendo que a perna estava
doendo, a cabeça também, que doía tudo, a exagerada parecia toda quebrada de
tanto gemer, e bateram palmas. Quando um rapaz com um cabelo parecido com Bombril,
abriu a porta eles quase desmaiaram. O tal de Pandeiro, só podia ser ele que
estava ali em pessoa, perguntando o que eles queriam. Foi aí que a Raquel
desandou a chorar mesmo, só que de medo, e os outros, com vontade de chorar e
dar no pé, foram dizendo que ela tinha caído, que queriam dar água pra ela, que
eles estavam passeando de bicicleta por ali e que se podiam sentar e descansar.
Se não fosse por D. Filomena, que apareceu enxugando as mãos na saia, o
Pandeiro teria tocado a turma toda pra estrada, mesmo com a Raquel chorando.
—
Que foi, Pandeiro? Quem está aí?
—
Uns garotos mãe, só uns garotos, respondeu ele.
D.
Filomena foi um amor. Botou todos pra dentro do casebre, deu um copo de água
pra Raquel que não parava de chorar de medo, disse pro filho sair de perto que
ela cuidava deles.
—
Ih! meu filho é muito nervoso, sabe? E está mais nervoso ainda porque o carro
dele quebrou e ele está preso aqui há dois dias. Ele mora longe daqui e precisa
ir embora.
—
Tá bem, dona, a gente não liga não, disse Débora.
—
Filomena, é meu nome.
—
Tá bem, Dona Filomena. Eu acho que já vi a senhora na cidade, entregando roupa.
A
Débora tinha uma vocação para saca-rolhas, um talento inato e inusitado para
inquisidora, era mesmo uma interrogadora de primeira. Enquanto o Rafael, o
Júnior e a Raquel, que já tinha parado de ch6rar, ficavam ouvindo espantados,
ela foi arrancando tudo que queriam saber da Dona Filomena, num bate papo
descontraído, como quem não quisesse nada, só conversar, e a pobre da lavadeira
foi caindo direitinho contando como trabalhava, para quem trabalhava, que hora
entregava a roupa, tudo que queriam saber.
—
Agora ela está melhor e precisamos ir, disse ela. Gostei muito da senhora, Dona
Filomena, quando minha mãe precisar vou dizer pra ela dar a roupa de casa pra
senhora.
Todos
agradeceram e saíram, a Raquel fingindo que mancava, montaram nas bicicletas e
dispararam pra casa. No dia seguinte, de baixo da mangueira, na reunião
convocada com toda a patota presente, Rafael fez as anotações no seu caderno de
investigação.
—
Você se esqueceu de escrever aí que aquele tal de Pandeiro é horrível, maléfico
e perigoso, disse a Raquel.
—
Eu não aguento mulher burra, disse o André. Como é que pode haver um cara
gamadão nela?
—
Quem é que está gamadão em mim? perguntou ela ignorando a primeira parte.
—
Vamos parar com esta besteira, disse Rafael. Ninguém está gamadão em você. Eu
que não tô.
—
lh, Rafael, não se mete, tá. A conversa não chegou aí, respondeu ela ofendida,
passando as mãos nos cabelos louros e lisos.
—
Vamos ao nosso assunto, que é melhor. Como fazer pra pegar a trouxa da Dona
Filomena na quinta-feira?
—
Vamos roubar as três trouxas, que tal? disse o Junior.
—
Não, isto é bobagem. Quem se lembra da Dona Filomena chegando à casa do Sérgio?
—
Eu, disse a Débora. E muito bem.
—
Com quantas trouxas ela entra lá? perguntou o Rafael.
—
Só com uma, disse a Débora. É. Isso mesmo. Todas as vezes ela entrou só com uma
trouxa.
—
Quer dizer que devemos dar um jeito de pegar a trouxa antes de ela entrar na
casa do Sérgio. Aquela última trouxa traz alguma coisa dentro. Deve ser o
horário, o lugar de encontro, e tal e coisa, disse o Rafael.
—
E o tal de Pandeiro é que põe dentro da trouxa o recado pro Sérgio, concluiu o
Júnior.
—
Gente, temos três dias pra preparar tudo. Silêncio. Minhas massas cinzentas vão
trabalhar. Concentração geral, pessoal.
—
Lá vem o choque-choque outra vez, falou o André conformado.
— III —
A
quinta-feira chegou e ninguém foi pra aula. A patota sabia que quando as notas bimestrais
fossem enviadas com o número de faltas eles teriam muito que explicar, teriam
que achar uma boa desculpa e poderia haver um fuzuê danado em cada casa. Os
pais iriam querer saber por que tinham faltado, eles não contariam nem mortos,
haveria castigo e até, quem sabe, algum deles poderia apanhar. Contudo, estavam
firmes, dispostos a irem até o fim, mesmo sem saber o que poderia acontecer,
mesmo sabendo que poderiam ter os traseiros ardendo.
De
acordo com o combinado, o Douglas, por ser o mais velho e o mais alto, era o
indicado para seguir o homem careca. O caso tinha sido muito bem estudado
porque menor para viajar precisa de autorização paterna, e se o estranho
entrasse em um ônibus era pra ir atrás dele pra ver até onde ele iria. O
Douglas estava louco pra ir sozinho visitar a avó em S. Paulo e o pai dele já
tinha concordado, mas só nas férias, isto é, se ele tivesse boas notas, se
comportasse bem, essas coisas com que os pais chantageiam os filhos. Pois o
Douglas fingiu que as férias já tinham chegado, e que ele havia passado de ano
com cada notão de dar gosto, que ele tinha se comportado corno um anjo, e foi
até o juiz com uma autorização assinada por ele mesmo com o nome do pai, uma
assinatura muito fajuta que nem sei como caíram, e voltou com ela carimbada,
prontinha pra viajar pra qualquer lugar, para ser apresentada em qualquer
guichê de passagem. Em todo o caso, pelo menos tinha sido batida na máquina do
pai dele embora com muita dificuldade. E a turma toda fez uma vaquinha,
conseguindo uma boa grana pro bolso dele, caso fosse necessário seguir o
estranho homem careca até plagas distantes.
Na
quinta-feira, Débora e Raquel esperaram Dona Filomena perto da casa do Sergio,
Os outros ficaram por perto, o Rafael levando uma trouxa de roupa na cesta da
bicicleta. Tudo tinha sido muito bem combinado e ensaiado nos mínimos detalhes.
A trouxa de Rafael havia sido preparada com roupas velhas, bem dobradas e
ajeitadas. Quando viram Dona Filomena, a Raquel desandou a correr e se
esparramou no chão bem aos pés dela, desatando um berreiro de dar gosto. A
Débora que vinha correndo atrás, começou a chorar também, como de aflição.
—
Acho que ela se machucou, coitadinha, chorava.
Dona
Filomena reconheceu as meninas e queria ajudar, mas não sabia onde colocar a
trouxa de roupa limpa, toda embrulhada num alvo pano de saco e presa por um
alfinete.
—
Eu seguro pra senhora, ajude a Raquel, disse ela, tomando a trouxa das mãos da
lavadeira. Acho que ela se machucou ...
A
lavadeira nem desconfiou e se abaixou para ajudar Raquel que chorava
esparramada no chão como se tivesse machucado todas as partes do corpo. Rafael
veio por trás, de bicicleta, deu uma paradinha rápida, trocou as trouxas,
colocando nas mãos da Débora que ele levava na cestinha, também embrulhada num
pano de saco muito alvo, um baita alfinetão segurando tudo dentro, tudo roubado
das gavetas da casa dele. E se mandou seguindo em frente para o lugar combinado
onde iria encontrar o resto do grupo. Os outros meninos se aproximaram dizendo:
— oi! Dona Filomena, pode deixar que a gente cuida dela, esta menina vive se
machucando. A lavadeira retomou seu caminho com a trouxa fajuta na cabeça e a
criançada disparou para os lados do riacho para encontrar o Rafael. Lá abriram
a trouxa de roupa. da mãe do Sérgio e, dentro do bolso de uma camisa,
encontraram o bilhete.
Assim
estava escrito: "Quinta-feira 16h futebol".
Foi
um grito só que encheu o ar: Conseguimos! Conseguimos! Cada um fazia o possível
para se mostrar mais, rolando no chão, pulando nas costas de quem estivesse
mais perto, dando cambalhotas. Abraçaram-se e pularam, gritaram até acabar o
gás. Então, foram se sentando no chão, e ficaram olhando um para o outro. Foi o
André que fez a pergunta:
—
E agora. Conseguimos. O que vamos fazer com o bilhete?
—
E a trouxa de roupa limpa da Dona Filomena? Coitada dela, disse Raquel.
—
Vou botar minhas massas cinzentas pra funcionar. Pessoal, silêncio e ajuda na
concentração, pediu Rafael.
Aquilo
parecia estar virando rotina na vidinha deles. E, como já estavam acostumados
com o fato, ficaram em silêncio, ouvindo o choque-chocar acontecendo dentro da
cabeça do Rafael. Quando o cabelo do cocuruto ficou em pé e ouviram o grito de
eureca, o Júnior comentou:
—
Acabou a palhaçada.
—
Que palhaçada? Mais respeito! gritou Rafael.
—
Palhaçada mesmo, retrucou, palhaçada no duro. Porque você não pensa como todo
mundo e tem que fazer esta encenação e este barulho dentro da cabeça.
—
É que meu cérebro é um computador, quando eu ponho a funcionar minhas massas
cinzentas, as engrenagens lá dentro se mexem e fazem este barulho, explicou
Rafael.
—
Você é um robô ou o que? perguntou Raquel.
—
É um androide? perguntou Douglas.
—
Um extraterrestre? perguntou o André.
Rafael
não aguentou e deu um berro:
—
Cheeeeeeega! Eu sou de carne e osso. Vão parar com isso? Assim não dá pra
brincar. Vocês estão enchendo o saco!
A
Débora, maior e conciliadora, ficou de pé:
—
Chega pessoal. Por favor, tratem de respeitar a maneira de ele pensar. Estamos
perdendo tempo com discussões bobas.
—
Tá bem, Débora, para de encher o saco e dar uma de mãe, falou o Júnior.
Todos
se levantaram e esperaram as ordens das massas cinzentas.
—
Bem, o Douglas vai se preparar para vigiar o cara que estiver às 4 horas no
futebol. É. Deve ser o campo de futebol. Se vira, Douglas, finge que está
consertando a bicicleta, ou o que você quiser, mas vigie o cara, que deve ser o
careca, esperando o Sérgio. Ele vai fazer alguma coisa, tomar uma atitude
quando o Sérgio não aparecer. Aí você vai atrás do cara nem que for pra pegar o
ônibus. Se você demorar eu ligo pra sua mãe dizendo que você vai dormir em
casa, que chegou um filme novo pro vídeo, tá? Eu vou pegar a trouxa da Dona
Filomena e deixar na porta da casa dela, não sei o que ela vai pensar, mas não
vou dar este prejuízo pra ela, coitada. Estou de bicicleta e chego lá antes
dela que vai à pé.
—
Xi! a coitada vai pensar que é coisa da alma do outro mundo, falou o André
rindo.
—
É mesmo. E aposto que ela vai procurar minha mãe no centro espírita pra dizer
tudo e minha mãe, que não sabe das coisas que estamos aprontando, vai até fazer
sessão especial pra ela, riu o Júnior junto com os outros que, só de pensar na
coisa toda não conseguiram parar o riso.
Depois
de uns bons cinco minutos de risada, gozações pro lado dos espíritos, almas,
assombrações, fantasmas, almas penadas e considerações sobre o Pluft, o
Penadinho, a coragem de cada um no escuro, Rafael montou na sua Caloi com a
trouxa de roupa na cestinha e pedalou em direção da casa de D. Filomena.
Douglas, seguido pelos outros, entrou pé ante pé na garagem da sua casa e, sem
fazer o mínimo de ruído, retirou a sua Monark, pedalou em direção ao campo de
futebol e arrumou um bom lugar para espionar o careca que deveria chegar às
quatro horas. Os outros, andando e correndo, bufando e xingando, foram atrás e
arrumaram um bom lugar para espionar o Douglas.
Enquanto
a patotinha se preparava para atacar, transformando-se numa pedra do sapato do
Sérgio e do homem careca, a trouxa de roupa velha do Rafael se tinha transformado
num verdadeiro enigma. A mãe do Sérgio estava furiosa com a lavadeira e se
preparava para pegar seu Fusquinha para ir até a casa dela. Já o Sérgio estava
apavorado, quase chorando, sem ter a mínima ideia do que estava acontecendo.
Sabia que deveria haver um recado para ele, da parte do Pandeiro, para
encontrar com o careca que ele nem sábia como se chamava, pagar e receber a
grana do mês, receber a sua parte de erva e pó, e receber o material para
trabalhar. Não sabia se corria pro Pandeiro, se é que o bandido estava na
cidade, não sabia se chorava ou se fugia, com medo que tudo estivesse
descoberto e a polícia batesse na porta. A mãe dele, que nunca tinha nem
percebido um filho drogado e traficante dentro de casa, não percebeu o filho
assustado, aterrorizado e choroso que estava na frente dela. Só percebia que as
roupas da trouxa da lavadeira não eram suas e, se ao menos fossem melhores, e
tivessem alguma serventia, ainda dava pra aturar, mas não aquelas porcarias
velhas que nem pobre queria. O Sérgio saiu pra rua, na esperança de encontrar o
careca, foi em todos os pontos antigos e, por fim, desistiu e foi curtir seu
desespero fechado dentro do quarto, já que não tinha ido pra escola mesmo.
O
Douglas, sem nem pensar o que estava acontecendo com o Sérgio, (ninguém pensou
nisso, nem mesmo as massas cinzentas do Rafael) já estava cansado de esperar,
também, tinha chegado antes da hora, mesmo com toda lenga-lenga, quando pintou
na esquina de baixo carregando uma pasta 007 na mão esquerda e um embrulho
parecido com uma caixa de sapato na direita. Chegou em cima da hora, parou no
portão do estádio de futebol, que estava fechado àquela hora, e ali ficou
esperando, como quem não quer nada Olhava o relógio de pulso, sacudia as
pernas, andava uns passos rua acima e voltava. Até que desistiu e desceu a rua
em direção à rodoviária. Douglas não perdeu tempo, foi seguindo o homem e viu
ele se enfiar num boteco muito vagabundo da rodoviária, ficando meio escondido
e procurando não ser notado. A turma ia atrás do Douglas e ficou na esquina de
prontidão, mas o homem não saia do bar. Viram quando o Sérgio passou e olhou
pra rodoviária, disfarçaram trocando figurinhas, e ficaram contentes quando ele
se afastou, virando uma esquina, sem perceber que o careca estava metido no fundo
do boteco, fingindo que bebia uma cerveja. Viram quando o careca saiu do bar,
olhou para os lados quando chegou na porta e foi para o guichê comprar
passagem. O Douglas não pensou duas vezes: largou a bicicleta, fez sinal pra o
Júnior cuidar dela, e correu atrás do careca, ficando bem atrás dele no guichê.
Assim que o homem saiu pra entrar no ônibus que tinha acabado de encostar, o
Douglas comprou a sua passagem e conseguiu com a autorização que levava,
embarcar também.
—
Lá vai o Douglas realizar seu sonho dourado, viajar sozinho e de ônibus,
comentou o André.
—
É. Tomara que ele volte. Se ele não voltar minha mãe me mata, disse a Débora
que era irmã dele.
—
Vira essa boca pra lá, cruz credo. Vamos pra casa do Rafael, esperar que ele
chegue na esquina e contar pra ele que o Douglas viajou, falou Raquel.
—
É, falou o Júnior em cima da bicicleta do Douglas. Ele tem que tapear a família
dele, principalmente a D. Isa que não larga do pé dos filhos.
Nem
esperaram o ônibus partir. Deixaram o Douglas, meio apavorado com o rumo que as
coisas estavam tomando, sentado bem atrás da careca do homem, pensando como
enfrentaria a mãe quando voltasse tarde pra casa, roendo as unhas sem poder
tirar os olhos daquela cabeça sem cabelos. Ele nem viu quando o ônibus começou
a rodar, quando olhou pela janela já estava fora da cidade. Caderninho na mão,
foi tomando nota de todas as placas que apareciam na estrada. O homem não
desceu quando pararam numa lanchonete. Nem quando pararam na rodoviária de uma
cidade do caminho. Já estava escuro e muito difícil para ler as placas que
cruzavam o ônibus. Douglas estava sonolento, deu uma boa cochilada, já bem
longe de casa e, quando o ônibus diminuiu a marcha e encostou no acostamento,
Douglas acordou, levou uns momentos para descobrir aonde estava, olhou para
frente. A careca não estava lá. Ficou de pé e viu a careca descendo do ônibus
num lugar cheio de mato, com uma estradinha de terra saindo do asfalto. O
ônibus partiu e Douglas conseguiu ver o homem careca sumindo por ela na escuridão.
Douglas estava paralisado. Não teve coragem de descer e seguir atrás do
perseguido, pois a escuridão era grande e ele não era tão corajoso assim. Mas
teve a presença de espirito de ir até o motorista e se informar, perguntar o
nome da estrada, o quilômetro, a cidade mais próxima. Tomou nota no seu
caderninho e esperou o ônibus parar na primeira cidade, onde desceu para voltar
para casa. Quando desceu na rodoviária, de volta, já eram oito horas da manhã e
ele restava mais morto que vivo, de tão cansado, com fome e com sono. Entrou
pela cozinha da casa do Rafael e o danado ainda estava, todo folgadão, na cama,
dormindo corno um anjo.
—
Aí heim! O garotão na boa vida e eu aqui caindo de cansado, foi dizendo
Douglas, acordando o amigo.
—
Vai! Você queria que eu ficasse acordado fazendo o quê? Eu quebrei o galho pra
você. Sua mãe pensa que você dormiu aqui. Conta logo, como foi? Conta, cara.
—
Primeiro quero comer. Tô morto de fome. E numa canseira!
Enquanto
tomavam o café da manhã, Douglas foi relatando suas aventuras, mostrando as
anotações do caderninho, os quilômetros rodados, a ida e a volta, tudo tim-tim
por tim-tim, sem deixar escapar uma vírgula. Depois de terminar de comer e de
cortar, perguntou:
—
E agora, o que vamos fazer?
—
Reunir o pessoal debaixo da árvore e botar as minhas massas cinzentas para
funcionar, disse Rafael.
— IV —
Depois
do choque-chocar das massas cinzentas do Rafael e de seu delirante grito de
eureca! a patota esperava, pacientemente, pois já estavam todos acostumados com
a encenação e o ritual pensante, a manifestação do líder. E ele fez um discurso
e tanto, ficando patente que não desistia tão fácil de sua futura carreira de
político do ano 2010.
—
Meus companheiros de investigação e aprontações, estamos na hora da verdade.
Chegamos
a um ponto de nossas investigações que é covardia recuar. Portanto, quem quiser
desistir agora e calar-se para sempre para que nossos segredos não sejam
descobertos, estará desculpado. Chegou a hora da ação e da destruição.
Ele
teria ido mais longe no seu treinamento se o Júnior não protestasse:
—
Chega de babaquice, cara! Tá enchendo!
—
É mesmo. Apoiado! Fala direito, cara, gritou a Raquel.
O protesto foi geral, ninguém queria ouvir a
discurseira, o que fez com que Rafael acabasse concordando:
—
Em vista do protesto de todos os presentes aqui reunidos, vamos aos fatos, a
coisa vai pegar fogo. Aliás, eu tinha prometido isto, gente. Quem quiser
desistir, pode sair, mas tem que jurar que vai guardar segredo e silêncio.
— Alguém
quer desistir? perguntou o Júnior. É só
levantar a mão e sair, jurando antes, é claro.
Ninguém
se mexeu. Ninguém queria desistir, agora que estava tudo se esquentando, depois
da pasmaceira de vigiar casa durante tanto tempo.
—
Tá legal. Vamos ter de viajar de bicicleta, acampar, investigar fora da cidade,
a partir do ponto em que o Douglas parou.
—
Minha mãe não vai deixar, disse a Raquel.
—
Quem falou em mãe? Ein? Quem falou que vamos pedir para ir? Se a gente pedir, vocês acham que vão deixar? Claro que não.
Topam?
—
Topamos, gritaram todos.
—
Tá. Todo mundo vai se preparar para viajar. Mochila com comida, alguns itens
importantes ...
—
O que é Item? perguntou o André. Vê se fala direito.
—
Rafael pensou, pensou e respondeu:
— Item é coisa, é
isso. Coisa. Algumas coisas importantes e agasalhos. Eu arrumo uma
barraca. Vamos sair de madrugada depois de amanhã. Vou fazer uma lista do que
cada um precisa levar, porque se a gente sair muito carregado não vamos
aguentar. E vamos levar a Afrodite.
—
Se a gente levar a Afrodite a gente tem de levar comida de cachorro, reclame o
André.
—
Que nada, retrucou Rafael. Ela é esperta e pode cavar a própria comida. Ela é
boa pra tomar conta e defender a gente.
—
E a mamãe? Ela não vai deixar a gente sair, disse a Débora.
—
Vamos falar em casa que haverá uma excursão da escola, assim todo mundo sai bem
cedo como se fosse para a tal de excursão e fica esperando na esquina da
Farmácia São José.
—
Eu tô morto de cansado, gente, protestou o Douglas. Primeiro preciso dormir.
O
dia seguinte foi uma loucura. Os baixinhos, cada um na sua casa, procuravam o
que tinha de ser levado na mochila, segurando uma lista enviada pelo Rafael: um
saquinho de leite em pó, duas latas de leite condensado, duas latas de
salsicha, uma lata de apresuntado Swift, dez chocolates Prestígio, dez
chocolates Creck, dez Lolos, dez Cadilacs, dez sacos de batatinha Chips,
chicletes de bola, três latas de Coca-Cola e três de Guaraná Brama, um pacote
de baías, dois pacotes de amendoim torrado, dois pacotes de biscoito Maribel,
um pacote de pão, um vidro de Maiocrem, um copo de plástico, um abridor de lata
um rolo de papel higiênico, uma lanterna com pilhas e um canivete. Todos
deveriam se vestir com um training, uma camiseta por baixo, meias e tênis, ter
um pulôver amarrado na cintura. Além disso, cavar uma grana, quebrando
cofrinho, pedindo mesada adiantada, pedindo emprestado, tirando da poupança,
pedindo pro avô, vendendo algum brinquedo ou revistinhas.
Não
foi fácil encher as mochilas, ninguém encontrou na dispensa o que o Rafael
tinha colocado na lista. Mas se viraram, e no dia e hora marcados para o
encontro, lá estavam todos eles, sem desistentes, olhando o dia amanhecer,
silenciosos e ordeiros. Saíram em direção à estrada asfaltada, seguindo o
caminho anotado pelo Douglas. Pedalaram, pedalaram, pedalaram, cantaram,
cantaram, cantaram, riram, riram, riram, sempre pelo acostamento. Afrodite,
companheirona, trotando do lado.
—
Não aguento mais, preciso descansar e beber água, gritou o André.
—
Eu também, gritou a Raquel.
—
Vamos parar no primeiro posto de gasolina que tiver lanchonete. Preciso ir ao
banheiro, disse o Júnior.
—
Pra ir ao banheiro você pode entrar no mato ai mesmo que a gente espera, falou
o Douglas.
—
Negativo. É banheiro no duro pra mijar até que dava, mas eu preciso outra
coisa, respondeu o Júnior.
—
Bem, se é assim vamos acelerar que a gente deve achar algum, ainda não topamos
com nenhum.
Pedalaram
mais meia hora, o Júnior dizendo que se não aguentasse e desse vexame era culpa
do bandido que tinha inventado aquela investigação e aprontação, que ele
gostava de aprontar mas com banheiro por perto, que não sabia se ia segurar
aquela barra, que só tinha aquelas calças. Por sorte, um posto apareceu depois
de uma curva e eles quase morreram de rir, vendo o Júnior desabar pra dentro do
banheiro, a mochila quase caindo dos ombros, numa aflição de dar gosto.
—
Se eu soubesse que este cara estava com dor de barriga tinha adiado a saída pra
amanhã, disse o Rafael.
Se
não fosse a dor de barriga do Júnior eles não teriam encontrado o Pedrão, um
negrão enorme com a boca nua de dentes, mas um camaradão. Fez amizade com a
turma ali naquele posto e, sabendo para onde eles iam, ofereceu uma carona no
caminhão vazio que ia buscar carga em Mato Grosso.
—
Não é muito longe daqui. Não é muito longe de caminhão, mas rodando de
bicicleta, vocês vão levar uns três dias.
—
E o senhor dá uma carona pras nossas bicicletas também? Pra cachorra?
—
Dou. Vocês estão aprontando alguma coisa? Cadê os pais de vocês? E as mães?
Rafael respondeu sem perder tempo:
—
Que nada, seu Pedrão. Fazemos parte de uma turma de escoteiros que tem que
cumprir uma tarefa muito importante de autossobrevivência na selva, com o
consentimento de nossos pais e o apoio da comunidade.
—
Bem se é assim eu levo bem perto de onde vocês querem ir, disse o Pedrão
concordando em levá-las, mesmo porque não sabia o que era escoteiro, nem
autossobrevivência e muito menos selva, mas tinha gostado muito do discurso do
baixinho de óculos, isso tinha.
Com
esta ajuda do Pedrão e da providência divina que toma conta das crianças,
chegaram bem perto da estradinha por volta de duas horas da tarde. Estavam
mortos de fome e entraram no chocolate. Rafael foi avisando:
—
Cuidado pessoal, se a comida acabar a gente passa fome, a gente se ferra.
A
estradinha estava vazia. Era de terra mesmo, do jeito que o Douglas tinha
falado, e entrava pelo mato adentro, sem indicação e sem nenhuma placa. A
patota entrou no mato à esquerda dela e achou um bom lugar para acampar a uns
duzentos metros, bem escondido pela ramagem dos arbustos. Enquanto eles
tentavam armar a barraca que tinha vindo na cestinha da bicicleta de Rafael,
toda amarrada um pacote até que pequeno para uma barraca, porque era minúscula,
a Afrodite desapareceu no meio das árvores. A luta com a barraca durou urnas
quatro horas, tinha hora que eles pensavam que iam dormir ao relento, ficando
patente que, de armar barracas, ninguém entendia bulhufas, tanto meninos quanto
meninas. Erguiam de um lado, caia do outro, puxavam aqui, sobrava ali, faltava
pedaço, sobrava pedaço, menina chorava, menino xingava. Quando a danada ficou
armada, estavam todos em estado de calamidade pública, suados e arrebentados,
mais mortos que vivos, caídos no chão sem se importarem com formigas ou outros
insetos. Então, apareceu a Afrodite, toda lampeira, o focinho cheio de penas
grudadas como se estivesse passado cola, lambendo os beiços.
—
A danada achou o que comer! gritaram todos.
—
Au! Au! respondeu Afrodite.
A
emoção fora tão forte, a confusão tão formidável, que eles próprios tinham se
esquecido dos estômagos pedindo comida. Assim, como ninguém era de ferro, todos
fizeram uma refeição à base de salsicha e chocolate, beberam Coca-Cola e água
que acharam numa nascente não muito longe e foram dormir. No dia seguinte,
depois de um descanso merecido, começariam a vigiar a estradinha na esperança
que o careca passasse de novo por ali.
—
Pessoal, ordenou o Rafael, está escurecendo. Vamos dormir. A Afrodite fica
vigiando na porta. Todo mundo fazer xixi pra deitar.
—
Primeiro os meninos, disse André mergulhando no mato.
—
As meninas esperam aqui. Afrodite, toma conta delas, mandou Rafael.
A
cadela ficou sentada ao lado das duas, que tremiam de medo pois, além de
estarem sozinhas, estava escurecendo rapidamente. Quando os meninos voltaram já
estava escuro.
—
Tô com medo, falou Raquel.
—
Eu também. Não gosto de fazer xixi no escuro, falou Débora.
—
Não seja por isso. Eu seguro a lanterna pra vocês enquanto vocês fazem xixi,
disse Rafael, todo cortesia.
A
Débora assentou as baterias contra ele:
—
Não se atreva, seu cretino assanhado. Furo os teus olhos! Faço você engolir os
óculos. Dá a lanterna que nós vamos sozinhas.
—
Isso mesmo, arrematou a Raquel.
Foi
uma risada só, a turma rolando de rir do ralo.
—
Droga! Eu só quis ser educado, retrucou Rafael. Pode até ter cobra por perto!
—
Educado uma oval Você queria espiar as meninas, riam dele.
As
meninas voltaram logo e começou o drama de dormir todos numa barraca feita pra
dois, um pedacinho de chão apenas suficiente para abrigá-los sentados. A
operação exigia uma competência de doutorando em acomodações e embalagem e, na
escuridão, quando ninguém conseguia segurar a sua lanterna e se deitar ao mesmo
tempo, o tragicômico pasticho durou pelo menos uma meia hora. Enfim, o cansaço
era tanto que dormiram como puderam, perna em cima de cara, cara em baixo de
barriga, barriga virada pra baixo, pro lado e pra cima, bunda pra cima, pro
lado e pra baixo, braço torto pra esquerda, braço torto pra direita, pé pra
fora e pé pra dentro, uma loucura, parecendo um bolo de minhocas que ninguém
sabe onde começa e onde acaba cada uma. Só acordaram quando o dia estava
quente, suando em bicas, a barraca transformada num forno. André, o primeiro a
acordar, gemeu sufocado:
—
Sai de cima da minha cara, tô todo torto e sufocado!
O
Douglas com a bunda em cima da cara dele foi sacudido e, como não acordava
recebeu uma mordida pra valer na parte suculenta do traseiro e deu um grito que
fez a Afrodite latir e os dorminhocos acordaram, quase derrubando tudo. Foram
desembaraçando o nó de pernas e braços e saindo da barraca, e a Débora
perguntou, espreguiçando-se e endireitando o corpo torto:
—
Como será que estão lá em casa?
Se
ela soubesse, voltaria correndo. Na véspera, quando tinha começado a escurecer
e o Rafael ainda não tinha voltado da tal excursão com a escola, D. Cecília
telefonou para D. Carmem perguntando se os filhos, Júnior e Raquel, já estavam
em casa, depois para D. lia pra verificar o mesmo. As três ficaram preocupadas
e trataram de tirar a limpo a história da excursão que estava entrando noite
adentro. Quando descobriram que não tinha havido passeio nenhum com a escola,
entraram em pânico. As três se reuniram e telefonaram pra Deus e todo mundo,
mas não conseguiram descobrir o paradeiro da patota.
—
Sequestro! gritou D. Cecília, sequestraram nossos filhos! Como a Soninha!
—
Não, não, não! Não pode ser, chorava D. Carmem. Precisamos avisar nossos
maridos.
—
Eu sabia, eu sabia que se deixasse as crianças saírem nesta tal de excursão ia
dar bobagem. Porque eu deixei, meu Deus! gemeu D. Isa.
—
Não houve nenhuma excursão! Enganaram os coitadinhos e roubaram nossos
queridos, disse D. Carmem.
Chorando
juntas, as três mães foram até a delegacia dar parte do desaparecimento dos
filhos.
—
Não deve ser nada, as senhoras fiquem tranquilas, disse o Dr. Sandoval,
delegado de polícia, tentando acalmá-las. Nenhum bandido de juízo sequestra
seis de uma vez.
—
Quer dizer que quem sequestrou as crianças é louco? Oh, meu Deus! exclamou a D.
Cecília.
—
Não senhora, pelo amor de Deus, eu não disse isso. Só disse que não deve ser
sequestro. É aprontação de criança.
Mas
nada poderia acalmar as três mães juntas, quando uma falava, as outras falavam
ainda mais, quando uma chorava, as outras choravam ainda mais, quando uma
gritava, as outras gritavam ainda mais, a delegacia virando um pandemônio,
atraindo gente que passava para ver o que tinha acontecido, a notícia se
espalhando pelos quatro cantos da cidade.
—
Vão pra casa, calma, senhoras. Vou mandar os carros percorrerem a cidade e a
periferia, disse o delegado.
—
O Rafael saiu tão cedinho! Nem vi o menino sair, disse D. Cecília desesperada.
—
Os meus também, doutor, disse D. Carmem.
—
Também não vi minhas crianças saírem, disse D. Isa.
O
trio ficou sentado na sala da casa de D. Cecília, transformada em quartel
general, rezando e chorando, esperando que a criançada fosse encontrada. Quando
o marido de D. Cecília chegou do hospital, estava exausto, viu a mulherada ali
na sala em silêncio, caras inchadas de chorar, narizes vermelhos e fungando,
esperando, esperando, esperando, passou e foi para o quarto. Nesse momento
chegaram os outros maridos que ficaram ao lado de suas mulheres, curtindo a
fossa com elas. D. Cecília ficou brava e foi para o quarto, atrás do marido:
—
Você entra, não faz nada, a gente aflita aqui. Você sabe o que está
acontecendo?
—
Não e não quero saber. Onde está o Rafael? respondeu mal humorado.
—
Não quer saber? Pois é. Ele sumiu. Não houve excursão da escola coisa nenhuma.
Ele foi sequestrado! gritou ela, fora de si, desatando num choro incontrolável,
que podia ser ouvido a dois quarteirões de distância.
o
pai do Rafael ficou pasmado e, sem raciocinar, sem pensar nem mesmo um segundo,
começou a berrar, pondo a culpa na mulher de não tomar conta do filho, xingou
como um possesso, espumou e gritou. Depois que fez escândalo pra ninguém botar
defeito, caiu em SI:
—
Meu Deus, a polícia. Precisamos avisá-la.
—
Já fui, chorou D. Cecília. Sumiram os da Carmem e os da Isa também. Foram todos
sequestrados, como a Soninha.
Uma
hora depois a casa estava cheia de gente, amigos que vieram rezar, amigos que
vieram consolar, amigos que vieram xeretar, amigos que queriam ajudar. Todos
saíram, rodando de carro e andando a pé, pelas ruas do centro e pelos bairros
distantes, perguntando, indagando, investigando, procurando por seis crianças
que ninguém tinha visto.
Ninguém
conseguiu dormir, nem mesmo com calmante. Ficaram acordados esperando,
esperando, esperando com muita esperança.
Três
dias depois do acontecido, a cara dos seis patifes fujões aparecia em todos os
canais de televisão do país e eram mais conhecidas do que o rosto da Xuxa,
enquanto três mães choravam e se descabelavam e três pais não conseguiam
trabalhar. Enquanto isto os danados nem desconfiavam do fuzuê federal que
tinham aprontado e passavam os dias comendo banana roubada (a comida que tinham
trazido já havia ido embora), brincando de detetives, dormindo amontoados e
usando o mato como banheiro, mas sem tomar banho.
Os
dias foram rolando, uma semana inteira se arrastando, os seis cada vez mais
sujos e fedorentos. O pior pedaço da coisa acontecia na hora de dormir, um
sufoco, um reclamando do cheiro do outro, cada um rescendendo mais que gambá.
Quando já estavam por lá há uma semana, todo mundo estava pelas tabelas. Estava
anoitecendo e era hora de entrar pra toda barraca e dormir, porque a noite era
escura e tinham medo até de vagalume. O André foi o que puxou o assunto:
—
Não aguento mais comer banana. Porque fomos achar aquele bananal? Acho que
nunca mais vou comer banana na minha vida. Eu queria estar em casa.
—
Quero ir pra casa, chorou a Raquel. Vamos pegar as bicicletas. Vamos embora já,
mesmo no escuro. Quero dormir na minha cama.
—
Nunca pensei que eu tivesse vontade de tomar banho, falou o Douglas. Logo eu
que 'bati o recorde de ficar uma semana sem entrar dentro d'água.
—
Quero dormir na minha cama e ver minha mãe, chorou o André de novo.
Nunca
pensei que família e casa da gente fosse tão importante, suspirou a Débora.
Um
rosário sem fim de lamentações começou a ser desfiado nos ouvidos do Rafael que
só ouvia e nada dizia, mesmo com vontade louca de correr para a casa dele. Por
fim, fazendo-se de durão decretou:
—
Tá bom! Se até amanhã à tarde não acontecer nada a gente volta e pronto. Pra
falar a verdade também não estou aguentando mais. Não aguento mais este tênis
no pé, tá tudo coçando aqui dentro. Vou tirar o tênis pra dormir.
—
Ah não. Não e não, disse o Júnior e todos concordaram.
—
Não por quê? Não aguento mais este desgraçado no pé.
O
Júnior não fez cerimônia:
—
Você tirou ontem pra tirar uma pedrinha e nós tivemos que sair de perto.
—
Mas está cheio de lama ...
—
Se você chulezar dentro da barraca não vai dar, eu vomito, falou a Débora.
—
E a lama? insistiu Rafael.
—
Quem se importa com lama=No estado que a gente tá, lama é limpeza, falou o
André.
—
Chulé não e não, falou o Douglas. A gente já tem catinga demais aqui dentro.
—
Tá bom! Vou dormir com barro. Venceram. Afinal o que é um pé sujo de barro em
relação a seis latas de lixo? Se nada acontecer amanhã o melhor é voltar mesmo,
concordou conformado.
—
E levar uma surra por termos fugido, falou o André.
—
Que surra que nada. Vão ficar tão contentes de ver a gente de volta que não vai
acontecer nada, concluiu o Júnior muito sabido.
Deu
sorte. O magro careca desceu do ônibus quase no fim da tarde, vindo de outra
direção, e pegou a estradinha, pasta 007 na mão, num passo sossegado, sem
pressa. O André e a Raquel que estavam na espreita correram para avisar a
turma, o Júnior e o Rafael escalados para seguir o homem mesmo depois de
escurecer. E escureceu rapidamente. Lanternas na mão, auxiliados por uma bela
lua cheia que deixava tudo bem claro, os dois deram uma boa corrida pela
estradinha de terra até avistarem o careca. Seguiram o danado por uns bons
quilômetros, a Afrodite trotando do lado, até que as pernas não aguentaram mais
esticar, e o homem não chegava a lugar nenhum. Estavam para deitar no chão, no
meio da estrada, quando o careca se meteu no mato à esquerda e sumiu. Os dois
se arrastaram até o lugar e descobriram uma porteira que mal escondia uma casa
de sítio. Entraram com cuidado, pois havia luz na casa, esperando latidos de
cães, pois qualquer casa de sitio que se preze tem cachorrada, mas não viram
nem ouviram barulho dos animais.
—
Não aguento mais, primeiro quero descansar, depois vigiar, disse Rafael.
—
Eu também cara. Vixe Santa! Tô botando os bofes pra fora e minhas pernas estão
tremendo, falou o Júnior. Nunca pensei que pra brincar de detetive precisava
ter tanto preparo físico!
Andaram
ao redor da casa, a Afrodite cheirando tudo quanto é pauzinho e pedrinha no
chão, detetivando também, e toparam com um telheiro enorme onde cinco carros
grandes, cinco Mercedes, estavam abrigados.
—
Vamos descansar dentro de um deles. Um fica na frente, o outro atrás, sugeriu
Rafael.
—
Não, vamos ficar juntos, e com a Afrodite no banco de trás. A gente se ajeita.
Sozinho eu não fico. Pode até me chamar de cagão.
Os
dois se deitaram na parte de trás de um dos carros, o Júnior, maior, no banco,
o Rafael abraçado com a Afrodite, no chão. Mas os coitados nem chegaram a
dormir. O carro foi chacoalhado quando a porta se abriu e ocupado por dois
homens, um deles o careca. O Júnior escorregou para o chão junto com o amigo
que fazia sinais para, pelo amor de Deus, não falar, não fazer barulho e depois
de dizer ao ouvido da Afrodite para não dar um pio, ainda segurou o focinho
dela por via das dúvidas. Quase foram descobertos:
—
Que catinga está aqui dentro! Vamos abrir as janelas. De onde vem este fedor
danado? Chulé com bodum! É preciso lavar o carro!
Abriram
as janelas e um vento forte entrou pelo carro que rodou durante umas boas três
horas, com os três, dois meninos e um cachorro na parte de trás, clandestinos
que tremiam de medo e não ousavam mover um só músculo, as pernas adormecidas,
os olhos arregalados, quase não aguentando mais e preferindo se entregar.
Quando os dois já pensavam ao mesmo tempo, chega de brincar, eu vou me entregar,
o careca quebrou o silêncio:
—
Nós vamos até o chefe, não é? Nunca fui até lá. Acho que vou ser promovido pelo
meu trabalho na minha região. Houve um pequeno contratempo há uns dias atrás,
mas já está tudo sob controle:
—
É, respondeu o outro. Pode ser.
—
Como é o chefe? Você conhece o poderoso senhor?
—
Nunca vi o homem e nem quero ver. Nós não falamos com ele. Só com o sub--chefe,
Pouca gente chega perto do poderoso chefão. Só tem segurança em volta dele! Um
exército!
-—
Quem será ele? perguntou o careca.
—
Sabe de uma coisa? Você está perguntando demais. Se você quer continuar vivo é
melhor parar por aqui. Se perguntar demais será um homem morto. Dizem que o poderoso
senhor tem uma fera, um bicho selvagem, para devorar quem ele acha que está
importunando.
—
Tô calado. Sou um túmulo. Não quero morrer assim. Deus me livre.
Este
diálogo confortador fez com que a vontade de se entregar e parar de brincar de
detetive sumisse da cabeça dos dois clandestinos. Se abrisse a boca ou fossem
descobertos, a vaca ia pro brejo e seria comida de bicho, isso eram favas
contadas.
Quando
o carro parou já estavam até meio abobados, mais desmaiados que acordados. Os
homens desceram, sumiram numa casa grande e os três voaram, pra fora do carro,
se arrastando pelo chão até uma moita de plantas e ali ficaram até o dia
clarear, uma hora depois, botando o corpo em ordem num merecido repouso.
—
Não aguento de fome, falou o Rafael, mostrando que estava novinho em folha.
—
Eu também, minha barriga está fazendo um barulhão, tá ouvindo? Perguntou o
Júnior, também ressuscitando.
—
Não, não tô. Tô ouvindo só a minha, disse Rafael.
—
Você é um egoísta. Só se importa com a sua fome.
—
O que vamos fazer agora?
—
Vou botar minhas massas cinzentas pra funcionar, disse o Rafael. Se é que
sobrou massa cinzenta depois deste massacre que a gente sofreu.
O
baixinho sentou-se no meio das plantas, cruzou as pernas, colocou as mãos nas
têmporas e abaixou a cabeça. O choque-choque não demorou a aparecer, mostrando
que as massas cinzentas iam bem de saúde, muito obrigado. Choque-chocou por um
tempinho, o cabelo do cocuruto arrepiou e, quando ia gritar eureca, o Júnior,
muito previdente, se a tirou em cima dele, tampando a boca com as mãos,
recebendo em troca uma mordida. O eureca saiu estrangulado e o Júnior pê da
vida com a dentada, jurando que, na primeira oportunidade tiraria uma desforra
pra valer, o Rafael xingando a mão suja do Júnior na boca dele.
—
Tira esta mão cheirando a merda da minha boca!
—
É bom parar por ai, disse finalmente o Júnior. Depois a gente acerta as contas,
tim-tim por tim-tim. Que vamos fazer? O que disseram as massas cinzentas?
—
Vamos mandar a Afrodite buscar o resto da turma e ficar esperando. Pela
distância vão demorar um bocado pra chegar aqui. Enquanto isto a gente procura
se arrumar e vigiar os bandidos.
E
para a Afrodite:
—
Vai buscar o resto da turma. Correndo!
Afrodite
obedeceu e partiu, corno uma seta negra disparada, em direção ao acampamento
onde Douglas, Raquel, Débora e André esperavam, sentados dentro da barraca, um
encostado no outro. Quando a Afrodite chegou estavam desesperados, sem saber se
iam embora ou não, famintos pois não tiveram nem coragem de sair e roubar um
cacho de banana, sem sair de perto da barraca. Quando viram a cadela criaram
alma nova.
—
Ou eles estão em perigo ou mandaram pra avisar a gente, palpitou o André.
—
Peguem as bicicletas, vamos seguir a Afrodite, disse a Débora.
—
É isso mesmo, concordou o Douglas. Mas vamos encher a mochila de bananas elevar
com agente. Nunca se sabe.
—
Tá legal, falou o André. Vamos comigo Raquel, vamos buscar um lindo cacho desta
fruta maldita e encher as garrafas de água.
— V —
Enquanto
a Afrodite, muito obediente, saia na disparada para buscar o resto da patota,
Júnior e Rafael descansaram mais um pouco enquanto o sol esquentava, curtindo
uma fome danada. Os bandidos tinham sumido pra dentro de uma bela casa e com
certeza, também descansavam. Depois, quando o sol já estava alto, os dois se
arrastaram para fora do esconderijo em que se tinham metido e deram uma boa
olhada no local. Era uma beleza de lugar, cheio de casas de veraneio, quase
todas fechadas, à beira de uma porção de água, muito azul, parecida com um lago
enorme e muito manso, ancoradouros para lanchas, jardins floridos, muito verde,
muita árvore, areia formando praias. Júnior e Rafael viram, ao mesmo tempo, um
terraço muito grande de uma casa, e perceberam que lá poderiam vigiar o lugar
dos bandidos. Era uma bonita casa de campo, branca, estilo colonial, toda
rodeada por um terração, com ganchos de rede e plantas penduradas. Além disso,
estava fechada, os donos longe esperando as férias para habitá-la, dando uma
sopa danada, chamando dois meninos sem casa. Os dois rodearam o terraço,
fuçaram tudo, examinaram todas as janelas, verificaram as portas da frente e do
fundo, viram a linda lancha guardada na casa de barcos, foram até o
ancoradouro, andaram pelo quintal e pelo jardim.
—
Que pena, uma boa base para nossas investigações, sem gente, e não vamos
conseguir entrar, disse o Júnior pesaroso. Será que tem caseiro?
—
Não tô vendo gente por aqui, acho que não tem.
—
Será que eles não deixaram uma chave escondida por ai? Muita gente grande faz
estas coisas, deixam uma chave escondida para o caso de esquecerem em casa...
Vamos procurar? Você olha nos fundos que eu olho na frente.
Rafael
começou a caçada, revirou os vasos, os parapeitos das janelas, os cestinhas, os
vasos de planta do terraço, mas foi o Júnior que achou, debaixo do tanque, numa
latinha velha, bem escondidinha. Não serviu na porta da frente mas não deixou
os dois na rua; era da porta dos fundos.
—
Poxa! Que sorte! riram felizes da vida.
Os
dois entraram na casa e vasculharam tudo, procurando comida. Acharam um freezer
estourando de tanta coisa boa, uma dispensa bem sortida e roupas limpas nos
armários.
—
Vou tomar um banho pra valer, disse o Rafael. Nem eu tô aguentando o meu
cheiro. Nunca na minha vida pensei que um dia eu iria tomar banho sem ninguém
mandar.
Enquanto
tirava a roupa e ficava peladão pra entrar numa boa chuveirada, foi comandando:
—
Oi cara, veja se o gás está ligado e ponha uma panela de água no fogo. Depois
tire umas salsichas do freezer, também uns pãezinhos que eu vi na gaveta de
baixo. Depois do banho vou fazer um cachorro no capricho. Se você quiser faço
pra você também, sou cobra numa cozinha.
—
Entra logo no banho, cara, depois vou eu. É pra já. Vou encher a cara de tanto
comer, pode crer.
—
Quando a turma chegar aqui vai se deliciar, riu o Rafael.
Depois
de um bom banho, roupas limpas no corpo, mesmo que estivessem largas, comeram
sanduíches com muita mostarda e ketchup, dois guaranás tamanho família, dois
rocamboles, dois patês de biscoito e um salaminho inteiro. Que felicidade!
Combinaram
que não acenderiam luzes na casa e nem fariam barulho para não despertarem
suspeitas, afinal era uma casa fechada, os donos ausentes, era melhor que não
aparecessem, que ficassem bem quietos para poder melhor vigiar a casa dos
bandidos. Além disso, poderia aparecer alguém para cuidar do lado de fora, que
estava muito bem tratado, e verificar a casa. Fora a comida e o banho, a cama
para um bom sono, as roupas emprestadas, não mexeriam em nada, deixando tudo na
casa como tinham encontrado. Pelas três horas da tarde o careca saiu com outro
homem em direção ao ancoradouro. Entraram numa lancha e sumiram de vista. Pela
lógica, concluíram que ali não poderia ser a casa do chefão, pois várias vezes
a lancha chegou e partiu, sempre transportando gente. Eles não tinham a menor
ideia do lugar-que estavam, nunca tinham estado ali, só sabiam que era muito
distante de casa.
—
Não podemos sair daqui enquanto o resto do pessoal não chegar, disse o Rafael.
É
pena porque perdemos o careca de vista. Tenho certeza que a Afrodite vai trazer
todos aqui.
—
Mas se qualquer um que seguir o caminho do careca, isto é, o caminho da água,
deverá chegar na casa do tal poderoso senhor, você não acha?
—
Acho, cara, claro que acho. Você tirou as palavras da minha boca.
Os
dois ali ficaram, vigiando cuidadosamente a casa vizinha, comendo os congelados
do freezer, dormindo em boa cama, usando o banheiro, mas deixando os banhos de
lado que ninguém era fanático, sem ascender luzes, sem ligar rádio, som ou
televisão, sem fazer muito ruído, bem comportados. A turma demorou mas chegou,
num bagaço de dar gosto, com muita fome e mais sujos do que o Cascão. Ficaram
vagando atrás da Afrodite, como um bando de ciganos fedorentos, e só sossegaram
quando viram os amigos abriam. Sentaram-se todos em frente ao aparelho, dando
uma trégua na investigação à casa vizinha, prontos para curtir uma aventura
colorida mas, todos os canais só tinham jornal, uma chatura. Era até melhor
desistir, desligar aquele assunto cretino mas, de repente, para espanto de
todos, ali apareceu, bem na frente deles, os próprios rostos, umas caras de
anjo sorrindo, sorrindo na tela da tevê.
—
Olha a gente aí, não acredito, exclamaram.
—
É o meu retrato pra carteirinha do clube!
—
Poxa, tinha foto melhor pra botar aí na frente de todo mundo!
—
Que vocês acham que está acontecendo?
—
Sileeeenciooo! Vamos ouvir.
—
... “estas são as crianças que desapareceram. A última vez que foram vistas
estavam pedalando, saindo da cidade pela rodovia estadual”.
—
Vixe Santa, exclamou o Júnior, não dá pra acreditar.
—
Quieto, babaca, gritou o André, depois o falador sou eu.
Ficaram
de queixo caído, olhos esbugalhados e mais moles que purê de batata quando
viram os próprios pais sendo entrevistados, contando como os filhos tinham
sumido, a tristeza que sentiam, no desespero que estavam mergulhados. O pai do
Rafael ficou grande na tela, só o rosto aparecendo barbudo, e foi falando:
"Se as nossas crianças foram raptadas, peço e imploro às pessoas que nos
fizeram esta maldade que nos devolvam todos eles, pois nada temos para oferecer
a não ser um pouco de dinheiro e nossas vidas. Se elas fugiram de casa, peço a
todos, principalmente a você, Rafael, que voltem, pois são muito queridos e
estamos muito tristes sem vocês".
Rafael
levantou-se e desligou a tevê. Todos estavam chorando, fungando e chupando o
nariz. E explodiram num buá de dar gosto:
—
Vamos voltar pra casa, gritou o André. Eu sempre fui contra esse negócio de
brincar de detetive.
—
Quero minha mãe, choraram as meninas.
—
Tô arrependido, choravam outros.
Depois
de uma meia hora de lamentações, gemidos, assoar nariz na manga, choro pra
valer, Rafael resolveu o caso:
—
Gente, vou botar minhas massas cinzentas pra funcionar.
—
É por causa dessa merda da sua massa cinzenta que estamos aqui, protestou o
André.
Rafael
respondeu logo:
—
É. Você tem razão, cara, mas por causa delas nós estamos vivendo uma grande
aventura, a maior de todas, não é? Quem que vocês conhecem já viveu uma
aventura tão delirante?
—
Ninguém, concordaram. Nisso você tem razão.
—
Então, ajudem na concentração que vamos ver o que fazer. Minhas massas
cinzentas nunca falham.
Os
chorões sentaram-se em volta do amigo que, agiu novamente dentro do seu ritual:
olhos fechados, cabeça baixa, mãos nas têmporas e o inconfundível choque-choque
se espalhando pela sala meio escura. E, finalmente, o cabelo do cocuruto
arrepiando, o grito de eureca ecoando pela casa e se espalhando pela vizinhança
e fazendo os pombos que moravam no forro do terraço voarem assustados.
—
Não grita assim, cara. Tá doido? protestaram assustados.
Ficaram
imóveis para ver se não aparecia alguém para investigar o barulho mas, fora os
pombos que voltaram para o forro do terraço, não houve indício de que o famoso
grito tivesse sido captado por ouvidos humanos, estranhos e inimigos.
—
Bem, já que estamos seguros, vamos ver o que minhas massas cinzentas
transmitiram. Nesse momento de dúvida, quando nos achamos nesta situação em que
nossa aventura tem a grande chance de terminar como o sonho de uma noite de
verão ...
—
Droga! Lá vem ele de novo com discurso! Corta essa, cara, protestou o Douglas.
—
Tá mais é ficando biruta. Que é que tem um sonho com a família da gente
chorando em casa? perguntou a Raquel.
—
Calma, pessoal, tô treinando, transmitindo o que eu li. Mas parece que ninguém
entende nada! Desde quando vocês são burros?
—
Desde sempre. Agora volte ao assunto sem discurso, arrematou o Douglas. Senão
não brinco mais e volto já pra casa.
—
Tá bom, concordou o futuro político. Tá bom. Vamos telefonar pra casa, se é que
vocês sabem o código de lá, eu não sei. Vamos dizer pra mãe que estamos bem e
que voltaremos logo. Depois vamos sair daqui, parar de vigiar e dar um jeito de
seguir a lancha, a primeira que sair daquela casa.
—
Tá, concordou o Douglas. Agora é a minha vez de mostrar minhas habilidades. Tem
uma lancha aqui, eu dou um jeito de fazer ela pegar e acho que consigo dirigir
a danada. Tá escurecendo e eu preciso enxergar. Vamos logo.
Correram
para o telefone. Discaram e cada um foi enfrentando uma mãe chorosa e dizendo
que não sabiam onde estavam, só que tinha um grande lago em frente da casa, que
não estavam resfriados, que não tiveram dor de barriga, que o intestino estava
funcionando direitinho, mas fazia um tempão que não escovavam os dentes e já
tinham tomado um bom banho, só que estavam um pouco sujos, não haviam sido
sequestrados, que estavam numa importante missão secreta para resolver os
problemas dos jovens e crianças, que não podiam dizer qual era a missão, se era
secreta não poderiam contar, ora bolas, que logo, logo mesmo, iriam pra casa e
estavam morrendo de saudades. O que eles não sabiam é que os federais tinham
tomado conta do caso deles e que todos os telefones estavam grampeados e que a
polícia em poucos minutos conseguiu localizar o local do chamado e acionado as
viaturas policiais necessárias para buscar e apreender os menores sumidos.
Quando os investigadores ali chegaram, encontraram a casa vazia, eles já tinham
desaparecido porque o Douglas, muito sabido, tinha feito uma ligação direta na
lancha, depois de, com muito esforço de todos, colocar a embarcação na água.
Ele tinha resolvido com maestria todos os problemas de fios e botões e os seis
patifes seguiam um outro barco pilotado por bandidos. Quem levou a pior foi o
dono da casa onde eles tinham se hospedado, que não tinha nada com o caso, nem
ao menos sabia que sua casa de campo havia sido ocupada por seis garotos
aprontadores, mas que foi interrogado pela polícia, teve de arrumar advogado
para defendê-la e estava sendo o suspeito número um do sequestro da turma e não
conseguia provar sua inocência.
Mas
os seis não se importavam com os baratos e fatos acontecendo na retaguarda.
Estavam encantados, brincando de seguir bandidos numa lancha Cabrasmar modelo
Whaler com dois motores Opala marinizados deliciados com o possante desempenho
da máquina e o vento gostoso batendo na cara. Havia anoitecido, mas uma imensa
lua cheia iluminou tudo como um lampião. Foram seguindo o rastro espumoso e,
depois de algum tempo, a lancha dos bandidos pegou um braço de água, deslizando
por ele alguns quilômetros. Foi diminuindo a velocidade até ancorar num
trapiche que dava para um imenso gramado ajardinado, todo iluminado. Os meninos
passaram por eles quase em seguida e a Raquel gritou:
—
Pararam ali. Vocês sabem parar isto?
—
Não, gritaram os outros.
—
Só não sei como parar, disse o Douglas, o resto eu sei.
—
Vixe Santa! exclamou o Júnior. E agora?
—
Desliga o motor, cara, olha a direção, gritou o André. Vamos dançar, vamos
dançar, tamo fudido.
—
Olha as meninas, gritou o Douglas, manera nos palavrões.
A
chave foi tirada do contato e o barco foi perdendo a velocidade até ficar
parado bem no meio daquela imensidão de água.
Acharam
um remo no fundo da lancha.
—
Aqui tem um remo, gritou o André. Quem vai remar?
—
Eu, respondeu o Douglas. Sou o mais forte de todos.
—
Corta essa, cara. Eu também sou forte, reclamou o Rafael, gritando.
—
Corta você, baixinho. Vai ficar ai brigando ou quer que a lancha encoste na
margem?
Deixando
o outro resmungando, o Douglas remou um bom tempo até conseguir encostar num
barranco, onde não dava para desembarcar. Com jeito, foi levando o barco até um
ponto em que todos puderam descer para terra firme, uma pequena enseada onde
esconderam a embarcação com ramos e prenderam firme, bem ancorada, com uma boa pedra
de lastro. A Afrodite que tinha enjoado um bocado durante a viagem e vomitado
até a alma, o que ninguém duvidava que ela tivesse, pois só faltava falar, foi
a única que precisou de algum tempo para se recuperar. Contudo, estavam um
bocado longe do ancoradouro dos bandidos.
O
André foi O primeiro a falar:
—
É só seguir a margem e vamos chegar lá. Que tal a ideia aqui do papai?
—
Genial, concordaram todos. De vez em quando você dá uma dentro!
Chegar
até onde pretendiam não foi fácil terreno era mole, pastoso, o mato cheio, a
distância grande, só o luar iluminando tudo, mas finalmente chegaram nos
limites da grande propriedade, separada do resto da área por uma cerca de arame
farpado, muito junto e difícil de ser transposto. Foi um safari e tanto aquela
caminhada da patota.
—
Cave, Afrodite, mandou Rafael, junto à cerca farpada.
A
Afrodite que tudo entendia e obedecia, cavou um bom buraco debaixo do arame por
onde os garotos passaram deitados e se esfregando na terra para o outro lado,
entrando assim no território inimigo. E ainda rastejaram pelo mato por algum
tempo até chegarem ao pé de uma árvore de onde podiam ver todo o panorama. Uma
casa enorme, um castelo branco muito lindo, se plantava no fim no grande
gramado, meio escondida por árvores e plantas, não podendo ser vista se olhada
do ancoradouro ou do meio do lago. Pelo gramado, andando de um lado para o
outro, um bom número de homens armados patrulhavam o local. Vestiam capas onde
escondiam as armas. Três homens levavam pela corrente, três enormes filas, que
não tinham cara de amigos.
—
Gente, falou o Júnior, estes bichos vão farejar a gente logo, logo.
—
É, concordaram os outros. Vamos virar comida de cachorro.
—
Precisamos fazer alguma coisa, continuou o Júnior. Eu tenho um tio que caça
onça em Mato Grosso ...
—
Do Sul ou do Norte? interrompeu o André, lembrando-se das aulas de Geografia.
—
Mas você é burro mesmo, cara. Tanto faz, eu não sei qual Mato Grosso, pronto,
já me interrompeu ... tinha que interromper ... puta que pariu!
—
Não esquenta, cara, continua, pediu Rafael.
—
Tá bom, dessa vez passa, mas que eu tenho vontade de acabar com gente burra eu
tenho ... Ele, o meu tio, caça onça e ele diz que para despistar a pintada é
preciso se sujar de terra, de mato. Acho que com faro de cachorro isto deve
funcionar.
Boa,
Júnior, vamos nos sujar, concordaram os meninos. As meninas foram contra.
—
Nós já estamos sujas de terra. Ficamos imundas passando pelo buraco que a
Afrodite fez. É porquice demais.
—
Tá bem, vocês são frescas mesmo. Eu não vou perder esta boa oportunidade de
rolar numa honesta terra feita por Deus, disse o Júnior, dono da ideia.
Os
meninos rolaram no chão, segurando o riso que queria sair livre e feliz, as
meninas torcendo o nariz de tanta porcaria.
—
Bem, descobrimos o esconderijo dos bandidos. Só pode ser aqui com este bando de
gente armada. E agora? Estou com medo mesmo, e não tenho vergonha de falar, sentenciou
a Débora.
Ficaram
alguns instantes parados, meditando sobre as sábias palavras da Débora. Rafael
finalmente falou, tirando todos do transe:
—
Não posso por minhas massas cinzentas funcionando neste momento de grande
perigo em que ...
—
Neca de discurso, eu fujo, eu grito, protestou a Débora.
—
Poxa gente, tomaram assinatura comigo. Eu não ia fazer discurso. Tava dizendo
que o que eu vou falar foi decidido por mim mesmo e não pelas minhas massas
cinzentas.
—
Então, pode falar, pediram. Mande brasa!
—
Meninas, vocês ficam em cima de um árvore, subir em árvore qualquer um pode.
Nos, os homens, vamos entrar lá, e apontou para a mansão branca e perigosa.
E
virando-se para a cadela preta:
—
Afrodite, é a sua vez, tapeie os cachorros, leve os brutos para o mato bem
longe. Eles precisam sair daqui.
Enquanto
as meninas subiam numa árvore copada, com a ajuda dos cavalheiros, de onde
poderiam avistar todo o cenário sem serem vistas, a Afrodite se levantou,
esticou o rabo com muita graça e elegância, fez pose de maneca em passarela, e
começou a andar, toda rebolante e insinuante, desfilando pelo gramado em
direção aos ferozes filas. Com passinhos leves de bailarina, toda descontraída,
pisando nas pontas dos dedos das patas, virando a cabeça para olhar os três
animais como que escolhendo um para companhia, ela desfilou garbosa e elegante
pela passarela verde do gramado, passando bem no focinho dos três que pararam,
latiram, babaram, esticaram as correntes e graniram. Assim que passou por eles
no seu passo de bailarina canina, ela disparou para o mato do outro lado do
jardim gramado. Foi a conta. Os três cães como que enlouquecidos, desataram
numa corrida desenfreada atrás dela, arrastando os homens nas pontas das
correntes, que davam ordens, gritavam, mas não eram obedecidos. Quando a
Afrodite pulou uma sebe espinhenta, quase na beira do mato, os três cavalheiros
seguiram a dama, saltando também por cima do espinheiro. Contudo, os três
homens que seguravam as correntes não conseguiram fazer o mesmo e se
estreparam. Um deles deixou o dedo pendurado, com um baita anel de ouro e urna
pedra verde brilhante, bem num galho alto. O segundo homem ficou mergulhado
dentro do arbusto, estatelado no meio da selva espinhosa, e o terceiro
conseguiu atravessá-la e correr mais um metro antes de largar a corrente, mas
parecia um porco-espinho, todo espetado, e sangrava por todos os poros. A Afrodite
desapareceu no meio do mato com os filas atrás dela e os homens armados até os
dentes se reuniram em volta dos pobres coitados alfinetados, deixando a área
descoberta. Os meninos, aproveitando o fato, correram para a porta traseira da
mansão, mergulhando dentro dela, deixando as duas garotas penduradas como jaca
num galho de árvore, rindo pra valer do que estava acontecendo lá em baixo.
— VI —
Depois
que entraram na casa do inimigo, os quatro garotos atravessaram uma pequena
área de serviço interna, cheia de tralhas amontoadas, onde não havia viva alma
e entraram numa enorme cozinha. Mesmo sujos e fedorentos ninguém prestou
atenção neles, por mais incrível que pareça. A cozinha estava bem iluminada,
mas a agitação era tão grande que puderam atravessá-la sem nenhum incidente e
se meter debaixo de uma mesa encostada perto de uma outra porta, coberta por
uma toalha xadrez que quase chegava ao chão. Ficaram ali por um bom tempo, sem
serem molestados, observando o movimento por baixo da toalha. Só meninas
trabalhando, como que hipnotizadas, caladas e rápidas, umas descascando batatas
e picando verduras, carnes, cebolas e cheiro-verde, outras nas panelas dos
fogões, tampando e destampando, mexendo com colher de pau, outras lavando
louças empilhadas, outras arrumando e enfeitando os pratos com coisas lindas e
cheirosas de dar água na boca. Eram pudins monumentais cobertos por calda de
açúcar e enfeitados com morangos vermelhos e por chocolate, batatas fritas,
leitão à pururuca com maçã na boca, peitos de peru coberto por molhos
coloridos, um sem fim de pratos saborosos que as meninas aprontavam em
silêncio, todas elas lindas e arrumadinhas, vestidas de baiana, roupas brancas
cheias de babados, rendas e fitas, turbante listado de vermelho e azul na
cabeça, loiras, morenas ou negras, todas de uma belezura de dar gosto. Parecia
que estava havendo uma grande festa, um banquete de arromba, tal a quantidade
de comida que saia de lá depois de fabricadas nas enormes panelas. De vez em
quando tocava uma campainha estridente que fazia com que duas meninas saíssem
pela porta ao lado da mesa onde se escondia a patota, carregando uma bandeja
com uma das finas iguarias.
Depois
de observar, examinando o trabalho das bailarinas e babarem com vontade de
entrar de sola nos lindos pratos, pois fome nunca faltava, um olhou para o
outro e por meio de sinais, que ninguém era besta de falar por ali, passaram
pela porta que estava ao lado da mesa esconderijo. Um grande corredor vazio,
onde se ouvia música e muitas vozes, cheio de portas fechadas, desembocava num
imenso salão rodeado por imensas cortinas vermelhas que se arrastavam até o
chão. O salão estava pouco iluminado e a luz da lua cheia entrando pelas
janelas abertas e favoreceu os garotos que nem olhando o que estava dentro dele,
se enfiaram atrás das cortinas, colando-se contra a parede. Ali ficaram
imóveis, catatônicos, ouvindo a música que saia lá de dentro, as poucas vozes e
risadas enlouquecidas que cortavam o ar. Só depois que quatro corações
começaram a bater normalmente e pararam de pular dentro de quatro peitos, é que
foram andando devagarinho, rente a parede, até um ponto em que poderiam espiar
o salão por uma pequena fresta da cortina, olhando cada um pouco para ver o que
estava acontecendo no pedaço. E viram, ficando com as pernas moles, a boca
seca, as mãos tremendo, uma vontade louca de correr e sair dali, mijando nas
calças de tanto pavor. Uma música suave enchia a sala e os ouvidos deles, vinda
não se sabia de onde, mas nem o som gostoso acalmava os garotos. Lá estava ele,
o poderoso senhor, o maligno, enorme, imenso, pura banha se derramando de um
corpo disforme, sentado em enormes almofadas vermelhas cor de sangue. Era tão
gordo que derramava para fora do vermelho, vestido apenas com um short branco
encardido e, quando se virava com dificuldade, muito lentamente, o rego
aparecia no traseiro branco, quase todo para fora, muito branque, corpo e
traseiro, nojentas pipocas vermelhas cobrindo a pele de lesma descascada. O
rosto, enfiado no corpo quase sem pescoço, era curiosamente magro, lembrando
uma múmia nariguda, careca e senil.
Rafael
cochichou baixinho no ouvido do Júnior:
—
A cabeça dele parece com um tal de Ramses, uma múmia que eu vi num livro meu
pal.
Como
pode ser magro na cara e gordo embaixo? Pode? cochichou o André horrorizado.
—
Que puta barriga! Nunca vi igual. Nem a do meu avô é assim! disse o Rafael.
Aquele
rosto chupado que parecia pertencer a outro corpo fazia parte de uma cabeça
enfiada num pescoço de touro e olhava pra frente com dois olhos miúdos
semifechados. De cada lado do mostrengo uma mulher velha, duas velhas ao todo,
gordas como porcas, com dentes escuros e tortos, rindo alto e se xingando com
cabeludos palavrões, com vozes roucas e desagradáveis. E, ao pé dele, um enorme
jacaré com uma coleira de ouro com pedras preciosas, que abria e fechava a boca
mostrando a fileira de dentes pontiagudos e brancos. Estava amarrado numa
pilastra que saia do chão, por meio de uma corrente grossa. Enquanto a música
enchia o ar com uma melodia suave, um grupo de meninas vestidas de odaliscas,
lindas e graciosas, dançavam, umas de amarelo, outras de rosa, outras lilás.
Bem no meio delas reconheceram a Soninha, que horror, a paixão do Douglas e do
Júnior, rebolando como escrava de filme americano para aquele monstro gorduroso
com cara de múmia. Mal podiam crer nos próprios olhos. Tiveram que piscar
várias vezes e dar beliscões fortes nos braços para que tivessem certeza de ser
tudo realidade e não apenas um pesadelo.
O
Douglas falou baixinho:
—
Me segurem. Me segurem pra eu não fazer uma besteira. Pra eu não ir até lá,
como o Rambo faz, e acabar com o monstrengo, amassar aquela cara de múmia
paralítica, chutar aquela bunda nojenta, pegar a Soninha e levar embora.
—
Calma, calma, vamos com calma, disseram os companheiros segurando o Douglas
como se, realmente, ele tivesse coragem para tanto.
Assim,
com o Douglas satisfeito pelo faz-de-conta-que-eu-quero-ser-Rambo, continuaram,
medrosos, a observar o ambiente.
Então,
todas as luzes do salão se acenderam, iluminando tudo feericamente, e de vez em
quando, pela mesma porta por onde eles tinham entrado, apreciam duas baianinhas
da cozinha, carregando uma bandeja de ouro com iguarias para o poderoso senhor
e suas duas mulheres. Que nojeira, tirava o apetite de qualquer um ver como ele
enfiava tudo inteiro pela boca enorme, que tinha na cara miúda acabando com uma
travessa em menos de um minuto, ajudado pelas horrorosas velhas. Os sucos e
molhos escorriam pelo queixo e aninhavam-se no peito gordo, lambuzando toda a área
da pança.
Ao
lado do monstrengo havia uma porta fechada que, de vez em quando se abria,
deixando passar por ela uma lourinha vestida de grega, em branco e dourado,
sandálias amarradas nas pernas. Quando ela surgia a música parava como que por
um milagre e todas as dançarinas e bailarinas, quem quer que estivesse dentro
do salão, com exceção dos seguranças armados, ficaram imóveis, brincando de
estátua, um braço no ar, uma boca aberta, uma perna levantada, um corpo
torcido, em mil posições diferentes, duros como se fosse de pedra. A menina
loura, vestida de grega, falava alto: “O poderoso senhor do mal, dono absoluto
de todo o comércio de drogas, acaba de conquistar mais duas cidades do interior
do Rio de Janeiro”. Ou então em outro estado qualquer, mas sempre abocanhando
as cidades para seu nefasto comércio. Ou então ela falava: “O poderoso senhor
do mal acaba de ganhar mais duzentos mil dólares”. E outras quantias foram
mencionadas, chegando a mais de um milhão de dólares só naquele pouco tempo. E
falavam coisas semelhantes, dando notícias ao patrão e dono da droga, do
progresso de seus negócios, mostrando que o império e o poder daquele monstro
crescia, a cada minuto. E ele, o gordão untuoso com cabeça de múmia, o verme
nojento ria de gosto com seus olhos semifechados e seu nariz adunco indo para
cima e para baixo. As duas velhas juntavam-se a ele no coro de gargalhadas de
prazer. Depois, a grega lourinha saía de volta para os escritórios da mansão e
os homens armados que cercavam o poderoso senhor batiam palmas, a música
aparecia no ar novamente, as odaliscas continuavam a dança e as velhas
recomeçavam o seu cacarejo doido e os xingamentos com palavrões alucinantes, o
jacaré continuava abrindo e fechando a boca esperando uma comidinha. A
comidinha chegava quando uma das meninas não conseguia ficar imóvel no jogo de
estátua. Ai as velhas gritavam numa voz esganiçada que mais parecia um
cacarejo: "Eu vi. Eu vi. Ela se mexeu", e apontavam com o dedo gordo
a coitada da baiana ou odalisca que tinha ousado se mexer.
—
Joguem a insubordinada para o jacaré, gritava o poderoso senhor delirante de
prazer.
Os
seguranças arrastavam a infeliz que ia gritando e berrando não, não, não,
enquanto as velhas riam ainda mais alto e o monstrengo arrotava, o jacaré de
tocaia, já de boca aberta e garfo na mão, esperando a comida tenrinha que fazia
com que ele babasse, a boca cheia d'água. E mastigava a coitada que só gritava
no começo, pois o jacaré sempre começava pela cabeça, estalando os ossos num
creque-creque de bolacha sequinha, de torresmo pururuca mastigado, e ia
engolindo o resto, que já não gritava mais, pois onde já se viu tronco, braço e
perna gritar?
Os
quatro clandestinos do salão estavam arrepiados.
—
Daqui não saio nem morto, cochichou o André.
—
Nem eu. Podem me chamar de cagão. Eu sou um cagão. Perdi até a fome de ver o
que eu vi aqui hoje, disse o Rafael baixinho.
Todos
estavam catatônicos, o grande senhor das drogas era mais monstro do que tinham
pensado, do que tinham ousado imaginar.
As
horas foram se passando, as luzes do salão diminuíram. Finalmente o homem
monstruoso fez sinal que queria se levantar. Quando os seguranças armados
vieram ajudar o grande senhor que pretendia se retirar, a música parou, as
meninas correram para dentro, provavelmente contentes por estarem livres do
malvado e por terem sobrevivido ao jogo de estátua. O jacaré foi amarrado, suas
mandíbulas fortemente atadas, um pano colocado na fachada do bruto e as velhas
se retiraram, uma dando tapa na outra, uma chutando a bunda da outra. Precisou
um bando de homens para colocar o monstro em cima dos pés tortos e disformes, o
short branco encardido caindo perna abaixo deixando aparecer as coisas todas,
os homens levantando o short, tentando tapar inutilmente o rego do traseiro. A
batalha terminou com o poderoso senhor gemendo e arrotando a cada passo e sendo
quase arrastado para fora do salão, as luzes diminuindo de intensidade, e os
quatro meninos aterrorizados espiando toda a cena grotesca por uma fresta de
uma grande cortina de veludo vermelho. O elefante de cabeça seca foi levado
para fora do salão gritando ordens como reforcem-a — segurança,
aumentem-as-luzes-lá-fora e não-quero-ser-incomodado-até-amanhã-cedo, e
não-ousem— me-desobedecer.
—
Ufa! Pensei que ele nunca mais fosse sair dali! exclamou Rafael baixinho.
—
O mesmo digo eu. Precisamos sair daqui e avisar a polícia, disse o André.
—
Primeiro quero achar a Soninha pra levar a gatinha com a gente, disse o Júnior.
Sou gamadão nela.
—
Isso, porque eu também sou vidrado nela, arrematou o Douglas.
—
Primeiro vamos pegar alguns desses caras desalmados que trabalham para o
monstrengo, disse o Rafael. Eu tenho um plano ...
—
Peraí! protestou o Júnior. Nada de choque-choques.
—
Podem ficar tranquilos. Eu tenho um plano sem usar minhas massas cinzentas,
assegurou Rafael.
—
Ainda bem, disse o André. Eu queria ver você dar o seu grito de guerra dentro
deste castelo de bruxos.
—
Fala logo, mas vê se não vai fazer aqueles discursos chatos, recomendou o
Júnior.
—
O caso é o seguinte: preciso que o André chegue até o jacaré e traga a corrente
que está na coleira dele.
—
Você tá delirando, cara! retrucou o André, Nem morto!
—
André, faz isto pra mim, que eu cheiro o seu tênis por dentro. Pode até tirar o
fedorento do pé.
—
Nem morto, nem cheirando o meu tênis, nem nada e pronto.
—
Ô saco! Tá legal. Mas eu te pego, cara. Na próxima vez que você me pedir um
favor, pode esperar o troco, seu cagão!
Os
outros concordaram:
—
Cagão mesmo.
—
Cagão, porém vivo, retrucou André.
Rafael
tirou os óculos, colocando-os no bolso da camisa, e se arrastou devagarinho
pelo chão do enorme salão vazio, em direção ao bicho. Dava, de vez em quando,
uma paradinha, se imobilizava, encostando a cabeça no chão, depois olhava para
os lados e prosseguia no rastejamento. O jacaré estava imóvel, deitado numa
poça de sangue quase seco, paradão. As mandíbulas amarradas, os olhos cobertos
por um pano jogado em cima da cabeça, parecia dormir com a barriga cheia
esparramada no chão. O menino se aproximou de mansinho, usando sempre a mesma
tática, evitando a proximidade da cauda, com medo de uma rabada, e, com
cuidado, tirou a corrente que prendia o feio animal a um pilar. Ainda
rastejando, voltou com a corrente para o esconderijo atrás da cortina de veludo
vermelho. O jacaré ficou no mesmo lugar sem se mover, parecia empalhado.
—
Ufa! Nunca pensei que eu tivesse coragem! suspirou aliviado, quando se viu
protegido.
—
Pra falar a verdade, nem nós, foi a opinião dos amigos.
—
Agora, já que peguei a corrente, vou completar a minha obra com uns pedaços de
cano que vi antes de entrar na cozinha, naquela área de serviço, cheia de
cacarecos. Vou fazer um lindo Chaco pra rebentar com a cabeça de bandido.
—
Chaco? O que é isso? perguntaram curiosos.
—
Vocês verão. Esperem eu voltar, e não arredem o pé daqui.
Não
foi difícil para o baixinho encontrar o que já tinha visto. A casa parecia
deserta. Só se ouviam passos dos guardas, o menino se escondendo e evitando
encontrá--las. Atravessou a cozinha vazia, agora à meia luz, e chegou onde
queria sem topar com a segurança, embora sentisse a presença dela. Quando
chegou de volta ao esconderijo, os companheiros já estavam cansados de esperar,
preocupados com a ausência dele, achando que ele estava preso. Com a arma na
mão, dois pedaços de cano de ferro amarrados nas extremidades da corrente com
os cadarços dos tênis, estavam prontos para a execução de um plano bolado com a
inspiração do último filme de Kung Fu.
—
Vamos acabar com eles numa ação conjunta, como a SWAT, disse o Júnior. Quanto
mais bandidos eliminassem, mais fácil seria para todos, mais vingados estariam,
mais heróis se sentiriam.
—
Quero ser herói, mas não quero morrer, disse o André. Herói morto não vale
nada, quero ser um tremendo herói vivo.
—
Tô com você, sabidão, concordou o Júnior. Vamos agir, mas com cuidado. E
começaram a ação.
Saíram
do esconderijo, andando pela casa à procura de bandidos. Quando havia um à
vista, um bandido para ser abatido e massacrado, o André punha o seu ratinho em
funcionamento. Esse ratinho nunca saia do bolso dele, e era usado para assustar
as meninas na escola. Era um ratinho muito simpático, amarrado com uma linha de
plástico, muito fina, tipo linha de pescar, quase invisível, e, quando era
puxado, parecia que andava, causando grande reboliço entre as garotas e grandes
risadas dos meninos. Pois o André se escondeu atrás das portas, nas curvas dos
corredores, atrás das cadeiras, sofás ou móveis, esperando pacientemente que um
guarda aparecesse. Então, puxava o fio devagarinho, com maestria, e o guarda,
infalivelmente, se abaixava para ver o que era aquilo, um ratinho de bombril,
tão estranho e diferente. Bandido abaixado, o Rafael também surgia do
esconderijo arrumado, aparecia por trás, fazia rodar o chaco e malhava a cabeça
do malvado, massetando os ossos com gosto. Bandido no chão, entravam o Júnior e
o Douglas, mais forte, em ação, puxando o corpo pelos pés, escondendo-o em
algum lugar qualquer, atrás de uma cortina, atrás de algum sofá, debaixo de
algum móvel. Õ primeiro atacado ficou com o crânio rachado. O barulho do osso
se quebrando foi assustador. O segundo recebeu um golpe tão forte que separou a
cabeça do pescoço e tiveram que puxá-la, primeiro o corpo vazando sangue e
depois chutar a cabeça, fazendo com ela um belo gol debaixo do sofá; o
terceiro, recebendo um golpe mais fraco, só desmaiou e foi amarrado; o quarto e
o quinto não se abaixaram para examinar o ratinho de bombril, por isso
receberam o golpe na altura do estômago, e um pouco das tripas saiu pelo buraco
feito, dando um trabalhão, pois tiveram que empurrar com o pé, a linguiçona
para dentro da barriga.
O
número de bandidos, que parecia pequeno no começo, foi se avolumando, e começou
a cansar os meninos.
—
Tô cansado, já não estou achando graça eliminar bandidos, comentou o Douglas.
—
E eu estou todo sujo de sangue, tá ficando sem graça, disse o Júnior.
—
Tô com vocês, concordo com tudo, disse o Rafael, mas a tarefa é suja e tem que
ser levada até o fim. Senão, como tiramos a Soninha daqui, como vamos acabar
com o gordão?
—
É, meu, tem razão, concordaram todos.
Quando
um bandido pisou no ratinho, rodando o bico do sapato, como se ele fosse um
inseto, o André não aguentou mais. Saiu do esconderijo, largou o fio e pulou em
cima do homem, gritando:
Seu
miserável, filho da puta, você pensa que o meu ratinho é uma barata qualquer?
O
homem segurou o pequeno pela camisa, levantando-o como um filhote de gato e
gritou, chamando outros guardas, que apareceram como por passe de mágica. Os
outros meninos entraram no ringue com a fúria de um Maguila. O tumulto tomou
conta do local, gritos furiosos foram emitidos, houve chutes, mordidas, socos
no ar, caneladas, cabelos arrancados, dedos nos olhos, mas, finalmente, os
quatro foram dominados, bem amarrados e levados para um quarto escuro.
Ali
na escuridão, sem que pudessem se movimentar, os quatro estavam aturdidos.
—
Poxa! Estava tão certo! choramingou o Júnior.
Um
dos bandidos tinha feito um comentário e saíra rindo, deixando os garotos
cabreiros:
—
Amanhã o jacaré vai ter o melhor café da manhã da vida dele.
Apavorados
e zonzos com os acontecimentos e com a virada da sorte, viram que a luta
parecia ter chegado ao fim, fim deles mesmos, comida de jacaré. Culparam o
André:
—
Tinha que dar uma de galinho, tinha? Pode? Não podia ficar quieto onde estava?
O André foi categórico:
—
Ninguém pisa em ratinho meu e fica por isso mesmo!
—
Claro, não ficou, ficou? Ficamos nisso aqui, presos e amarrados, com morte
decretada, condenados, respondeu o Douglas.
Rafael,
pasmado e sério deu sua opinião:
—
É castigo, violamos os direitos humanos massacrando bandidos, esmigalhando
crânios criminosos, estraçalhando barrigas vorazes, arrebentando cabeças de
homens que ganham a vida honestamente drogando crianças indefesas, violamos os
direitos humanos de bandidos. É castigo mesmo, gente.
—
Corta essa, cara. Até na hora da morte você tá fazendo discurso! reclamou o
Júnior. Assim não dá.
—
É isso ai, falou o Douglas, já se recuperando do choque inicial. Larga de dar
uma de conselheiro. Há humanos e humanos.
—
Você acha que eles não são seres humanos? perguntou o André.
—
Bem, são seres humanos mas só na carne. A alma deles é nojenta, acho que não é
nem alma humana, raciocinou o Douglas.
—
É toda cheia de bichos, toda bichada. A alma. O espírito. É. Não dá pra ser
gentil com gente dessa espécie, concluiu o Júnior.
—
Vocês acham que a gente não violou os tais direitos humanos? perguntou Rafael.
—
Pelo visto eu acho que não, respondeu o André e todos concordaram com ele.
—
Ufa! Estou mais aliviado, obrigado pessoal por este apoio moral. Vocês me
tiraram um peso enorme da consciência. Posso morrer em paz!
Depois
destas considerações altamente filosóficas, Rafael chegou a uma brilhante
conclusão:
—
Então, se estamos com a razão e não violamos os direitos humanos destes
bandidos cidadãos, porque estamos presos aqui? Não vamos morrer em paz! Se não
merecemos castigo, não teremos castigo. Alguma coisa vai acontecer e salvar a
situação, podem acreditar.
—
É sua massa cinzenta que está dizendo isto?
—
Não. Eu, Rafael, estou dizendo. E ponto final.
Então
um deles lembrou:
—
As meninas! Será que elas ainda estão em cima daquela árvore?
Estavam
em cima daquela árvore, estavam cansadas, no escuro, esperando os garotos que
não apareciam.
—
Débora, não consigo enxergar nada. Está tudo tão quieto lá embaixo.
—
Eu também não vejo nada há muito tempo. Tô louca pra fazer xixi.
—
Eu também tô apertada. Vamos descer?
—
Vamos, decidiu a Débora. Tõ cansada de ficar aqui em cima, pendurada que nem
fruta. Eles estão demorando demais. Acho que a gente deve descer, fazer xixi e
dar uma olhada. Também estou com fome.
As
duas desceram da árvore e, depois de um gostoso e aliviante xixi, juntamente
com a Afrodite, foram rodeando o mato até chegarem em frente a entrada dos
fundos, onde tinham visto os garotos sumir. No gramado da frente, iluminado por
holofotes de luz amarelada dois vigilantes patrulhavam a área. No ancorado, um
outro de plantão. Os cães não tinham voltado, só Deus sabia o que a Afrodite
tinha aprontado com eles. Assim, as duas garotas não tiveram grandes
dificuldades em chegar até a cozinha, que estava vazia e onde aproveitaram para
comer uns restos de comida que acharam em cima da pia. Dali passaram para o
grande corredor, examinando cada cômodo da casa com muito cuidado, se
escondendo quando ouviam vozes ou passos. Numa das salas a porta semiaberta
mostrou um bando de homens jogando baralho. Subiram uma imensa escadaria para o
andar superior e abrindo uma das portas depararam com um salão cheio de camas,
um grande dormitório cheio de meninas, somente iluminado por uma lâmpada muito
fraca. Uma delas sentou-se na cama e perguntou:
—
Quem são vocês? Aqui é o dormitório das odaliscas.
Como
as duas não soubessem o que responder e ficassem caladas, ela continuou:
—
Vocês são novas? Acabaram de chegar?
—
É isso aí, responderam as duas juntas. Acabamos de chegar.
Algumas
meninas dormiam. Outras choravam baixinho, outras chamavam as mães, outras
rezavam.
—
Olha a Soninha ali, gritou a Débora apontando para uma garota sentada bem perto
delas.
Foi
um Deus nos acuda, abraços, três beijinhos para casar, choradeira, a Soninha
perguntando da família, contando como fora levada para aquele lugar tenebroso,
o terror que sentia a cada segundo, o medo de nunca mais voltar para casa, as
pobres companheiras todas na mesma situação, achando que nunca mais sairiam
dali.
—
Olha Soninha, comandou a Débora decidida. Fiquem calmas. Vamos tirar vocês
daqui.
—
Você é que pensa. Daqui ninguém escapa. Eles pagaram vocês também, não pegaram?
—
Negativo, disse Raquel. Acredite se quiser, mas entramos aqui por livre e
espontânea vontade.
—
Verdade, disse a Débora. Somos investigadoras numa missão impossível.
A
Soninha começou a chorar:
—
Coitadinhas de vocês. Estão loucas. Estamos na mesma situação. Vocês não viram
o monstro que manda em tudo. Se vocês vissem como ele é horroroso e cruel, não
teriam feito isto. Não seriam tão otimistas, não estariam com essa cara.
—
Não estamos sozinhas, explicou a Débora. Temos um cachorro muito valente, e mais
quatro garotos estão com a gente. O Rafael, o André, sabe, aquele pequeno irmão
do Douglas e que por acaso é meu irmão também, e o Júnior, irmão da Raquel.
—
Eu sei, disse a Soninha, conheço os gatinhos. Aliás, já paquerei dois deles.
Vou contar pra vocês como foi. Eu ...
—
Tudo bem, deixa pra lá, depois você conta. Vocês fiquem prontas para sair daqui
que eu vou procurar os meninos. Eles entraram aqui e não saíram. Devem estar em
alguma encrenca por aí ...
—
Não foram eliminados porque eu estava no salão onde acontecem as eliminações,
disse a Soninha.
—
Eliminados?
—
Comidos pelo jacaré.
—
Jacaré?
As
recém-chegadas estavam de olhos esbugalhados, espantadas e amedrontadas.
—
Jacaré, respondeu a Soninha. Uma enorme fera que o bruxo controla. Ela come
gente.
—
Bruxo? perguntaram as duas.
—
A gente chama o monstrengo de bruxo, mas é pessoa como qualquer um de carne e
osso. É muita banha. É feio, feio mesmo, gordo pra chuchu e com uma cara
chupada de múmia. Muito estranho. Ele controla todo o tráfico de drogas e é
muito rico. Acho que é o homem mais rico do mundo e também o mais feio e o mais
malvado.
Soninha
começou a chorar.
As
outras meninas tinham se levantado e todo o bando rodeava Débora e Raquel.
Todas chorando concordaram com as explicações da Soninha e com a descrição que
ela tinha feito do dono daquele castelo. Débora ficou pensando. Ela teria que
tomar uma decisão e resolver o que fazer. Perguntou:
—
E quando vocês dormem, estão aqui no quarto, vem alguém vigiar vocês?
—
Nem precisa, respondeu a Soninha, falando por todas elas. Todo mundo está tão
aterrorizado que nem pensa em fugir ou fazer alguma coisa fora do regulamento.
O regulamento diz pra gente não sair do quarto depois que entra aqui. Mas tem
gente vigiando na casa e lá fora.
—
Tá. Preparem-se. Vamos ter que fugir a pé. Temos um barco mas é muito pequeno
para todo mundo. Eu e a Raquel vamos procurar os meninos. Lá embaixo não estão,
já olhamos tudo. Tem uma porção de gente que não dorme aqui, não? Ficam andando
pela casa, jogando baralho numa sala ...
—
É, são os guardas, ruins que nem cobra-venenosa, e muito bem armados. Estou
boba de ver como vocês entraram aqui! Eles dizem sempre que é impossível entrar
no castelo.
—
Deve ser por isso mesmo, falou a Raquel que tudo ouvia em silêncio. Estão tão
confiantes que nem perceberam a gente.
—
É, deve ser isso, concordou a Soninha. E os meninos? Onde estarão? Aqui em cima
não devem estar, aqui nesta ala só tem grandes dormitórios e banheiros. O nosso
dormitório, o das baianas que trabalham na cozinha e na limpeza e o das gregas
que trabalham nos escritórios e nos computadores.
—
Quer dizer que existe mais meninas por aqui? perguntou a Raquel.
—
Xi! Uma porção. Todas roubadas e sem esperança de voltar pra casa.
—
O que há na outra ala? perguntou a Débora.
—
Os aposentos do poderoso senhor, seus tesouros, seus cofres com muitos milhões
de dólares, os aposentos de seus guardas particulares e de duas velhas nojentas
que vivem do lado do monstro, duas-bruxas desalmadas que só falam palavrões.
—
Tá. Dá pra você avisar todas as meninas para ficarem prontas para fugir assim
que eu der o sinal?
—
Tenho medo, um pouco de medo, de tentar sair daqui. Quer dizer, muito medo. Mas
vou tentar, prometeu a Soninha.
—
Isto, você tem que deixar todas preparadas, não pode falhar. Coragem, Soninha,
falou a Débora.
—
Vou fazer, prometeu Soninha. Vou ter coragem.
—
E, além destes lugares aonde posso procurar aqueles pestes, onde poderiam ficar
se foram presos?
—
Bem, acho que no porão, disse a Soninha. No hall de entrada há urna porta que
desce para o porão. Só os bandidos descem lá, é proibido pra nós, quem desce
vai parar na barriga do jacaré. Tomem muito cuidado.
As
duas meninas saíram com todas as informações a procura da tal porta para o
porão. A casa parecia mais animada. Dentro dos quartos havia muitas vozes, as
duas não sabiam, mas os guardas estavam discutindo se deveriam informar ao
poderoso senhor a captura de quatro espiões dentro da mansão. Não queriam
incomodar o chefão com problemas, nunca houvera uma invasão ali, não sabiam o
que fazer. Além disso ele ficava uma fúria, chegava a espumar corno cachorro
louco quando era incomodado nos seus aposentos e as velhas não resolveriam
nada.
Nem
desconfiando o que estavam os homens do poderoso senhor discutindo, Débora e
Raquel procuravam abrir uma porta que saia do lindo hall de entrada, revestido
de mármore preto e branco. Estava trancada.
—
Puxa, gostaria de ser o MacGuiver, ele abre qualquer porta até com um sutiã,
disse a Raquel.
—
Você nem usa sutiã, não adiantaria ser o MacGuiver.
—
Credo, não precisa ofender, retrucou a Raquel.
—
Tá bem, mas nós temos que dar um jeito e descer até lá.
—
Eu sei o jeito. Não é do MacGuiver mas é da Raquel e não preciso nem de sutiã.
—
Pois pode ir desembuchando que eu não tenho nenhuma ideia, respondeu a Débora.
—
Vamos ficar escondidas atrás daqueles dois jarrões e esperar que alguém desça.
Eles
abrem a porta e nós vamos atrás, é claro.
—
Boa, vamos tentar, concordou a Débora. Espero que não seja necessário esperar
três dias ...
De
fato, a Raquel tinha visto dois jarros enormes enfeitando o lugar. Eram tão
grandes que qualquer um poderia ter visto o objeto, mas a Raquel viu a
utilidade deles como esconderijo e isto foi ótimo. As duas se enfiaram atrás
deles e esperaram o que pareceu uma eternidade e foi muito tempo mesmo. Passava
guarda para um lado, guarda para outro, não muitos, é verdade, nem muitas
vezes, mas nenhum chegou até a porta para descer ao porão. Mas finalmente, um
homem abriu a esperada porta com a chave e desceu as escadas em direção ao
porão, assoviando.
As
duas garotas esperaram o homem desaparecer lá embaixo e, cautelosamente
desceram as escadas que levava a um subsolo, se enfiando num quartinho de
depósito, cheio de caixas razias e cacarecos, esperando que o assoviador
voltasse para cima. Só quando ele subiu as escadas de volta é que as duas
tiveram coragem de sair do esconderijo.
—
Primeiro vamos ver se não ficamos trancadas nesta ratoeira, disse a Débora.
Felizmente
verificaram que, pelo lado de dentro do subsolo, a porta não precisava de
chaves, nem tinha algum trinco especial. Abriram facilmente para uma fuga
tranquila. Só do outro lado era necessário ter chave.
As
duas começaram a fuçar tranquilamente o porão escuro.
—
Tá escuro aqui. Não consigo ver nada. E se o jacaré estiver por aqui? perguntou
a Raquel.
—
Não seja idiota, vire esta boca pra lá, gritou a Débora. Vamos ver se achamos
uma tomada perto da porta.
Quando
o lugar se iluminou, Viram que não estavam num quartinho de despejo qualquer.
Encontraram um enorme depósito de pacotes plásticos cheio de um pó parecido com
açúcar e uma sala que acharam ser um laboratório, muito grande e cheia de
equipamentos complicados, com grandes latões escrito ETER em grandes letras.
Bem no fim do corredor do porão, uma porta com chave virada para o lado de
fora. Cautelosamente viraram a chave e abriram a porta e depararam com uma
escuridão sem fim. Acenderam a luz e lá estavam eles, bem amarradinhos,
sentados, um encostado no outro, esperando o fim.
—
Olha só. Os quatro heróis, caçoou a Raquel. Devem estar com as calças cheias.
—
Larga de besteira e desamarrem logo senão vamos Virar comida de jacaré, pediram
os quatro.
—
Só se vocês implorarem, disse a Raquel.
—
Não vamos implorar nada pra mulher nenhuma, gritaram.
—
Então vão virar comida de jacaré. Vamos embora, Débora. Tchau.
—
Peraí, gritaram os quatro.
—
Vocês venceram suas nojentas, falou o Júnior. Eu estou implorando.
—
Eu também, por favor, tô todo dormido, todo formigando, pediu o André.
—
Também tô pedindo, disse o Douglas.
—
Tá bom, tô implorando, vamos logo, falou o Rafael. Afinal, eu sabia que vocês
iriam aparecer, ou vocês ou qualquer outro pra soltar a gente. Eu não infringi
os direitos humanos dos bandidos e não merecia ser castigado, ter um fim
inglório.
Os
quatro foram soltos e combinaram um novo plano depois que as meninas contaram
sobre o que haviam visto e o encontro com a Soninha. Precisavam sair daquele
lugar tenebroso e levar as prisioneiras para a salvação. Com tantos guardas
armados, tanta gente disposta a qualquer tipo de bandidagem, a tarefa não seria
fácil.
—
Acho que a gente deve procurar o gordão e liquidar com ele, disse o André.
—
Tá besta, cara. Um bandido poderoso como ele deve estar cercado por uma
porção
de guardas, argumentou o Júnior.
—
Segurança. Hoje todo cara importante tem segurança. Meu pai falou que
antigamente eram capangas, jagunço, hoje chamam de segurança, mas é tudo a
mesma coisa, explicou o Rafael.
—
E então, como a gente vai fazer? perguntou o André. Tô com medo.
—
Vamos ver, vamos ver, nós, afinal de contas somos heróis, arrematou o Douglas.
Eles não sabiam que os federais seguiam a pista deles patrulhando o lugar com
lanchas, investigadores armados descendo e subindo, procurando uma embarcação
roubada, vasculhando as margens e observando as propriedades visíveis,
continuando a busca mesmo com a escuridão da noite.
Desconhecendo
estas providências tomadas, a patota tinha que arranjar um plano. As massas
cinzentas do Rafael precisavam entrar em ação. O jeito era tapar a boca dele
para que o grito de guerra não acordasse o poderoso senhor e atraísse a turma
de bandidos lá de cima.
—
Atenção gente, quando o cabelo arrepiar é pra tacar a mão na boca dele, tá?
Rafael tomou a clássica posição de concentração, esperou a hora do
choque-choque e ele veio choque-chocando depressa, e na hora do eureca recebeu
uma mãozada na boca, outra mão, mais outra, e o grito saiu abafado,
estrangulado, quase sumido.
—
Ufa! Conseguimos, disse o André aliviado.
—
Gente, começou o Rafael, as minhas massas cinzentas avaliaram a situação,
discutiram com elas mesmas todas as possibilidades e chegaram na conclusão
lógica que devamos fazer uma fogueira de São João aqui dentro.
—
Legal! disse o Júnior. Vamos botar fogo no castelo!
—
Nem é época de São João, disse a Raquel.
—
Cala a boca burra, protestou o Júnior.
Discutiram
tudo numa tumultuada sessão de insultos, gritos e chegaram finalmente a uma
conclusão. As meninas voltariam com todo o cuidado para o andar de cima para
comandar a fuga das prisioneiras, enquanto os quatro meninos arrumariam o
material para fazer o porão ir para os ares e o castelo virar uma fogueira e
tanto.
—
Vamos pegar tudo que é material que pega fogo, disse o André.
—
Material combustível, corrigiu o Rafael.
—
Você entendeu, não entendeu? Então pra quê complicar, cara?
Uma
grande pilha de material foi armada no meio de cada sala do porão, enquanto as
duas meninas se esgueiravam para junto das prisioneiras para esperar o sinal
para fuga. O sinal seria o grito de fogo que qualquer pessoa poderia dar assim
que percebesse o castelo ardendo.
—
Boa, exclamou o Rafael vendo a obra prima que tinha feito. Procurem também
alguma coisa que pegue fogo logo lá no laboratório, álcool, gasolina, sei lá
mais o que.
O
André, xeretando tudo quanto é canto achou um litro de álcool.
—
Gente, olha aqui! Pelo cheiro é álcool. Vou botar fogo pra ver.
—
Calma, seu louco, acudiu o irmão, tomando a garrafa da mão dele. Não se põe
fogo em garrafa de álcool!
—
Larga de ser bobo, caçoou o André. Enganei o bobo mesmo. Eu não tenho fósforo,
eu não fumo.
Rafael
concordou:
—
É isso, gente. Quem tem fósforo? como podemos começar a fogueira sem eles?
O
André continuou:
—
Você é doido cara, só tem ideia de jerico. Botar fogo é perigoso. Depois, quem
brinca com fogo mija na cama.
—
Quem é que mija na cama, gritou o Rafael enfurecido, você acha que eu faço
isto, seu bundão, filho duma égua ...
—
Credo, disse o Júnior segurando o amigo, ninguém falou nada, não precisava se
ofender.
—
Ofendido tô eu, retrucou o André, me chama desses nomes indecentes. Vou contar
pra minha mãe quando eu chegar em casa. Te pego, cara e agora!
o
Douglas segurou a barra separando os dois.
—
Tudo bem, tudo bem, vocês querem brigar? Depois vocês resolvem no braço.
Quem
tem fósforos?
Ninguém
tinha, mas não custou muito achá-las no laboratório. O líquido da garrafa
pegava um lindo fogo e regaram com ele uma porção de pilhas de material
inflamável espalhadas pelo porão.
—
Taca fogo em tudo, pessoal e depois, fora do porão. Guerra é guerra! gritou o
Rafael entusiasmado.
—
Vamos levar um pouco de álcool e fósforos, continuou.
O
fogo foi ateado e os quatro saíram correndo do subsolo que iria explodir assim
que aqueles tambores se esquentassem. Subiram para o hall e se esgueiraram em
direção ao salão, onde as grandes cortinas de veludo vermelho poderiam virar
uma boa fogueira. O salão estava semi-iluminado quando a turma entrou
procurando não fazer barulho. O André encerrava a fileira e foi ele que ouviu o
ruído de passos, um pum-pum-pum, pesado atrás dele. Cutucou o Júnior e os dois
olharam para trás. As duas velhas ali estavam, seguindo-os em silêncio.
—
Ai meu Deus, gemeu o André.
—
Eu não falei que havia algo esquisito aqui? cacarejou a mais moça.
—
Guardas! gritou a mais velha. Guardas!
Os
meninos correram para trás das cortinas com as duas velhas praguejando atrás
deles, se revezando na gritaria:
—
Seu desgraçado, de onde você veio?
—
Eu não falei, eu não falei? Eu ouvi barulho.
—
Cala a boca sua desgraçada, você não falou nada.
—
Falei, falei, falei.
—
Guardas, guardas, corram, venham.
Os
meninos tremiam, as pernas bambas, os joelhos moles quase no chão.
—
Meu Deus, me ajude, gemeu o André, chorando. Vou morrer cedo, nem vou crescer,
nem vou ter espinha na cara.
—
Ai, mamãe, eu juro que se escapar eu obedeço você até ficar um velhinho, rezou
o Júnior.
—
Gente, falou o Rafael, tô cagando nas calças, mas tô pensando. Joguem álcool na
cortina, ensopem tudo.
As
duas velhas agarraram a cabeça do Douglas e enrolaram o coitado na cortina.
—
Agarrei um, é meu, é meu.
—
Larga dele e pega outro, este é meu.
—
Fogo nas cortinas, gritou o Rafael.
Os
guardas já estavam no salão tentando levantar as pesadas cortinas.
—
Deixa pra gente, a gente pega os pestinhas podem ir pra cima dona.
O
poderoso senhor entrou se arrastando no salão gritando:
—
Que barulho é este? Quem está interrompendo meu repouso sagrado?
Ele
mal podia andar, se arrastava molengo, mas sua voz era forte e poderosa:
—
Quem é o responsável por esta bagunça? Joguem pro jacaré.
As
velhas gritavam:
—
Três fedelhos, três trombadinhas, estão escondidos atrás da cortina.
—
Agora! gritou o Rafael.
A
mão do André tremia tanto que ele não conseguia acender o fósforo. Além disso
haviam agarrado a perna dele e tentavam puxá-lo para fora. Um dos guardas
arrastou-o de lá, mas ele, heroicamente, riscou um fósforo que caiu na poça de
álcool do chão. O fogaréu começou imediatamente, animando o trio que estava
sendo arrastado para fora do esconderijo. O fogo foi crescendo, sem dó nem
piedade, primeiro nas cortinas do salão, depois nas das outras salas,
iluminando o castelo como urna tocha. Com o fogaréu nas cortinas as velhas
largaram o Douglas, os guardas os outros dois e saíram todos, bandidos e
mocinhos, correndo como loucos.
O
poderoso senhor ficou estatelado no chão, o infeliz não conseguia se levantar,
foi pisado e pulado como um pedaço de pau. As velhas, como baratas tontas
subiram as escadas em direção dos seus aposentos em vez de correrem para fora
de casa. O poderoso senhor foi levantado por dois guardas que o levaram para
cima.
—
Fechem a porta corta-fogo, gritou o gordão. Aqui estamos protegidos. Não posso
acreditar que três pivetes possam ter causado tudo isto. Fechem a porta e vão
atrás dos três. Eles não podem escapar.
Quando
tudo começou a arder, alguém gritou fogo e as meninas, comandadas pela Débora e
pela Raquel, saíram, muito ordeiras, descendo a escada em direção à cozinha e,
já do lado de fora, ganharam o mato e dispararam em direção ao buraco sob a
cerca feita pela Afrodite, passando para a outra propriedade.
Os
bandidos corriam de um lado para o outro, procurando acabar com o fogaréu, sem
obedecerem as ordens do patrão, sem darem a menor importância para as fujonas,
desesperados. Os quatros meninos, depois de aprontarem a confusão, riam, já do
lado de fora, ao lado da Afrodite que não parava de latir, como se estivesse
achando tudo muito engraçado também. Se esconderam longe da casa, no meio do
mato onde poderiam observar tudo sem que fossem molestados e onde poderiam se
abrigar dos estilhaços que poderiam acontecer quando aquilo tudo fosse para os
ares.
—
Nunca pensei que eu, o André, pudesse fazer um fuzuê desses, comentou o André
admirado com o que via.
—
É, concordou o Júnior. Só tenho medo de ser preso por causa disso.
—
Não prendem crianças, cara, mandam pra Febem, concluiu o Rafael.
—
Xi? Será? perguntou o Júnior, preocupado. Foi o Douglas que respondeu:
—
Vocês parecem burros. Será que ainda não perceberam o bem que fizemos
eliminando um quartel general de bandidos?
Isto
encerrou o assunto, acalmou as consciências e voltou a atenção deles para o
cenário pirotécnico. Foi quando os latões de éter explodiram no porão, levando
para o ar uma ala do castelo. Foi um festival de parede pra todo lado, tijolos
arrancados, pedaços de madeira, portas voando, estilhaços de vidro caindo que
nem confete, escalpos no ar, braços e pernas arrancados e girando lá em cima
como hélices de helicóptero. A fogueira foi aumentando na ala que ficou de pé,
justamente onde ficaram os aposentos do poderoso senhor do crime, e dos seus
tesouros.
Os
meninos correram para o gramado, na frente da casa para melhor observar o
espetáculo. A porta corta-fogo e a ala da casa protegida contra incêndio não
haviam resistido à explosão violenta do porão. Viram as duas velhas de
camisolão passarem as pernas gordas pela janela e pularem para o gramado
gritando palavrões cabeludos, caindo pesadamente em cima de um canteiro,
quebrando os braços e as pernas, virando os pés pra trás e se arrastando,
gemendo, para longe da casa. Numa janela apareceu o poderoso senhor. Um cheiro
de banha queimada, uma fedentina pra valer encheu todo o ar, gritos pavorosos
vinham da direção do monstrengo. Ele estava queimando, só que não queimava como
qualquer um queimava que nem vela de sete dias, derretendo as banhas devagar.
Só uma comprida língua de fogo saindo do pescoço, no lugar da cabeça.
—
Olha aquilo ali, exclamou o Rafael. É ver para crer.
—
Inacreditável, concordaram os amigos.
A
patota não sabia, mas os federais patrulhando a área atrás deles, viram a
formidável fogueira iluminando a noite e, como não era época de São João nem
nada, viraram a lancha na direção dela. Ficaram admirados ao ver a cena e
encostaram no ancoradouro. Encontraram os fujões calmamente sentados no
gramado, junto com a Afrodite, admirando o espetáculo pirotécnico. Tudo
explicado e esclarecido, todos os bandidos vivos foram presos, os nomes dos
traficantes revelados, os endereços fornecidos, as meninas resgatadas e a
patota pronta para voltar para casa.
—
Agora vamos para a glória! gritou Rafael.
—
Missão cumprida! gritou o Douglas.
—
Nunca mais vou comer banana! gritou o André.
—
Se não fosse por nós estas meninas estavam fritas! gritou a Raquel.
—
Lar, doce lar! gritou a Débora.