sexta-feira, 28 de setembro de 2012

História Infantojuvenil



GUERRA É GUERRA!



GUERRA É GUERRA!
 
— 1 —
— Eh! Rafael. Quando é que você vai pedir a Raquel em namoro? Perguntou André.
— Corta essa, cara! Não estou, neste momento, preocupado com este assunto. Depois, sou muito baixinho para ela. A danada não para de crescer!
A turminha ia subindo a rua em direção à escola onde se encontraria com as meninas. Os quatro eram da patotinha do Rafael, irmandade secreta e juramentada com sangue e tudo o mais, sempre juntos para, as aprontações mais criativas da cidade. Rafael, o baixinho da 3a série, de óculos e corado; Júnior, da 6a, compridão e imaginativo; o Douglas, também da 6a, cobra em motores e eletricidade, desmontador de tudo que lhe caia nas mãos; o André, da 2a, que falava pelos cotovelos. De mochilas coloridas nas costas, lá iam eles rua acima, chutando' todas as tampinhas e pedras do caminho, as mãos nos bolsos segurando as bolinhas de gude e outros tesouros que traziam ali guardados. O André, tagarela e elétrico, não parava de falar, puxando todo tipo de assunto. Douglas, seu irmão, ficou bravo:
— Fica quieto cara, a gente tá preocupado com o desaparecimento da Soninha. Eu era gamado nela.
— Eu também, disse o Júnior. Será que ela foi sequestrada?
— Eu acho que foi, respondeu Rafae1. Todo mundo fala que até a polícia está investigando. Às vezes tenho até vontade de acreditar na história do tal do homem do saco que rouba criança ...
— Isso é babaquice, cara! Ouvi dizer que o caso é sério, disse o Junior. Tá sumindo menina em tudo que é lugar. Pra mim o caso é de bandido mesmo. Já deu até na televisão, no globo repórter.
— Eu vi a Soninha na televisão, berrou o André.
— Larga de ser bobo, disse o Douglas. Você viu foi o retrato dela e de mais duas meninas que sumiram de Curitiba.
O papo estava diferente. Em vez dos assuntos de sempre, das figurinhas, do último desenho do Pokémon, das revistinhas, pedir ou não pedir meninas em namoro, discos voadores, extraterrestres e mutantes, ou da raiva que sentiam de algum chato de outra turma, só falavam na Soninha da 6ª série que tinha sumido sem deixar rastro, três dias inteiros sem ninguém saber dela, a cidade em polvorosa, a família desesperada, a televisão e o rádio noticiando.
Estavam quase chegando ao portão do Colégio Rio Branco quando a Raquel, irmã do Júnior e a Débora, irmã do André e do Douglas se incorporaram ao grupo. Na porta da escola encontraram o Pierre, mas ele não deu bola para a turma, mesmo depois do juramento secreto que tinha feito para poder entrar nela. Pierre conversava com o Sérgio, um garoto metido a valente, sempre pronto para meter a mão na cara de qualquer um, despejar palavrões cabeludos em cima das meninas que corriam dele como o diabo foge da cruz.
O André, que costumava ver tudo e não perder nada do que se passava no pedaço, comentou:
— Credo, o Pierre conversando com um cara daquela laia! Olha, gente, o Sérgio tá dando uma coisa pra ele, parece figurinha!
— Acho que ele mudou de turma, aquele patife, disse o Rafael. Agora nem quer brincar comigo mais. Ontem fui à casa dele e estava dormindo, Dona Alice diz que ele só dorme. Nem faz mais a tarefa. Acho que ele vai acabar bombando.
— Deixa pra lá, se quer virar casaca que vire, não faz falta, arrematou o Júnior.
Aquele teria sido um dia comum, igual aos outros tantos que se haviam passado, a única novidade, a do sumiço da Soninha, já estava ficando uma novidade velha. Pois seria um dia muito comum se o Pierre não tivesse se sentido mal na aula de Geografia e caído desmaiado, parecendo um morto no chão. Foi um Deus nos acuda, um tumulto na classe, um sai-dai-que-eu-quero-ver, um fuzuê pra valer. O coitado saiu carregado, chamaram a mãe dele, Dona Alice, o médico, e lá se foi Pierre, deixando um boato no ar que tinha morrido e que o enterro seria de manhã, no dia seguinte. Ninguém assistiu mais aula direito, a professora pedia, gritava, esbravejava, suplicava, ameaçava, choramingava e nada. Os alunos nem olhavam pra ela. Quando finalmente o sinal tocou, foi uma disparada para fora do prédio, pra valer, e a patotinha se reuniu pra decidir o que fazer e, no jan-quei-pô foi decidido uma pernada até a casa do Pierre, simples verificação, para que pudessem ter a certeza se ele tinha morrido ou não, se havia mesmo virado um cadáver.
D. Alice foi logo dizendo:
— Não aconteceu nada, o médico vai fazer uma porção de exames amanhã. A soneira dele deve ser anemia, não anda comendo direito, o estômago não anda bom.
Rafael não engoliu e, depois que saíram de lá, foi logo dizendo:
— Anemia uma oval o Pierre come mais que uma draga. Meu pai (o pai dele era médico) falou que quem come bem não tem anemia. Só de banana ele come uma penca por dia.
— Eu vi o Pierre fumando, disse o André. Acho que foi isso.
— Esse cara não perde nada. Tudo ele vê, comentou o Douglas admirado.
— Cigarro de mamona? perguntou o Júnior.
— Que nada! De papel! De verdade! Acho que ele não vai crescer! Meu pai falou que criança que fuma não cresce.
— Não vem com essa não, protestou o Rafael. Eu sou baixinho e não fumo. Não ofende. Aqui tem coisa e nós vamos investigar. Vou falar com o Pierre ele precisa de ajuda nem que for moral.
— É. Mas ele virou casaca. Tá andando com o inimigo, falou Júnior,
— Gente, ele é nosso amigo, protestou o Rafael. Vou ver se falo com ele. O Pierre sempre foi meu chapa, faz muito tempo, desde quando ele era fraquinho e eu defendia o coitado nas brigas. Amanhã às nove em ponto vamos reunir a patota de baixo da nossa árvore. Se ele precisar de ajuda conto com todos. Além disso ele fez juramento de sangue e é nosso irmão.
No dia seguinte, bem atrasado, Rafael chegou bufando para encontrar os amigos no lugar combinado. Todos já estavam cheios de esperar por ele.
— Chegou o atrasadinho, gritou o André assim que viu a amigo correndo na direção deles.
— Atrasadinho uma oval Só agora consegui falar com o Pierre, Vocês não sabem o que está acontecendo. Eu tô abismado até agora.
— Conta logo pra gente, pediu a Raquel. Não faz onda. Tô morta de curiosidade.
— Também tô louca pra saber, disse a Débora.
— Elas pensam que só mulher é que é bicho curioso. Fala logo, cara, gritaram os meninos.
Rafael sentou-se no chão, cruzou as pernas, os outros também se acomodando, curiosos, esperando ansiosos.
— Êta cara louco pra fazer suspense, comentou o André.
Rafael ignorou o comentário:
— Gente, é barra pesada. Vou falar e pronto. O Pierre tá firme na droga.
— Na droga? gritaram todos espantados numa só voz.
— Maconha e não sei mais o quê. Ele não quis contar, mas deve ser cocaína.
— Tô besta, simplesmente besta, disse o Júnior.
Os garotos estavam pasmados. E 'ouviram o Rafael contar tim-tim por tim-tim toda a história:
— Bem, no começo. o Pierre não queria dizer nada. Mas ele quase morreu com um troço que tomou, sei lá, acho que na escola, e a mãe dele já sabe por que o médico sacou tudo e deu o serviço para ela. Quem passa a droga na escola é o Sérgio, aquele sacana, cobra venenosa que só podia dar para essas coisas. O Pierre rouba da loja da mãe todo o dinheiro que pode, rouba do pai, do avô, onde dá, pra comprar a porcaria. Agora está se sentindo mal não sei por que, deve ser pela droga que não faz bem pra ninguém e vão mandar o infeliz não sei pra onde. O coitado chorou que nem bezerro desmamado, de tão desésperado que está, com um medão de borrar as calças. Tá morto de medo e não contou pra ninguém que foi o Sérgio. Pediu pra ninguém abrir o bico.
Que coisa, disse Débora. Quem diria? Logo o Pierre, tão quietinho, tão bobinho...
— Por isso mesmo. Se fosse esperto ninguém levaria o infeliz na conversa, opinou Douglas.
— Precisamos fazer alguma coisa, gente, disse o Rafael.
— O quê? Contar pra polícia? Ele que conte, problema dele, disse o Júnior impiedosamente.
— Ele não vai contar pra ninguém, só contou pra mim porque sou amigo dele, já livrei a cara dele de muita encrenca, mas ele disse que se eu contar pra alguém estou traindo a nossa amizade ... quer dizer, ele tem medo ...
— Eu, também, aparteou a Raquel, tenho um baita medo de bandido.
Rafael ficou bravo:
— Mulher é isso aí, a gente põe no meio de homem e elas começam logo a chorar de medo. Pode ir embora se quiser, vai chorar no colo da mamãe, vai meu bem ...
— Xi, Rafael, não precisa ficar zangado, credo. Eu num tô chorando ...
— Tá bem, tá bem ... Agora, por favor turma, peço silêncio total. Vou botar minhas massas cinzentas funcionando para ver o que faremos.
O André não aguentou:
— Qual é, cara, que novidade é essa?
Muito sério e compenetrado, Rafael pediu:
— Primeiro jurem que não falarão nada. O que vou fazer, o que vocês vão ter o privilégio de ver, deve ficar em segredo, sob pena de morte pro dedo duro. Jurem que não abrirão o bico, mesmo sob tortura, sob ...
— Juramos, gritaram todos. Pode fazer a coisa.
— Tá. Confio em vocês, replicou o baixinho. Pelo juramento de sangue. Por favor, todos sentados em silêncio para ajudar a minha concentração transcendental.
Todos ficaram quietos, esperando. Rafael fechou os olhos bem apertados, abaixou a cabeça e levou as mãos até as têmporas. Não demorou muito, todo mundo espiando com o rabo dos olhos pra ver o acontecimento, e um barulhinho safado, muito baixinho mas bem inaudível, um choque-choque genial, saiu lá de dentro da cabeça dele, foi choque-chocando por algum tempo, até os cabelos do cocuruto ficaram de pé bem assanhados e duros.
— Já sei. Já sei o que vamos fazer, gritou finalmente. Eureca!
— Como é que ele fez isso? perguntou o Júnior baixinho para o Douglas.
— Sei lá, sei lá mesmo, respondeu ele.
A Débora, curiosa, foi logo perguntando, como se aquilo tudo fosse a coisa mais normal do mundo:
— Fazer o quê? Por que você não fala logo?
— Vou falar, turma. Minhas massas cinzentas dizem que, se ficarmos em silêncio, deixando estas barbaridades acontecendo bem no nosso nariz, seremos responsáveis. Por outro lado ... uhm ... se a gente abrir o bico, poderemos por em risco a vida do Pierre. Agora, se agirmos, livraremos a cara da responsabilidade e prenderemos os bandidos que estão contaminando os nossos amigos, matando criancinhas com drogas.
Rafael tinha feito um discurso e tanto. Ele aproveitava estas ocasiões, quando se lembrava que era uma boa ocasião, para fazer um treinamento prático e preparatório para seu futuro de político, prefeito do ano 2010, deputado e governador logo em seguida.
Raquel, muito esperta percebeu logo:
— Lá vem você outra vez. Que chato! Parece um bobo. Será que não pode falar normal?
— Não vê que estou treinando? respondeu Rafael.
Um coro de perguntas estourou no ar:
— Treinando pra quê, cara?
— Po-lí-ti-co. É o que decidi ser quando crescer.
— Que idéia mais besta, disse André. testou:
Todos concordaram com o André que era mesmo uma ideia muito besta. Rafael protestou:
— Besta uma oval Vocês não entenderam nada mesmo, são uns babacas!
— Ah, é? Por quê? perguntou o André.
— Porque não existe político pobre, porque político não trabalha, viaja de avião sem parar e sem pagar, vive conhecendo outros países junto com a família ... e meu pai falou que quem paga tudo pra eles é o povo ... Além disso ...
— Não enche o saco, cara. A gente estava falando de coisas mais importantes, atalhou o Júnior.
— Você gosta de cortar o barato da gente. E o meu futuro não é importante? perguntou Rafael zangado.
— Tá bom, disse o Júnior. É importante mas tá muito longe. Vamos, por favor, voltar ao que a gente tava falando?
— Tá, concordou ele. Vamos seguir o Sérgio.
— O Sérgio? perguntaram todos.
— Claro, elementar. Se ele passa a maconha e outras mercadorias, ele deve receber de alguém. Quem será?
— Eu não sei, disse a Raquel.
— Claro que não sabe, bobona, disse o Júnior. E alguém aqui sabe?
A discussão esquentou, parecia não ter fim. Mas todos eles estavam entusiasmados com a nova aventura de brincar de detetive. Depois de muito discutir, desviar do assunto, confabular e combinar, ficou decidido que o André, que estava na classe do Sérgio, vigiaria o safado na aula, o Douglas, no pátio, e as meninas e o
Júnior se revezariam vigiando a porta da casa dele durante o dia. Durante a noite,
ficaria tudo por conta de Deus, porque não podiam sair de casa e precisavam dormir, ninguém é de ferro.
— II —
Duas semanas inteiras tinham se passado. No sábado e no domingo, como todo meado queria ir para a piscina, se revezavam perto da casa do Sérgio. Ficavam dois, conversando e brincando, para disfarçar, enquanto os outros iam se divertir no clube. E anotavam, cada um no seu caderninho particular, tudo o que viam o Sérgio fazer, quem entrava na casa dele e quem saía, os nomes, as descrições das pessoas desconhecidas.
É verdade que já estavam começando a achar a brincadeira meio chata, meio besta, sem resultado. Mas Rafael estava sempre tratando de manter os espíritos animados, jurando e afirmando que logo eles entrariam numa grande aventura, que o trabalho de detetive era assim mesmo, meio paradão no começo, mas que quando esquentava era a maior emoção da vida. O baixinho animava os ânimos às vezes aos pedaços, convencendo a sua patota que era uma questão de tempo para a chatice ir para os ares, terminar de vez, e dar lugar à ação que todos esperavam ansiosamente.
Todos os dias ele recolhia os caderninhos de anotações e estudava todos os movimentos do Sérgio e da casa dele, que não passavam, para o desespero de todos, do movimento normal de qualquer casa de família da cidade.
Embora fosse alto e grandão, quase já se barbeando, já com quatorze para quinze anos, o Sérgio ainda estava na 2ª série, junto com o André. A criançada chamava o infeliz de retardado, débil mental, trongolão e outros adjetivos similares para demonstrar o desprezo que sentiam por ele. Contudo. era apenas um vagabundo, que não estudava, não fazia as tarefas e não se importava com a escola. Não era nada burro, era até bem esperto e só estava na escola ainda por influência ... política do pai, que ajeitara para que sua matricula fosse aceita, mesmo já com idade de ter terminado o primeiro ciclo, e por burrice da mãe que afirmava que enquanto ele não terminasse o primário não sairia da escola. Mas, mesmo assim os pais nada faziam para que o Sérgio fosse incentivado a sair da 2ª série.
Pois, foi por estar na mesma classe do André, que o Sérgio invocou com o colega quando percebeu a presença constante dele, rondando a sua casa. Por isso o André foi dispensado de ficar perto da porta da casa dele, quando foi ameaçado:
— Se você vier brincar ria minha rua mais uma vez, te quebro a cara, furo os olhos, pacto as pernas e esmago o teu saco.
O André ficou apavorado e correu para a turma, procurando resolver o problema e se livrar da ameaça.
— Tô com medo, choramingou o André. Não quero ser reduzido a pó, não quero ter meus dentes rolando no chão e meus ossos quebrados.
— Que cara medroso, esse meu irmão. E dizer que é meu sangue, disse o Douglas. É melhor ele não ir.
Nada parecia acontecer de novo. O Pierre fora mandado para fora da cidade, ninguém sabia onde, nem a mãe dele falava, disfarçava, tapeava, mas não falava onde ele estava. Ninguém falava mais da Soninha, do sequestro, só a televisão de vez em quando comentava alguma coisa, a turma não conseguia ver o Sérgio de papo com algum estranho, embora visse ele passar droga pra muita gente. Por isso, depois de quinze dias de observação e de investigação, a turma se reuniu novamente, convocada e arrebanhada, de baixo do ponto de encontro, a mangueira grande do quintal da Raquel.
— Gente, parece que há uma pista, uma leve pista, disse o Rafael.
— Que pista? perguntou o coro.
— Vou confirmar pondo minhas massas cinzentas para funcionar. Por favor, todo mundo sentado pra me ajudar na concentração.
Todos se sentaram, viram o Rafael se ajeitar, fechar os olhos, abaixar a cabeça, colocar as mãos nela, o cocuruto da cabeça com os cabelos arrepiados, a cabeça choque-chocar e o grito de eureca! encher o quintal.
— Pronto. É isso aí. Prestem a atenção. Todas as anotações foram estudadas. Na escola ele não encontrou com ninguém de fora, só passou droga, brigou, conversou com muita gente. Na casa dele só entrou gente conhecida deles ou gente conhecida da gente. Ele saiu duas vezes e ninguém foi atrás dele. E quando ele saiu? Quando?
Não sei, respondeu a Débora. Ele saiu e eu fiquei ali. As duas vezes que ele saiu era eu que estava vigiando. Até faltei na escola.
— Aí está. Quando ele sair, deve ser seguido. E nas duas vezes que a Débora escreveu "o Sérgio saiu" foi depois da "a lavadeira trouxe a roupa". Aí tem coisa. Raquel, você vai até a casa do Sérgio perguntar pra mãe dele onde mora a lavadeira, que sua mãe mandou perguntar pra dar roupa pra ela lavar, se é boa, se lava direitinho, pra despistar é claro.
— Mas a minha mãe nem conhece a mãe dele. Vai dar caca, retrucou a Raquel.
— Tá bem, respondeu o Rafael. Nesse caso vou eu. A minha conhece a mãe dele.
— Eu acho mais lógico, respondeu o Júnior. E depois que você descobrir o endereço da lavadeira?
O Douglas adiantou:
— É vigiar a casa dela, descobrir se há alguma ligação. Será que há? Não é isso, gente?
— Acertou na mosca, falou Rafael.
No dia seguinte a casa de Sérgio voltou a ser vigiada e a dona da casa recebeu a visita:
— Eu sou filho da D. Cecília, disse a visita. Minha mãe soube que a senhora tem uma 'boa lavadeira e pediu o endereço dela pra pedir pra ela lavar a nossa roupa. A mãe pediu também pra senhora confirmar se ela é boa, se lava direitinho, se não some peça de roupa, essas coisas, a senhora sabe. Referências.
Deu certo, Rafael saiu de lá com um papelzinho na mão onde estava escrito "Estrada do sítio da D. Zilda Moreti, uns dois quilômetros depois da estrada, uma casinha de madeira, D. Filomena".
— Credo gente, é longe toda vida. Quem vai investigar lá? perguntou a Débora.
— Deixa comigo, disse o Douglas. Eu vigio. Vou de bicicleta e faço as perguntas, como quem não quer nada.
— Você não pode, cara. Tá ruim em tudo que é matéria. Precisa estudar pra prova de Matemática, disse o André.
— Eu me viro na prova, respondeu o Douglas.
— Que se vira nada, cara. Se você não estuda fica de castigo e aí a gente fica desfalcado, um a menos pra trabalhar nas investigações. Vê se estuda e pega uma nota boa, porque nunca se sabe se a gente vai ter que fazer coisas mais complicadas. E precisamos contar com você.
E o Rafael continuou falando, dizendo que todos precisavam ir bem nas provas, garantir nota no caso de precisarem trabalhar mais, faltar na escola para investigar, e coisas assim, incentivando os mais folgados que só queriam se divertir naquele caso complicado de investigação e combate às drogas dentro daquela cidade tão pacata e ordeira. Ele aproveitou a oportunidade para mais um discurso, continuando seu treinamento para político do ano 2010.
— Êta baixinho chato, resmungou a Raquel. Que mania de discurso!
Ainda bem que ninguém ouvia a reclamação dela. Ia dar pano pra manga, gerar um bate boca colossal, porque no fundo estava todo mundo pensando a mesma coisa. Mas a discurseira foi encerrada e as tarefas divididas. O Júnior iria pegar a bicicleta e dar um passeio pros lados da chácara da D. Zilda Moreti e a Débora iriam continuar espionando a casa do Sérgio, juntamente com a Raquel, jogando amarelinha com ela na calçada da frente.
Dois fatos importantes aconteceram no mesmo dia, cinco dias depois do último discurso do Rafael. Foi num sábado, um calorão danado convidando a criançada para um mergulho na piscina. O Júnior foi para os lados da chácara da D. Zilda Moreti, descobriu a casa da lavadeira e ficou sabendo que ela tinha um filho maior de idade, um vagabundo chamado Pandeiro, que não fazia nada mas tinha um Fuscão amarelo e que aparecia por lá de vez em quando. A Débora e a Raquel seguiram o Sérgio mais uma vez, e finalmente ele fez uma coisa diferente. As meninas sabiam que ele deveria sair porque D. Filomena tinha chegado com a roupa limpa já algum tempo. Não deu outra. Desta vez ele foi para a Rodoviária, sentou-se num banco como quem não quer nada e ficou olhando pra o ar. Quando chegou o ônibus que vinha de S. Paulo, ele se levantou e ficou esperado. Um dos passageiros que desceu, um homem magro e careca, chegou perto dele e nenhuma palavra foi dita. Apenas entregou-lhe um pacote do tamanho de uma caixa de sapato e entrou no boteco. O Sérgio saiu de lá e as meninas não sabiam o que fazer.
— Seguimos o Sérgio ou o homem? perguntou a Raquel.
— Eu sei lá. Nós temos que seguir o Sérgio, né? Vamos atrás dele.
— Como é que você diz "sei lá" e resolve? perguntou a Raquel.
— Sei lá, respondeu a Débora. Agora sei lá mesmo.
Com estes dois novos fatos, nova reunião foi convocada de baixo da mangueira.
— Estamos progredindo e muito, disse Rafael. Bom trabalho o de vocês. Agora sabemos que vem um homem de fora para trazer a droga. Vocês viram a cara dele?
— Muito bem, muito bem mesmo. É como nós contamos, responderam as meninas.
— Pena que a gente seja ruim em desenho, senão a gente podia fazer o retrato falado dele, disse o Júnior, sempre cheio de ideias.
— É pena, concordaram todos.
A situação foi estudada e discutida exaustivamente. Agora já sabiam que a droga vinha pelo ônibus de S. Paulo, direto para a mão de Sérgio. Achavam que a família dele não sabia nada sobre as atividades criminosas dele, mas onde entrava o Pandeiro? O vagabundo não trabalhava e vivia cheio de ouro e, de vez em quando, fazia ponto na casa da mãe dele.
Por que razão ele ia lá? Por que razão o Sérgio saía logo depois que D. Filomena entregava a trouxa de roupa limpa e passada?
— Pessoal, todo mundo sentado para ajudar na concentração. Vou colocar minhas massas cinzentas em funcionamento para obter a resposta e a ligação dos fatos, comandou o Rafael.
Não deu outra. Já estavam acostumados com o choque-choque das massas cinzentas dele o grito de guerra eureca!
— Já sei pessoal. Examinando os fatos à luz de uma profunda reflexão...
— Não. Discurso não! Gritaram todos.
— Tá bom, concordou. Nas anotações da Débora, ela seguiu o Sérgio por toda a cidade. Ele foi duas vezes à sorveteria, uma vez no fliperama, cinco vezes na padaria e uma vez na rodoviária. Aí ele encontrou o cara que trouxe a mercadoria. Certo?
— Certo, gritaram todos.
— Mas, segundo as mesmas anotações, ele só saiu com a finalidade de ir até a rodoviária depois que D. Filomena entregou a roupa lavada, certo?
— Certo, gritaram todos.
— Então o recado para ele ir à rodoviária vem no meio da trouxa de roupa lavada e quem bota o recado lá é o tal de Pandeiro, que a gente nem conhece mas já sabe que é um vagabundo, sem-vergonha e nem mora com a mãe. Elementar.
— Onde será que ele mora? perguntou o André.
— Não sei, mas acho que não é na cidade, disse o Junior.
— Isto lá é verdade, concluiu o Douglas. Já perguntei pra um mundão de gente, lá nos bares do centro, se alguém conhece este tal de Pandeiro, aonde ele mora e muita gente conhece mas diz que ele se mudou daqui há muito tempo. Até ficaram admirados de eu fazer perguntas à respeito de um marginal como ele.
— O que vamos fazer Rafael? Contar para a polícia? perguntou a Débora.
— Que nada. Vamos continuar a investigação. Teremos que interceptar a entrega da roupa para ver o que está na trouxa.
— Como? perguntaram as meninas.
— Vamos pensar, comandou o Junior.
Uns minutos depois, o silêncio profundo foi quebrado pelo próprio Júnior.
— Já sei. Tenho um plano. Vou dizer qual é e, se vocês concordarem, vamos seguir o meu palpite.
Ele expôs o plano cuidadosamente e, depois de muita discussão, palavrões e xingamentos, emendas e apartes, chegaram a uma conclusão final. E marcaram o dia seguinte para começar a execução do combinado.
Não era fácil D. Filomena lavava roupa pra uma porção de gente e era muito difícil saber-qual era a trouxa certa em cima da cabeça dela. Era preciso fazer amizade com ela para saber o dia certo. E tinham que ter cuidado com o tal de Pandeiro, porque se ele aparecesse em cena e desconfiasse, era perigo na certa. Mas, eles seguissem com a primeira parte das investigações, vigiando a casa do Sérgio, poderiam ver se ela tinha dia certo para entregar a roupa limpa.
— De agora em diante os caderninhos de quem fica na espreita precisam ter data e hora, disse Rafael. Se vocês tivessem colocado dia, hora, estas coisas todas, a gente já sabia de tudo agora.
— Como é que a gente ia saber? reclamou Débora. Eu nunca fui detetive. É a primeira vez.
— Bem, agora a gente já sabe. Qualquer coisa que a gente anotar põe data etecetera e tal, disse o Douglas.
Uma semana depois, estavam prontos para entrar em ação. E era da ação que eles mais gostavam, da aprontação gostosa e divertida, muito melhor do que estar vigiando e tomando nota nos caderninhos, examinando as anotações, aquela chatura de escrever a toda hora e ficar de olho nos outros. Verificaram as anotações e Rafael tomou nota no seu caderno: 1º) Dona Filomena pega a roupa suja na segunda e entrega na quinta, 2º) Dona Filomena entrega na quinta para três casas. Sai de tarde com três trouxas, na cabeça e uma em cada braço, 3º) Dona Filomena só entrega de tarde, de manhã ela lava e à noite ela passa, 4º) Cada quinze dias o Pandeiro vem visitá-la de manhã, 5º) As trouxas ficam prontas em cima de uma mesa, desde a noite anterior à cada entrega.
Tinham descoberto tudo, tim-tim por tim-tim, sem ninguém desconfiar de nada, numa brilhante investigação de equipe. Enquanto o André e o Douglas tomaram conta da porta do Sérgio, seguindo o danado e olhando a porta, para chegar à conclusão que a lavadeira entregava a trouxa toda quinta-feira e que, realmente, deveria haver um recado dentro da roupa limpa pois, outra vez o Sérgio fora encontrar com o estranho careca, só que desta vez o lugar era diferente. O resto da turma foi dar um passeio de bicicleta pela manhã, lá para os lados da chácara da D. Zilda Moreti. E, lá pelas bandas da casa da lavadeira Filomena, Raquel fingiu cair da bicicleta, para o caso que alguém os estivesse observando.
Chegaram até a porta da casa, a Raquel mancando e chorando, dizendo que a perna estava doendo, a cabeça também, que doía tudo, a exagerada parecia toda quebrada de tanto gemer, e bateram palmas. Quando um rapaz com um cabelo parecido com Bombril, abriu a porta eles quase desmaiaram. O tal de Pandeiro, só podia ser ele que estava ali em pessoa, perguntando o que eles queriam. Foi aí que a Raquel desandou a chorar mesmo, só que de medo, e os outros, com vontade de chorar e dar no pé, foram dizendo que ela tinha caído, que queriam dar água pra ela, que eles estavam passeando de bicicleta por ali e que se podiam sentar e descansar. Se não fosse por D. Filomena, que apareceu enxugando as mãos na saia, o Pandeiro teria tocado a turma toda pra estrada, mesmo com a Raquel chorando.
— Que foi, Pandeiro? Quem está aí?
— Uns garotos mãe, só uns garotos, respondeu ele.
D. Filomena foi um amor. Botou todos pra dentro do casebre, deu um copo de água pra Raquel que não parava de chorar de medo, disse pro filho sair de perto que ela cuidava deles.
— Ih! meu filho é muito nervoso, sabe? E está mais nervoso ainda porque o carro dele quebrou e ele está preso aqui há dois dias. Ele mora longe daqui e precisa ir embora.
— Tá bem, dona, a gente não liga não, disse Débora.
— Filomena, é meu nome.
— Tá bem, Dona Filomena. Eu acho que já vi a senhora na cidade, entregando roupa.
A Débora tinha uma vocação para saca-rolhas, um talento inato e inusitado para inquisidora, era mesmo uma interrogadora de primeira. Enquanto o Rafael, o Júnior e a Raquel, que já tinha parado de ch6rar, ficavam ouvindo espantados, ela foi arrancando tudo que queriam saber da Dona Filomena, num bate papo descontraído, como quem não quisesse nada, só conversar, e a pobre da lavadeira foi caindo direitinho contando como trabalhava, para quem trabalhava, que hora entregava a roupa, tudo que queriam saber.
— Agora ela está melhor e precisamos ir, disse ela. Gostei muito da senhora, Dona Filomena, quando minha mãe precisar vou dizer pra ela dar a roupa de casa pra senhora.
Todos agradeceram e saíram, a Raquel fingindo que mancava, montaram nas bicicletas e dispararam pra casa. No dia seguinte, de baixo da mangueira, na reunião convocada com toda a patota presente, Rafael fez as anotações no seu caderno de investigação.
— Você se esqueceu de escrever aí que aquele tal de Pandeiro é horrível, maléfico e perigoso, disse a Raquel.
— Eu não aguento mulher burra, disse o André. Como é que pode haver um cara gamadão nela?
— Quem é que está gamadão em mim? perguntou ela ignorando a primeira parte.
— Vamos parar com esta besteira, disse Rafael. Ninguém está gamadão em você. Eu que não tô.
— lh, Rafael, não se mete, tá. A conversa não chegou aí, respondeu ela ofendida, passando as mãos nos cabelos louros e lisos.
— Vamos ao nosso assunto, que é melhor. Como fazer pra pegar a trouxa da Dona Filomena na quinta-feira?
— Vamos roubar as três trouxas, que tal? disse o Junior.
— Não, isto é bobagem. Quem se lembra da Dona Filomena chegando à casa do Sérgio?
— Eu, disse a Débora. E muito bem.
— Com quantas trouxas ela entra lá? perguntou o Rafael.
— Só com uma, disse a Débora. É. Isso mesmo. Todas as vezes ela entrou só com uma trouxa.
— Quer dizer que devemos dar um jeito de pegar a trouxa antes de ela entrar na casa do Sérgio. Aquela última trouxa traz alguma coisa dentro. Deve ser o horário, o lugar de encontro, e tal e coisa, disse o Rafael.
— E o tal de Pandeiro é que põe dentro da trouxa o recado pro Sérgio, concluiu o Júnior.
— Gente, temos três dias pra preparar tudo. Silêncio. Minhas massas cinzentas vão trabalhar. Concentração geral, pessoal.
— Lá vem o choque-choque outra vez, falou o André conformado.
— III —
A quinta-feira chegou e ninguém foi pra aula. A patota sabia que quando as notas bimestrais fossem enviadas com o número de faltas eles teriam muito que explicar, teriam que achar uma boa desculpa e poderia haver um fuzuê danado em cada casa. Os pais iriam querer saber por que tinham faltado, eles não contariam nem mortos, haveria castigo e até, quem sabe, algum deles poderia apanhar. Contudo, estavam firmes, dispostos a irem até o fim, mesmo sem saber o que poderia acontecer, mesmo sabendo que poderiam ter os traseiros ardendo.
De acordo com o combinado, o Douglas, por ser o mais velho e o mais alto, era o indicado para seguir o homem careca. O caso tinha sido muito bem estudado porque menor para viajar precisa de autorização paterna, e se o estranho entrasse em um ônibus era pra ir atrás dele pra ver até onde ele iria. O Douglas estava louco pra ir sozinho visitar a avó em S. Paulo e o pai dele já tinha concordado, mas só nas férias, isto é, se ele tivesse boas notas, se comportasse bem, essas coisas com que os pais chantageiam os filhos. Pois o Douglas fingiu que as férias já tinham chegado, e que ele havia passado de ano com cada notão de dar gosto, que ele tinha se comportado corno um anjo, e foi até o juiz com uma autorização assinada por ele mesmo com o nome do pai, uma assinatura muito fajuta que nem sei como caíram, e voltou com ela carimbada, prontinha pra viajar pra qualquer lugar, para ser apresentada em qualquer guichê de passagem. Em todo o caso, pelo menos tinha sido batida na máquina do pai dele embora com muita dificuldade. E a turma toda fez uma vaquinha, conseguindo uma boa grana pro bolso dele, caso fosse necessário seguir o estranho homem careca até plagas distantes.
Na quinta-feira, Débora e Raquel esperaram Dona Filomena perto da casa do Sergio, Os outros ficaram por perto, o Rafael levando uma trouxa de roupa na cesta da bicicleta. Tudo tinha sido muito bem combinado e ensaiado nos mínimos detalhes. A trouxa de Rafael havia sido preparada com roupas velhas, bem dobradas e ajeitadas. Quando viram Dona Filomena, a Raquel desandou a correr e se esparramou no chão bem aos pés dela, desatando um berreiro de dar gosto. A Débora que vinha correndo atrás, começou a chorar também, como de aflição.
— Acho que ela se machucou, coitadinha, chorava.
Dona Filomena reconheceu as meninas e queria ajudar, mas não sabia onde colocar a trouxa de roupa limpa, toda embrulhada num alvo pano de saco e presa por um alfinete.
— Eu seguro pra senhora, ajude a Raquel, disse ela, tomando a trouxa das mãos da lavadeira. Acho que ela se machucou ...
A lavadeira nem desconfiou e se abaixou para ajudar Raquel que chorava esparramada no chão como se tivesse machucado todas as partes do corpo. Rafael veio por trás, de bicicleta, deu uma paradinha rápida, trocou as trouxas, colocando nas mãos da Débora que ele levava na cestinha, também embrulhada num pano de saco muito alvo, um baita alfinetão segurando tudo dentro, tudo roubado das gavetas da casa dele. E se mandou seguindo em frente para o lugar combinado onde iria encontrar o resto do grupo. Os outros meninos se aproximaram dizendo: — oi! Dona Filomena, pode deixar que a gente cuida dela, esta menina vive se machucando. A lavadeira retomou seu caminho com a trouxa fajuta na cabeça e a criançada disparou para os lados do riacho para encontrar o Rafael. Lá abriram a trouxa de roupa. da mãe do Sérgio e, dentro do bolso de uma camisa, encontraram o bilhete.
Assim estava escrito: "Quinta-feira 16h futebol".
Foi um grito só que encheu o ar: Conseguimos! Conseguimos! Cada um fazia o possível para se mostrar mais, rolando no chão, pulando nas costas de quem estivesse mais perto, dando cambalhotas. Abraçaram-se e pularam, gritaram até acabar o gás. Então, foram se sentando no chão, e ficaram olhando um para o outro. Foi o André que fez a pergunta:
— E agora. Conseguimos. O que vamos fazer com o bilhete?
— E a trouxa de roupa limpa da Dona Filomena? Coitada dela, disse Raquel.
— Vou botar minhas massas cinzentas pra funcionar. Pessoal, silêncio e ajuda na concentração, pediu Rafael.
Aquilo parecia estar virando rotina na vidinha deles. E, como já estavam acostumados com o fato, ficaram em silêncio, ouvindo o choque-chocar acontecendo dentro da cabeça do Rafael. Quando o cabelo do cocuruto ficou em pé e ouviram o grito de eureca, o Júnior comentou:
— Acabou a palhaçada.
— Que palhaçada? Mais respeito! gritou Rafael.
— Palhaçada mesmo, retrucou, palhaçada no duro. Porque você não pensa como todo mundo e tem que fazer esta encenação e este barulho dentro da cabeça.
— É que meu cérebro é um computador, quando eu ponho a funcionar minhas massas cinzentas, as engrenagens lá dentro se mexem e fazem este barulho, explicou Rafael.
— Você é um robô ou o que? perguntou Raquel.
— É um androide? perguntou Douglas.
— Um extraterrestre? perguntou o André.
Rafael não aguentou e deu um berro:
— Cheeeeeeega! Eu sou de carne e osso. Vão parar com isso? Assim não dá pra brincar. Vocês estão enchendo o saco!
A Débora, maior e conciliadora, ficou de pé:
— Chega pessoal. Por favor, tratem de respeitar a maneira de ele pensar. Estamos perdendo tempo com discussões bobas.
— Tá bem, Débora, para de encher o saco e dar uma de mãe, falou o Júnior.
Todos se levantaram e esperaram as ordens das massas cinzentas.
— Bem, o Douglas vai se preparar para vigiar o cara que estiver às 4 horas no futebol. É. Deve ser o campo de futebol. Se vira, Douglas, finge que está consertando a bicicleta, ou o que você quiser, mas vigie o cara, que deve ser o careca, esperando o Sérgio. Ele vai fazer alguma coisa, tomar uma atitude quando o Sérgio não aparecer. Aí você vai atrás do cara nem que for pra pegar o ônibus. Se você demorar eu ligo pra sua mãe dizendo que você vai dormir em casa, que chegou um filme novo pro vídeo, tá? Eu vou pegar a trouxa da Dona Filomena e deixar na porta da casa dela, não sei o que ela vai pensar, mas não vou dar este prejuízo pra ela, coitada. Estou de bicicleta e chego lá antes dela que vai à pé.
— Xi! a coitada vai pensar que é coisa da alma do outro mundo, falou o André rindo.
— É mesmo. E aposto que ela vai procurar minha mãe no centro espírita pra dizer tudo e minha mãe, que não sabe das coisas que estamos aprontando, vai até fazer sessão especial pra ela, riu o Júnior junto com os outros que, só de pensar na coisa toda não conseguiram parar o riso.
Depois de uns bons cinco minutos de risada, gozações pro lado dos espíritos, almas, assombrações, fantasmas, almas penadas e considerações sobre o Pluft, o Penadinho, a coragem de cada um no escuro, Rafael montou na sua Caloi com a trouxa de roupa na cestinha e pedalou em direção da casa de D. Filomena. Douglas, seguido pelos outros, entrou pé ante pé na garagem da sua casa e, sem fazer o mínimo de ruído, retirou a sua Monark, pedalou em direção ao campo de futebol e arrumou um bom lugar para espionar o careca que deveria chegar às quatro horas. Os outros, andando e correndo, bufando e xingando, foram atrás e arrumaram um bom lugar para espionar o Douglas.
Enquanto a patotinha se preparava para atacar, transformando-se numa pedra do sapato do Sérgio e do homem careca, a trouxa de roupa velha do Rafael se tinha transformado num verdadeiro enigma. A mãe do Sérgio estava furiosa com a lavadeira e se preparava para pegar seu Fusquinha para ir até a casa dela. Já o Sérgio estava apavorado, quase chorando, sem ter a mínima ideia do que estava acontecendo. Sabia que deveria haver um recado para ele, da parte do Pandeiro, para encontrar com o careca que ele nem sábia como se chamava, pagar e receber a grana do mês, receber a sua parte de erva e pó, e receber o material para trabalhar. Não sabia se corria pro Pandeiro, se é que o bandido estava na cidade, não sabia se chorava ou se fugia, com medo que tudo estivesse descoberto e a polícia batesse na porta. A mãe dele, que nunca tinha nem percebido um filho drogado e traficante dentro de casa, não percebeu o filho assustado, aterrorizado e choroso que estava na frente dela. Só percebia que as roupas da trouxa da lavadeira não eram suas e, se ao menos fossem melhores, e tivessem alguma serventia, ainda dava pra aturar, mas não aquelas porcarias velhas que nem pobre queria. O Sérgio saiu pra rua, na esperança de encontrar o careca, foi em todos os pontos antigos e, por fim, desistiu e foi curtir seu desespero fechado dentro do quarto, já que não tinha ido pra escola mesmo.
O Douglas, sem nem pensar o que estava acontecendo com o Sérgio, (ninguém pensou nisso, nem mesmo as massas cinzentas do Rafael) já estava cansado de esperar, também, tinha chegado antes da hora, mesmo com toda lenga-lenga, quando pintou na esquina de baixo carregando uma pasta 007 na mão esquerda e um embrulho parecido com uma caixa de sapato na direita. Chegou em cima da hora, parou no portão do estádio de futebol, que estava fechado àquela hora, e ali ficou esperando, como quem não quer nada Olhava o relógio de pulso, sacudia as pernas, andava uns passos rua acima e voltava. Até que desistiu e desceu a rua em direção à rodoviária. Douglas não perdeu tempo, foi seguindo o homem e viu ele se enfiar num boteco muito vagabundo da rodoviária, ficando meio escondido e procurando não ser notado. A turma ia atrás do Douglas e ficou na esquina de prontidão, mas o homem não saia do bar. Viram quando o Sérgio passou e olhou pra rodoviária, disfarçaram trocando figurinhas, e ficaram contentes quando ele se afastou, virando uma esquina, sem perceber que o careca estava metido no fundo do boteco, fingindo que bebia uma cerveja. Viram quando o careca saiu do bar, olhou para os lados quando chegou na porta e foi para o guichê comprar passagem. O Douglas não pensou duas vezes: largou a bicicleta, fez sinal pra o Júnior cuidar dela, e correu atrás do careca, ficando bem atrás dele no guichê. Assim que o homem saiu pra entrar no ônibus que tinha acabado de encostar, o Douglas comprou a sua passagem e conseguiu com a autorização que levava, embarcar também.
— Lá vai o Douglas realizar seu sonho dourado, viajar sozinho e de ônibus, comentou o André.
— É. Tomara que ele volte. Se ele não voltar minha mãe me mata, disse a Débora que era irmã dele.
— Vira essa boca pra lá, cruz credo. Vamos pra casa do Rafael, esperar que ele chegue na esquina e contar pra ele que o Douglas viajou, falou Raquel.
— É, falou o Júnior em cima da bicicleta do Douglas. Ele tem que tapear a família dele, principalmente a D. Isa que não larga do pé dos filhos.
Nem esperaram o ônibus partir. Deixaram o Douglas, meio apavorado com o rumo que as coisas estavam tomando, sentado bem atrás da careca do homem, pensando como enfrentaria a mãe quando voltasse tarde pra casa, roendo as unhas sem poder tirar os olhos daquela cabeça sem cabelos. Ele nem viu quando o ônibus começou a rodar, quando olhou pela janela já estava fora da cidade. Caderninho na mão, foi tomando nota de todas as placas que apareciam na estrada. O homem não desceu quando pararam numa lanchonete. Nem quando pararam na rodoviária de uma cidade do caminho. Já estava escuro e muito difícil para ler as placas que cruzavam o ônibus. Douglas estava sonolento, deu uma boa cochilada, já bem longe de casa e, quando o ônibus diminuiu a marcha e encostou no acostamento, Douglas acordou, levou uns momentos para descobrir aonde estava, olhou para frente. A careca não estava lá. Ficou de pé e viu a careca descendo do ônibus num lugar cheio de mato, com uma estradinha de terra saindo do asfalto. O ônibus partiu e Douglas conseguiu ver o homem careca sumindo por ela na escuridão. Douglas estava paralisado. Não teve coragem de descer e seguir atrás do perseguido, pois a escuridão era grande e ele não era tão corajoso assim. Mas teve a presença de espirito de ir até o motorista e se informar, perguntar o nome da estrada, o quilômetro, a cidade mais próxima. Tomou nota no seu caderninho e esperou o ônibus parar na primeira cidade, onde desceu para voltar para casa. Quando desceu na rodoviária, de volta, já eram oito horas da manhã e ele restava mais morto que vivo, de tão cansado, com fome e com sono. Entrou pela cozinha da casa do Rafael e o danado ainda estava, todo folgadão, na cama, dormindo corno um anjo.
— Aí heim! O garotão na boa vida e eu aqui caindo de cansado, foi dizendo Douglas, acordando o amigo.
— Vai! Você queria que eu ficasse acordado fazendo o quê? Eu quebrei o galho pra você. Sua mãe pensa que você dormiu aqui. Conta logo, como foi? Conta, cara.
— Primeiro quero comer. Tô morto de fome. E numa canseira!
Enquanto tomavam o café da manhã, Douglas foi relatando suas aventuras, mostrando as anotações do caderninho, os quilômetros rodados, a ida e a volta, tudo tim-tim por tim-tim, sem deixar escapar uma vírgula. Depois de terminar de comer e de cortar, perguntou:
— E agora, o que vamos fazer?
— Reunir o pessoal debaixo da árvore e botar as minhas massas cinzentas para funcionar, disse Rafael.
— IV —
Depois do choque-chocar das massas cinzentas do Rafael e de seu delirante grito de eureca! a patota esperava, pacientemente, pois já estavam todos acostumados com a encenação e o ritual pensante, a manifestação do líder. E ele fez um discurso e tanto, ficando patente que não desistia tão fácil de sua futura carreira de político do ano 2010.
— Meus companheiros de investigação e aprontações, estamos na hora da verdade.
Chegamos a um ponto de nossas investigações que é covardia recuar. Portanto, quem quiser desistir agora e calar-se para sempre para que nossos segredos não sejam descobertos, estará desculpado. Chegou a hora da ação e da destruição.
Ele teria ido mais longe no seu treinamento se o Júnior não protestasse:
— Chega de babaquice, cara! Tá enchendo!
— É mesmo. Apoiado! Fala direito, cara, gritou a Raquel.
O protesto foi geral, ninguém queria ouvir a discurseira, o que fez com que Rafael acabasse concordando:
— Em vista do protesto de todos os presentes aqui reunidos, vamos aos fatos, a coisa vai pegar fogo. Aliás, eu tinha prometido isto, gente. Quem quiser desistir, pode sair, mas tem que jurar que vai guardar segredo e silêncio.
Alguém quer desistir? perguntou o Júnior. É só levantar a mão e sair, jurando antes, é claro.
Ninguém se mexeu. Ninguém queria desistir, agora que estava tudo se esquentando, depois da pasmaceira de vigiar casa durante tanto tempo.
— Tá legal. Vamos ter de viajar de bicicleta, acampar, investigar fora da cidade, a partir do ponto em que o Douglas parou.
— Minha mãe não vai deixar, disse a Raquel.
— Quem falou em mãe? Ein? Quem falou que vamos pedir para ir? Se a gente pedir, vocês acham que vão deixar? Claro que não. Topam?
— Topamos, gritaram todos.
— Tá. Todo mundo vai se preparar para viajar. Mochila com comida, alguns itens importantes ...
— O que é Item? perguntou o André. Vê se fala direito.
— Rafael pensou, pensou e respondeu:
Item é coisa, é isso. Coisa. Algumas coisas importantes e agasalhos. Eu arrumo uma barraca. Vamos sair de madrugada depois de amanhã. Vou fazer uma lista do que cada um precisa levar, porque se a gente sair muito carregado não vamos aguentar. E vamos levar a Afrodite.
— Se a gente levar a Afrodite a gente tem de levar comida de cachorro, reclame o André.
— Que nada, retrucou Rafael. Ela é esperta e pode cavar a própria comida. Ela é boa pra tomar conta e defender a gente.
— E a mamãe? Ela não vai deixar a gente sair, disse a Débora.
— Vamos falar em casa que haverá uma excursão da escola, assim todo mundo sai bem cedo como se fosse para a tal de excursão e fica esperando na esquina da Farmácia São José.
— Eu tô morto de cansado, gente, protestou o Douglas. Primeiro preciso dormir.
O dia seguinte foi uma loucura. Os baixinhos, cada um na sua casa, procuravam o que tinha de ser levado na mochila, segurando uma lista enviada pelo Rafael: um saquinho de leite em pó, duas latas de leite condensado, duas latas de salsicha, uma lata de apresuntado Swift, dez chocolates Prestígio, dez chocolates Creck, dez Lolos, dez Cadilacs, dez sacos de batatinha Chips, chicletes de bola, três latas de Coca-Cola e três de Guaraná Brama, um pacote de baías, dois pacotes de amendoim torrado, dois pacotes de biscoito Maribel, um pacote de pão, um vidro de Maiocrem, um copo de plástico, um abridor de lata um rolo de papel higiênico, uma lanterna com pilhas e um canivete. Todos deveriam se vestir com um training, uma camiseta por baixo, meias e tênis, ter um pulôver amarrado na cintura. Além disso, cavar uma grana, quebrando cofrinho, pedindo mesada adiantada, pedindo emprestado, tirando da poupança, pedindo pro avô, vendendo algum brinquedo ou revistinhas.
Não foi fácil encher as mochilas, ninguém encontrou na dispensa o que o Rafael tinha colocado na lista. Mas se viraram, e no dia e hora marcados para o encontro, lá estavam todos eles, sem desistentes, olhando o dia amanhecer, silenciosos e ordeiros. Saíram em direção à estrada asfaltada, seguindo o caminho anotado pelo Douglas. Pedalaram, pedalaram, pedalaram, cantaram, cantaram, cantaram, riram, riram, riram, sempre pelo acostamento. Afrodite, companheirona, trotando do lado.
— Não aguento mais, preciso descansar e beber água, gritou o André.
— Eu também, gritou a Raquel.
— Vamos parar no primeiro posto de gasolina que tiver lanchonete. Preciso ir ao banheiro, disse o Júnior.
— Pra ir ao banheiro você pode entrar no mato ai mesmo que a gente espera, falou o Douglas.
— Negativo. É banheiro no duro pra mijar até que dava, mas eu preciso outra coisa, respondeu o Júnior.
— Bem, se é assim vamos acelerar que a gente deve achar algum, ainda não topamos com nenhum.
Pedalaram mais meia hora, o Júnior dizendo que se não aguentasse e desse vexame era culpa do bandido que tinha inventado aquela investigação e aprontação, que ele gostava de aprontar mas com banheiro por perto, que não sabia se ia segurar aquela barra, que só tinha aquelas calças. Por sorte, um posto apareceu depois de uma curva e eles quase morreram de rir, vendo o Júnior desabar pra dentro do banheiro, a mochila quase caindo dos ombros, numa aflição de dar gosto.
— Se eu soubesse que este cara estava com dor de barriga tinha adiado a saída pra amanhã, disse o Rafael.
Se não fosse a dor de barriga do Júnior eles não teriam encontrado o Pedrão, um negrão enorme com a boca nua de dentes, mas um camaradão. Fez amizade com a turma ali naquele posto e, sabendo para onde eles iam, ofereceu uma carona no caminhão vazio que ia buscar carga em Mato Grosso.
— Não é muito longe daqui. Não é muito longe de caminhão, mas rodando de bicicleta, vocês vão levar uns três dias.
— E o senhor dá uma carona pras nossas bicicletas também? Pra cachorra?
— Dou. Vocês estão aprontando alguma coisa? Cadê os pais de vocês? E as mães? Rafael respondeu sem perder tempo:
— Que nada, seu Pedrão. Fazemos parte de uma turma de escoteiros que tem que cumprir uma tarefa muito importante de autossobrevivência na selva, com o consentimento de nossos pais e o apoio da comunidade.
— Bem se é assim eu levo bem perto de onde vocês querem ir, disse o Pedrão concordando em levá-las, mesmo porque não sabia o que era escoteiro, nem autossobrevivência e muito menos selva, mas tinha gostado muito do discurso do baixinho de óculos, isso tinha.
Com esta ajuda do Pedrão e da providência divina que toma conta das crianças, chegaram bem perto da estradinha por volta de duas horas da tarde. Estavam mortos de fome e entraram no chocolate. Rafael foi avisando:
— Cuidado pessoal, se a comida acabar a gente passa fome, a gente se ferra.
A estradinha estava vazia. Era de terra mesmo, do jeito que o Douglas tinha falado, e entrava pelo mato adentro, sem indicação e sem nenhuma placa. A patota entrou no mato à esquerda dela e achou um bom lugar para acampar a uns duzentos metros, bem escondido pela ramagem dos arbustos. Enquanto eles tentavam armar a barraca que tinha vindo na cestinha da bicicleta de Rafael, toda amarrada um pacote até que pequeno para uma barraca, porque era minúscula, a Afrodite desapareceu no meio das árvores. A luta com a barraca durou urnas quatro horas, tinha hora que eles pensavam que iam dormir ao relento, ficando patente que, de armar barracas, ninguém entendia bulhufas, tanto meninos quanto meninas. Erguiam de um lado, caia do outro, puxavam aqui, sobrava ali, faltava pedaço, sobrava pedaço, menina chorava, menino xingava. Quando a danada ficou armada, estavam todos em estado de calamidade pública, suados e arrebentados, mais mortos que vivos, caídos no chão sem se importarem com formigas ou outros insetos. Então, apareceu a Afrodite, toda lampeira, o focinho cheio de penas grudadas como se estivesse passado cola, lambendo os beiços.
— A danada achou o que comer! gritaram todos.
— Au! Au! respondeu Afrodite.
A emoção fora tão forte, a confusão tão formidável, que eles próprios tinham se esquecido dos estômagos pedindo comida. Assim, como ninguém era de ferro, todos fizeram uma refeição à base de salsicha e chocolate, beberam Coca-Cola e água que acharam numa nascente não muito longe e foram dormir. No dia seguinte, depois de um descanso merecido, começariam a vigiar a estradinha na esperança que o careca passasse de novo por ali.
— Pessoal, ordenou o Rafael, está escurecendo. Vamos dormir. A Afrodite fica vigiando na porta. Todo mundo fazer xixi pra deitar.
— Primeiro os meninos, disse André mergulhando no mato.
— As meninas esperam aqui. Afrodite, toma conta delas, mandou Rafael.
A cadela ficou sentada ao lado das duas, que tremiam de medo pois, além de estarem sozinhas, estava escurecendo rapidamente. Quando os meninos voltaram já estava escuro.
— Tô com medo, falou Raquel.
— Eu também. Não gosto de fazer xixi no escuro, falou Débora.
— Não seja por isso. Eu seguro a lanterna pra vocês enquanto vocês fazem xixi, disse Rafael, todo cortesia.
A Débora assentou as baterias contra ele:
— Não se atreva, seu cretino assanhado. Furo os teus olhos! Faço você engolir os óculos. Dá a lanterna que nós vamos sozinhas.
— Isso mesmo, arrematou a Raquel.
Foi uma risada só, a turma rolando de rir do ralo.
— Droga! Eu só quis ser educado, retrucou Rafael. Pode até ter cobra por perto!
— Educado uma oval Você queria espiar as meninas, riam dele.
As meninas voltaram logo e começou o drama de dormir todos numa barraca feita pra dois, um pedacinho de chão apenas suficiente para abrigá-los sentados. A operação exigia uma competência de doutorando em acomodações e embalagem e, na escuridão, quando ninguém conseguia segurar a sua lanterna e se deitar ao mesmo tempo, o tragicômico pasticho durou pelo menos uma meia hora. Enfim, o cansaço era tanto que dormiram como puderam, perna em cima de cara, cara em baixo de barriga, barriga virada pra baixo, pro lado e pra cima, bunda pra cima, pro lado e pra baixo, braço torto pra esquerda, braço torto pra direita, pé pra fora e pé pra dentro, uma loucura, parecendo um bolo de minhocas que ninguém sabe onde começa e onde acaba cada uma. Só acordaram quando o dia estava quente, suando em bicas, a barraca transformada num forno. André, o primeiro a acordar, gemeu sufocado:
— Sai de cima da minha cara, tô todo torto e sufocado!
O Douglas com a bunda em cima da cara dele foi sacudido e, como não acordava recebeu uma mordida pra valer na parte suculenta do traseiro e deu um grito que fez a Afrodite latir e os dorminhocos acordaram, quase derrubando tudo. Foram desembaraçando o nó de pernas e braços e saindo da barraca, e a Débora perguntou, espreguiçando-se e endireitando o corpo torto:
— Como será que estão lá em casa?
Se ela soubesse, voltaria correndo. Na véspera, quando tinha começado a escurecer e o Rafael ainda não tinha voltado da tal excursão com a escola, D. Cecília telefonou para D. Carmem perguntando se os filhos, Júnior e Raquel, já estavam em casa, depois para D. lia pra verificar o mesmo. As três ficaram preocupadas e trataram de tirar a limpo a história da excursão que estava entrando noite adentro. Quando descobriram que não tinha havido passeio nenhum com a escola, entraram em pânico. As três se reuniram e telefonaram pra Deus e todo mundo, mas não conseguiram descobrir o paradeiro da patota.
— Sequestro! gritou D. Cecília, sequestraram nossos filhos! Como a Soninha!
— Não, não, não! Não pode ser, chorava D. Carmem. Precisamos avisar nossos maridos.
— Eu sabia, eu sabia que se deixasse as crianças saírem nesta tal de excursão ia dar bobagem. Porque eu deixei, meu Deus! gemeu D. Isa.
— Não houve nenhuma excursão! Enganaram os coitadinhos e roubaram nossos queridos, disse D. Carmem.
Chorando juntas, as três mães foram até a delegacia dar parte do desaparecimento dos filhos.
— Não deve ser nada, as senhoras fiquem tranquilas, disse o Dr. Sandoval, delegado de polícia, tentando acalmá-las. Nenhum bandido de juízo sequestra seis de uma vez.
— Quer dizer que quem sequestrou as crianças é louco? Oh, meu Deus! exclamou a D. Cecília.
— Não senhora, pelo amor de Deus, eu não disse isso. Só disse que não deve ser sequestro. É aprontação de criança.
Mas nada poderia acalmar as três mães juntas, quando uma falava, as outras falavam ainda mais, quando uma chorava, as outras choravam ainda mais, quando uma gritava, as outras gritavam ainda mais, a delegacia virando um pandemônio, atraindo gente que passava para ver o que tinha acontecido, a notícia se espalhando pelos quatro cantos da cidade.
— Vão pra casa, calma, senhoras. Vou mandar os carros percorrerem a cidade e a periferia, disse o delegado.
— O Rafael saiu tão cedinho! Nem vi o menino sair, disse D. Cecília desesperada.
— Os meus também, doutor, disse D. Carmem.
— Também não vi minhas crianças saírem, disse D. Isa.
O trio ficou sentado na sala da casa de D. Cecília, transformada em quartel general, rezando e chorando, esperando que a criançada fosse encontrada. Quando o marido de D. Cecília chegou do hospital, estava exausto, viu a mulherada ali na sala em silêncio, caras inchadas de chorar, narizes vermelhos e fungando, esperando, esperando, esperando, passou e foi para o quarto. Nesse momento chegaram os outros maridos que ficaram ao lado de suas mulheres, curtindo a fossa com elas. D. Cecília ficou brava e foi para o quarto, atrás do marido:
— Você entra, não faz nada, a gente aflita aqui. Você sabe o que está acontecendo?
— Não e não quero saber. Onde está o Rafael? respondeu mal humorado.
— Não quer saber? Pois é. Ele sumiu. Não houve excursão da escola coisa nenhuma. Ele foi sequestrado! gritou ela, fora de si, desatando num choro incontrolável, que podia ser ouvido a dois quarteirões de distância.
o pai do Rafael ficou pasmado e, sem raciocinar, sem pensar nem mesmo um segundo, começou a berrar, pondo a culpa na mulher de não tomar conta do filho, xingou como um possesso, espumou e gritou. Depois que fez escândalo pra ninguém botar defeito, caiu em SI:
— Meu Deus, a polícia. Precisamos avisá-la.
— Já fui, chorou D. Cecília. Sumiram os da Carmem e os da Isa também. Foram todos sequestrados, como a Soninha.
Uma hora depois a casa estava cheia de gente, amigos que vieram rezar, amigos que vieram consolar, amigos que vieram xeretar, amigos que queriam ajudar. Todos saíram, rodando de carro e andando a pé, pelas ruas do centro e pelos bairros distantes, perguntando, indagando, investigando, procurando por seis crianças que ninguém tinha visto.
Ninguém conseguiu dormir, nem mesmo com calmante. Ficaram acordados esperando, esperando, esperando com muita esperança.
Três dias depois do acontecido, a cara dos seis patifes fujões aparecia em todos os canais de televisão do país e eram mais conhecidas do que o rosto da Xuxa, enquanto três mães choravam e se descabelavam e três pais não conseguiam trabalhar. Enquanto isto os danados nem desconfiavam do fuzuê federal que tinham aprontado e passavam os dias comendo banana roubada (a comida que tinham trazido já havia ido embora), brincando de detetives, dormindo amontoados e usando o mato como banheiro, mas sem tomar banho.
Os dias foram rolando, uma semana inteira se arrastando, os seis cada vez mais sujos e fedorentos. O pior pedaço da coisa acontecia na hora de dormir, um sufoco, um reclamando do cheiro do outro, cada um rescendendo mais que gambá. Quando já estavam por lá há uma semana, todo mundo estava pelas tabelas. Estava anoitecendo e era hora de entrar pra toda barraca e dormir, porque a noite era escura e tinham medo até de vagalume. O André foi o que puxou o assunto:
— Não aguento mais comer banana. Porque fomos achar aquele bananal? Acho que nunca mais vou comer banana na minha vida. Eu queria estar em casa.
— Quero ir pra casa, chorou a Raquel. Vamos pegar as bicicletas. Vamos embora já, mesmo no escuro. Quero dormir na minha cama.
— Nunca pensei que eu tivesse vontade de tomar banho, falou o Douglas. Logo eu que 'bati o recorde de ficar uma semana sem entrar dentro d'água.
— Quero dormir na minha cama e ver minha mãe, chorou o André de novo.
Nunca pensei que família e casa da gente fosse tão importante, suspirou a Débora.
Um rosário sem fim de lamentações começou a ser desfiado nos ouvidos do Rafael que só ouvia e nada dizia, mesmo com vontade louca de correr para a casa dele. Por fim, fazendo-se de durão decretou:
— Tá bom! Se até amanhã à tarde não acontecer nada a gente volta e pronto. Pra falar a verdade também não estou aguentando mais. Não aguento mais este tênis no pé, tá tudo coçando aqui dentro. Vou tirar o tênis pra dormir.
— Ah não. Não e não, disse o Júnior e todos concordaram.
— Não por quê? Não aguento mais este desgraçado no pé.
O Júnior não fez cerimônia:
— Você tirou ontem pra tirar uma pedrinha e nós tivemos que sair de perto.
— Mas está cheio de lama ...
— Se você chulezar dentro da barraca não vai dar, eu vomito, falou a Débora.
— E a lama? insistiu Rafael.
— Quem se importa com lama=No estado que a gente tá, lama é limpeza, falou o André.
— Chulé não e não, falou o Douglas. A gente já tem catinga demais aqui dentro.
— Tá bom! Vou dormir com barro. Venceram. Afinal o que é um pé sujo de barro em relação a seis latas de lixo? Se nada acontecer amanhã o melhor é voltar mesmo, concordou conformado.
— E levar uma surra por termos fugido, falou o André.
— Que surra que nada. Vão ficar tão contentes de ver a gente de volta que não vai acontecer nada, concluiu o Júnior muito sabido.
Deu sorte. O magro careca desceu do ônibus quase no fim da tarde, vindo de outra direção, e pegou a estradinha, pasta 007 na mão, num passo sossegado, sem pressa. O André e a Raquel que estavam na espreita correram para avisar a turma, o Júnior e o Rafael escalados para seguir o homem mesmo depois de escurecer. E escureceu rapidamente. Lanternas na mão, auxiliados por uma bela lua cheia que deixava tudo bem claro, os dois deram uma boa corrida pela estradinha de terra até avistarem o careca. Seguiram o danado por uns bons quilômetros, a Afrodite trotando do lado, até que as pernas não aguentaram mais esticar, e o homem não chegava a lugar nenhum. Estavam para deitar no chão, no meio da estrada, quando o careca se meteu no mato à esquerda e sumiu. Os dois se arrastaram até o lugar e descobriram uma porteira que mal escondia uma casa de sítio. Entraram com cuidado, pois havia luz na casa, esperando latidos de cães, pois qualquer casa de sitio que se preze tem cachorrada, mas não viram nem ouviram barulho dos animais.
— Não aguento mais, primeiro quero descansar, depois vigiar, disse Rafael.
— Eu também cara. Vixe Santa! Tô botando os bofes pra fora e minhas pernas estão tremendo, falou o Júnior. Nunca pensei que pra brincar de detetive precisava ter tanto preparo físico!
Andaram ao redor da casa, a Afrodite cheirando tudo quanto é pauzinho e pedrinha no chão, detetivando também, e toparam com um telheiro enorme onde cinco carros grandes, cinco Mercedes, estavam abrigados.
— Vamos descansar dentro de um deles. Um fica na frente, o outro atrás, sugeriu Rafael.
— Não, vamos ficar juntos, e com a Afrodite no banco de trás. A gente se ajeita. Sozinho eu não fico. Pode até me chamar de cagão.
Os dois se deitaram na parte de trás de um dos carros, o Júnior, maior, no banco, o Rafael abraçado com a Afrodite, no chão. Mas os coitados nem chegaram a dormir. O carro foi chacoalhado quando a porta se abriu e ocupado por dois homens, um deles o careca. O Júnior escorregou para o chão junto com o amigo que fazia sinais para, pelo amor de Deus, não falar, não fazer barulho e depois de dizer ao ouvido da Afrodite para não dar um pio, ainda segurou o focinho dela por via das dúvidas. Quase foram descobertos:
— Que catinga está aqui dentro! Vamos abrir as janelas. De onde vem este fedor danado? Chulé com bodum! É preciso lavar o carro!
Abriram as janelas e um vento forte entrou pelo carro que rodou durante umas boas três horas, com os três, dois meninos e um cachorro na parte de trás, clandestinos que tremiam de medo e não ousavam mover um só músculo, as pernas adormecidas, os olhos arregalados, quase não aguentando mais e preferindo se entregar. Quando os dois já pensavam ao mesmo tempo, chega de brincar, eu vou me entregar, o careca quebrou o silêncio:
— Nós vamos até o chefe, não é? Nunca fui até lá. Acho que vou ser promovido pelo meu trabalho na minha região. Houve um pequeno contratempo há uns dias atrás, mas já está tudo sob controle:
— É, respondeu o outro. Pode ser.
— Como é o chefe? Você conhece o poderoso senhor?
— Nunca vi o homem e nem quero ver. Nós não falamos com ele. Só com o sub--chefe, Pouca gente chega perto do poderoso chefão. Só tem segurança em volta dele! Um exército!
-— Quem será ele? perguntou o careca.
— Sabe de uma coisa? Você está perguntando demais. Se você quer continuar vivo é melhor parar por aqui. Se perguntar demais será um homem morto. Dizem que o poderoso senhor tem uma fera, um bicho selvagem, para devorar quem ele acha que está importunando.
— Tô calado. Sou um túmulo. Não quero morrer assim. Deus me livre.
Este diálogo confortador fez com que a vontade de se entregar e parar de brincar de detetive sumisse da cabeça dos dois clandestinos. Se abrisse a boca ou fossem descobertos, a vaca ia pro brejo e seria comida de bicho, isso eram favas contadas.
Quando o carro parou já estavam até meio abobados, mais desmaiados que acordados. Os homens desceram, sumiram numa casa grande e os três voaram, pra fora do carro, se arrastando pelo chão até uma moita de plantas e ali ficaram até o dia clarear, uma hora depois, botando o corpo em ordem num merecido repouso.
— Não aguento de fome, falou o Rafael, mostrando que estava novinho em folha.
— Eu também, minha barriga está fazendo um barulhão, tá ouvindo? Perguntou o Júnior, também ressuscitando.
— Não, não tô. Tô ouvindo só a minha, disse Rafael.
— Você é um egoísta. Só se importa com a sua fome.
— O que vamos fazer agora?
— Vou botar minhas massas cinzentas pra funcionar, disse o Rafael. Se é que sobrou massa cinzenta depois deste massacre que a gente sofreu.
O baixinho sentou-se no meio das plantas, cruzou as pernas, colocou as mãos nas têmporas e abaixou a cabeça. O choque-choque não demorou a aparecer, mostrando que as massas cinzentas iam bem de saúde, muito obrigado. Choque-chocou por um tempinho, o cabelo do cocuruto arrepiou e, quando ia gritar eureca, o Júnior, muito previdente, se a tirou em cima dele, tampando a boca com as mãos, recebendo em troca uma mordida. O eureca saiu estrangulado e o Júnior pê da vida com a dentada, jurando que, na primeira oportunidade tiraria uma desforra pra valer, o Rafael xingando a mão suja do Júnior na boca dele.
— Tira esta mão cheirando a merda da minha boca!
— É bom parar por ai, disse finalmente o Júnior. Depois a gente acerta as contas, tim-tim por tim-tim. Que vamos fazer? O que disseram as massas cinzentas?
— Vamos mandar a Afrodite buscar o resto da turma e ficar esperando. Pela distância vão demorar um bocado pra chegar aqui. Enquanto isto a gente procura se arrumar e vigiar os bandidos.
E para a Afrodite:
— Vai buscar o resto da turma. Correndo!
Afrodite obedeceu e partiu, corno uma seta negra disparada, em direção ao acampamento onde Douglas, Raquel, Débora e André esperavam, sentados dentro da barraca, um encostado no outro. Quando a Afrodite chegou estavam desesperados, sem saber se iam embora ou não, famintos pois não tiveram nem coragem de sair e roubar um cacho de banana, sem sair de perto da barraca. Quando viram a cadela criaram alma nova.
— Ou eles estão em perigo ou mandaram pra avisar a gente, palpitou o André.
— Peguem as bicicletas, vamos seguir a Afrodite, disse a Débora.
— É isso mesmo, concordou o Douglas. Mas vamos encher a mochila de bananas elevar com agente. Nunca se sabe.
— Tá legal, falou o André. Vamos comigo Raquel, vamos buscar um lindo cacho desta fruta maldita e encher as garrafas de água.
— V —
Enquanto a Afrodite, muito obediente, saia na disparada para buscar o resto da patota, Júnior e Rafael descansaram mais um pouco enquanto o sol esquentava, curtindo uma fome danada. Os bandidos tinham sumido pra dentro de uma bela casa e com certeza, também descansavam. Depois, quando o sol já estava alto, os dois se arrastaram para fora do esconderijo em que se tinham metido e deram uma boa olhada no local. Era uma beleza de lugar, cheio de casas de veraneio, quase todas fechadas, à beira de uma porção de água, muito azul, parecida com um lago enorme e muito manso, ancoradouros para lanchas, jardins floridos, muito verde, muita árvore, areia formando praias. Júnior e Rafael viram, ao mesmo tempo, um terraço muito grande de uma casa, e perceberam que lá poderiam vigiar o lugar dos bandidos. Era uma bonita casa de campo, branca, estilo colonial, toda rodeada por um terração, com ganchos de rede e plantas penduradas. Além disso, estava fechada, os donos longe esperando as férias para habitá-la, dando uma sopa danada, chamando dois meninos sem casa. Os dois rodearam o terraço, fuçaram tudo, examinaram todas as janelas, verificaram as portas da frente e do fundo, viram a linda lancha guardada na casa de barcos, foram até o ancoradouro, andaram pelo quintal e pelo jardim.
— Que pena, uma boa base para nossas investigações, sem gente, e não vamos conseguir entrar, disse o Júnior pesaroso. Será que tem caseiro?
— Não tô vendo gente por aqui, acho que não tem.
— Será que eles não deixaram uma chave escondida por ai? Muita gente grande faz estas coisas, deixam uma chave escondida para o caso de esquecerem em casa... Vamos procurar? Você olha nos fundos que eu olho na frente.
Rafael começou a caçada, revirou os vasos, os parapeitos das janelas, os cestinhas, os vasos de planta do terraço, mas foi o Júnior que achou, debaixo do tanque, numa latinha velha, bem escondidinha. Não serviu na porta da frente mas não deixou os dois na rua; era da porta dos fundos.
— Poxa! Que sorte! riram felizes da vida.
Os dois entraram na casa e vasculharam tudo, procurando comida. Acharam um freezer estourando de tanta coisa boa, uma dispensa bem sortida e roupas limpas nos armários.
— Vou tomar um banho pra valer, disse o Rafael. Nem eu tô aguentando o meu cheiro. Nunca na minha vida pensei que um dia eu iria tomar banho sem ninguém mandar.
Enquanto tirava a roupa e ficava peladão pra entrar numa boa chuveirada, foi comandando:
— Oi cara, veja se o gás está ligado e ponha uma panela de água no fogo. Depois tire umas salsichas do freezer, também uns pãezinhos que eu vi na gaveta de baixo. Depois do banho vou fazer um cachorro no capricho. Se você quiser faço pra você também, sou cobra numa cozinha.
— Entra logo no banho, cara, depois vou eu. É pra já. Vou encher a cara de tanto comer, pode crer.
— Quando a turma chegar aqui vai se deliciar, riu o Rafael.
Depois de um bom banho, roupas limpas no corpo, mesmo que estivessem largas, comeram sanduíches com muita mostarda e ketchup, dois guaranás tamanho família, dois rocamboles, dois patês de biscoito e um salaminho inteiro. Que felicidade!
Combinaram que não acenderiam luzes na casa e nem fariam barulho para não despertarem suspeitas, afinal era uma casa fechada, os donos ausentes, era melhor que não aparecessem, que ficassem bem quietos para poder melhor vigiar a casa dos bandidos. Além disso, poderia aparecer alguém para cuidar do lado de fora, que estava muito bem tratado, e verificar a casa. Fora a comida e o banho, a cama para um bom sono, as roupas emprestadas, não mexeriam em nada, deixando tudo na casa como tinham encontrado. Pelas três horas da tarde o careca saiu com outro homem em direção ao ancoradouro. Entraram numa lancha e sumiram de vista. Pela lógica, concluíram que ali não poderia ser a casa do chefão, pois várias vezes a lancha chegou e partiu, sempre transportando gente. Eles não tinham a menor ideia do lugar-que estavam, nunca tinham estado ali, só sabiam que era muito distante de casa.
— Não podemos sair daqui enquanto o resto do pessoal não chegar, disse o Rafael.
É pena porque perdemos o careca de vista. Tenho certeza que a Afrodite vai trazer todos aqui.
— Mas se qualquer um que seguir o caminho do careca, isto é, o caminho da água, deverá chegar na casa do tal poderoso senhor, você não acha?
— Acho, cara, claro que acho. Você tirou as palavras da minha boca.
Os dois ali ficaram, vigiando cuidadosamente a casa vizinha, comendo os congelados do freezer, dormindo em boa cama, usando o banheiro, mas deixando os banhos de lado que ninguém era fanático, sem ascender luzes, sem ligar rádio, som ou televisão, sem fazer muito ruído, bem comportados. A turma demorou mas chegou, num bagaço de dar gosto, com muita fome e mais sujos do que o Cascão. Ficaram vagando atrás da Afrodite, como um bando de ciganos fedorentos, e só sossegaram quando viram os amigos abriam. Sentaram-se todos em frente ao aparelho, dando uma trégua na investigação à casa vizinha, prontos para curtir uma aventura colorida mas, todos os canais só tinham jornal, uma chatura. Era até melhor desistir, desligar aquele assunto cretino mas, de repente, para espanto de todos, ali apareceu, bem na frente deles, os próprios rostos, umas caras de anjo sorrindo, sorrindo na tela da tevê.
— Olha a gente aí, não acredito, exclamaram.
— É o meu retrato pra carteirinha do clube!
— Poxa, tinha foto melhor pra botar aí na frente de todo mundo!
— Que vocês acham que está acontecendo?
— Sileeeenciooo! Vamos ouvir.
— ... “estas são as crianças que desapareceram. A última vez que foram vistas estavam pedalando, saindo da cidade pela rodovia estadual”.
— Vixe Santa, exclamou o Júnior, não dá pra acreditar.
— Quieto, babaca, gritou o André, depois o falador sou eu.
Ficaram de queixo caído, olhos esbugalhados e mais moles que purê de batata quando viram os próprios pais sendo entrevistados, contando como os filhos tinham sumido, a tristeza que sentiam, no desespero que estavam mergulhados. O pai do Rafael ficou grande na tela, só o rosto aparecendo barbudo, e foi falando: "Se as nossas crianças foram raptadas, peço e imploro às pessoas que nos fizeram esta maldade que nos devolvam todos eles, pois nada temos para oferecer a não ser um pouco de dinheiro e nossas vidas. Se elas fugiram de casa, peço a todos, principalmente a você, Rafael, que voltem, pois são muito queridos e estamos muito tristes sem vocês".
Rafael levantou-se e desligou a tevê. Todos estavam chorando, fungando e chupando o nariz. E explodiram num buá de dar gosto:
— Vamos voltar pra casa, gritou o André. Eu sempre fui contra esse negócio de brincar de detetive.
— Quero minha mãe, choraram as meninas.
— Tô arrependido, choravam outros.
Depois de uma meia hora de lamentações, gemidos, assoar nariz na manga, choro pra valer, Rafael resolveu o caso:
— Gente, vou botar minhas massas cinzentas pra funcionar.
— É por causa dessa merda da sua massa cinzenta que estamos aqui, protestou o André.
Rafael respondeu logo:
— É. Você tem razão, cara, mas por causa delas nós estamos vivendo uma grande aventura, a maior de todas, não é? Quem que vocês conhecem já viveu uma aventura tão delirante?
— Ninguém, concordaram. Nisso você tem razão.
— Então, ajudem na concentração que vamos ver o que fazer. Minhas massas cinzentas nunca falham.
Os chorões sentaram-se em volta do amigo que, agiu novamente dentro do seu ritual: olhos fechados, cabeça baixa, mãos nas têmporas e o inconfundível choque-choque se espalhando pela sala meio escura. E, finalmente, o cabelo do cocuruto arrepiando, o grito de eureca ecoando pela casa e se espalhando pela vizinhança e fazendo os pombos que moravam no forro do terraço voarem assustados.
— Não grita assim, cara. Tá doido? protestaram assustados.
Ficaram imóveis para ver se não aparecia alguém para investigar o barulho mas, fora os pombos que voltaram para o forro do terraço, não houve indício de que o famoso grito tivesse sido captado por ouvidos humanos, estranhos e inimigos.
— Bem, já que estamos seguros, vamos ver o que minhas massas cinzentas transmitiram. Nesse momento de dúvida, quando nos achamos nesta situação em que nossa aventura tem a grande chance de terminar como o sonho de uma noite de verão ...
— Droga! Lá vem ele de novo com discurso! Corta essa, cara, protestou o Douglas.
— Tá mais é ficando biruta. Que é que tem um sonho com a família da gente chorando em casa? perguntou a Raquel.
— Calma, pessoal, tô treinando, transmitindo o que eu li. Mas parece que ninguém entende nada! Desde quando vocês são burros?
— Desde sempre. Agora volte ao assunto sem discurso, arrematou o Douglas. Senão não brinco mais e volto já pra casa.
— Tá bom, concordou o futuro político. Tá bom. Vamos telefonar pra casa, se é que vocês sabem o código de lá, eu não sei. Vamos dizer pra mãe que estamos bem e que voltaremos logo. Depois vamos sair daqui, parar de vigiar e dar um jeito de seguir a lancha, a primeira que sair daquela casa.
— Tá, concordou o Douglas. Agora é a minha vez de mostrar minhas habilidades. Tem uma lancha aqui, eu dou um jeito de fazer ela pegar e acho que consigo dirigir a danada. Tá escurecendo e eu preciso enxergar. Vamos logo.
Correram para o telefone. Discaram e cada um foi enfrentando uma mãe chorosa e dizendo que não sabiam onde estavam, só que tinha um grande lago em frente da casa, que não estavam resfriados, que não tiveram dor de barriga, que o intestino estava funcionando direitinho, mas fazia um tempão que não escovavam os dentes e já tinham tomado um bom banho, só que estavam um pouco sujos, não haviam sido sequestrados, que estavam numa importante missão secreta para resolver os problemas dos jovens e crianças, que não podiam dizer qual era a missão, se era secreta não poderiam contar, ora bolas, que logo, logo mesmo, iriam pra casa e estavam morrendo de saudades. O que eles não sabiam é que os federais tinham tomado conta do caso deles e que todos os telefones estavam grampeados e que a polícia em poucos minutos conseguiu localizar o local do chamado e acionado as viaturas policiais necessárias para buscar e apreender os menores sumidos. Quando os investigadores ali chegaram, encontraram a casa vazia, eles já tinham desaparecido porque o Douglas, muito sabido, tinha feito uma ligação direta na lancha, depois de, com muito esforço de todos, colocar a embarcação na água. Ele tinha resolvido com maestria todos os problemas de fios e botões e os seis patifes seguiam um outro barco pilotado por bandidos. Quem levou a pior foi o dono da casa onde eles tinham se hospedado, que não tinha nada com o caso, nem ao menos sabia que sua casa de campo havia sido ocupada por seis garotos aprontadores, mas que foi interrogado pela polícia, teve de arrumar advogado para defendê-la e estava sendo o suspeito número um do sequestro da turma e não conseguia provar sua inocência.
Mas os seis não se importavam com os baratos e fatos acontecendo na retaguarda. Estavam encantados, brincando de seguir bandidos numa lancha Cabrasmar modelo Whaler com dois motores Opala marinizados deliciados com o possante desempenho da máquina e o vento gostoso batendo na cara. Havia anoitecido, mas uma imensa lua cheia iluminou tudo como um lampião. Foram seguindo o rastro espumoso e, depois de algum tempo, a lancha dos bandidos pegou um braço de água, deslizando por ele alguns quilômetros. Foi diminuindo a velocidade até ancorar num trapiche que dava para um imenso gramado ajardinado, todo iluminado. Os meninos passaram por eles quase em seguida e a Raquel gritou:
— Pararam ali. Vocês sabem parar isto?
— Não, gritaram os outros.
— Só não sei como parar, disse o Douglas, o resto eu sei.
— Vixe Santa! exclamou o Júnior. E agora?
— Desliga o motor, cara, olha a direção, gritou o André. Vamos dançar, vamos dançar, tamo fudido.
— Olha as meninas, gritou o Douglas, manera nos palavrões.
A chave foi tirada do contato e o barco foi perdendo a velocidade até ficar parado bem no meio daquela imensidão de água.
Acharam um remo no fundo da lancha.
— Aqui tem um remo, gritou o André. Quem vai remar?
— Eu, respondeu o Douglas. Sou o mais forte de todos.
— Corta essa, cara. Eu também sou forte, reclamou o Rafael, gritando.
— Corta você, baixinho. Vai ficar ai brigando ou quer que a lancha encoste na margem?
Deixando o outro resmungando, o Douglas remou um bom tempo até conseguir encostar num barranco, onde não dava para desembarcar. Com jeito, foi levando o barco até um ponto em que todos puderam descer para terra firme, uma pequena enseada onde esconderam a embarcação com ramos e prenderam firme, bem ancorada, com uma boa pedra de lastro. A Afrodite que tinha enjoado um bocado durante a viagem e vomitado até a alma, o que ninguém duvidava que ela tivesse, pois só faltava falar, foi a única que precisou de algum tempo para se recuperar. Contudo, estavam um bocado longe do ancoradouro dos bandidos.
O André foi O primeiro a falar:
— É só seguir a margem e vamos chegar lá. Que tal a ideia aqui do papai?
— Genial, concordaram todos. De vez em quando você dá uma dentro!
Chegar até onde pretendiam não foi fácil terreno era mole, pastoso, o mato cheio, a distância grande, só o luar iluminando tudo, mas finalmente chegaram nos limites da grande propriedade, separada do resto da área por uma cerca de arame farpado, muito junto e difícil de ser transposto. Foi um safari e tanto aquela caminhada da patota.
— Cave, Afrodite, mandou Rafael, junto à cerca farpada.
A Afrodite que tudo entendia e obedecia, cavou um bom buraco debaixo do arame por onde os garotos passaram deitados e se esfregando na terra para o outro lado, entrando assim no território inimigo. E ainda rastejaram pelo mato por algum tempo até chegarem ao pé de uma árvore de onde podiam ver todo o panorama. Uma casa enorme, um castelo branco muito lindo, se plantava no fim no grande gramado, meio escondida por árvores e plantas, não podendo ser vista se olhada do ancoradouro ou do meio do lago. Pelo gramado, andando de um lado para o outro, um bom número de homens armados patrulhavam o local. Vestiam capas onde escondiam as armas. Três homens levavam pela corrente, três enormes filas, que não tinham cara de amigos.
— Gente, falou o Júnior, estes bichos vão farejar a gente logo, logo.
— É, concordaram os outros. Vamos virar comida de cachorro.
— Precisamos fazer alguma coisa, continuou o Júnior. Eu tenho um tio que caça onça em Mato Grosso ...
— Do Sul ou do Norte? interrompeu o André, lembrando-se das aulas de Geografia.
— Mas você é burro mesmo, cara. Tanto faz, eu não sei qual Mato Grosso, pronto, já me interrompeu ... tinha que interromper ... puta que pariu!
— Não esquenta, cara, continua, pediu Rafael.
— Tá bom, dessa vez passa, mas que eu tenho vontade de acabar com gente burra eu tenho ... Ele, o meu tio, caça onça e ele diz que para despistar a pintada é preciso se sujar de terra, de mato. Acho que com faro de cachorro isto deve funcionar.
Boa, Júnior, vamos nos sujar, concordaram os meninos. As meninas foram contra.
— Nós já estamos sujas de terra. Ficamos imundas passando pelo buraco que a Afrodite fez. É porquice demais.
— Tá bem, vocês são frescas mesmo. Eu não vou perder esta boa oportunidade de rolar numa honesta terra feita por Deus, disse o Júnior, dono da ideia.
Os meninos rolaram no chão, segurando o riso que queria sair livre e feliz, as meninas torcendo o nariz de tanta porcaria.
— Bem, descobrimos o esconderijo dos bandidos. Só pode ser aqui com este bando de gente armada. E agora? Estou com medo mesmo, e não tenho vergonha de falar, sentenciou a Débora.
Ficaram alguns instantes parados, meditando sobre as sábias palavras da Débora. Rafael finalmente falou, tirando todos do transe:
— Não posso por minhas massas cinzentas funcionando neste momento de grande perigo em que ...
— Neca de discurso, eu fujo, eu grito, protestou a Débora.
— Poxa gente, tomaram assinatura comigo. Eu não ia fazer discurso. Tava dizendo que o que eu vou falar foi decidido por mim mesmo e não pelas minhas massas cinzentas.
— Então, pode falar, pediram. Mande brasa!
— Meninas, vocês ficam em cima de um árvore, subir em árvore qualquer um pode. Nos, os homens, vamos entrar lá, e apontou para a mansão branca e perigosa.
E virando-se para a cadela preta:
— Afrodite, é a sua vez, tapeie os cachorros, leve os brutos para o mato bem longe. Eles precisam sair daqui.
Enquanto as meninas subiam numa árvore copada, com a ajuda dos cavalheiros, de onde poderiam avistar todo o cenário sem serem vistas, a Afrodite se levantou, esticou o rabo com muita graça e elegância, fez pose de maneca em passarela, e começou a andar, toda rebolante e insinuante, desfilando pelo gramado em direção aos ferozes filas. Com passinhos leves de bailarina, toda descontraída, pisando nas pontas dos dedos das patas, virando a cabeça para olhar os três animais como que escolhendo um para companhia, ela desfilou garbosa e elegante pela passarela verde do gramado, passando bem no focinho dos três que pararam, latiram, babaram, esticaram as correntes e graniram. Assim que passou por eles no seu passo de bailarina canina, ela disparou para o mato do outro lado do jardim gramado. Foi a conta. Os três cães como que enlouquecidos, desataram numa corrida desenfreada atrás dela, arrastando os homens nas pontas das correntes, que davam ordens, gritavam, mas não eram obedecidos. Quando a Afrodite pulou uma sebe espinhenta, quase na beira do mato, os três cavalheiros seguiram a dama, saltando também por cima do espinheiro. Contudo, os três homens que seguravam as correntes não conseguiram fazer o mesmo e se estreparam. Um deles deixou o dedo pendurado, com um baita anel de ouro e urna pedra verde brilhante, bem num galho alto. O segundo homem ficou mergulhado dentro do arbusto, estatelado no meio da selva espinhosa, e o terceiro conseguiu atravessá-la e correr mais um metro antes de largar a corrente, mas parecia um porco-espinho, todo espetado, e sangrava por todos os poros. A Afrodite desapareceu no meio do mato com os filas atrás dela e os homens armados até os dentes se reuniram em volta dos pobres coitados alfinetados, deixando a área descoberta. Os meninos, aproveitando o fato, correram para a porta traseira da mansão, mergulhando dentro dela, deixando as duas garotas penduradas como jaca num galho de árvore, rindo pra valer do que estava acontecendo lá em baixo.
— VI —
Depois que entraram na casa do inimigo, os quatro garotos atravessaram uma pequena área de serviço interna, cheia de tralhas amontoadas, onde não havia viva alma e entraram numa enorme cozinha. Mesmo sujos e fedorentos ninguém prestou atenção neles, por mais incrível que pareça. A cozinha estava bem iluminada, mas a agitação era tão grande que puderam atravessá-la sem nenhum incidente e se meter debaixo de uma mesa encostada perto de uma outra porta, coberta por uma toalha xadrez que quase chegava ao chão. Ficaram ali por um bom tempo, sem serem molestados, observando o movimento por baixo da toalha. Só meninas trabalhando, como que hipnotizadas, caladas e rápidas, umas descascando batatas e picando verduras, carnes, cebolas e cheiro-verde, outras nas panelas dos fogões, tampando e destampando, mexendo com colher de pau, outras lavando louças empilhadas, outras arrumando e enfeitando os pratos com coisas lindas e cheirosas de dar água na boca. Eram pudins monumentais cobertos por calda de açúcar e enfeitados com morangos vermelhos e por chocolate, batatas fritas, leitão à pururuca com maçã na boca, peitos de peru coberto por molhos coloridos, um sem fim de pratos saborosos que as meninas aprontavam em silêncio, todas elas lindas e arrumadinhas, vestidas de baiana, roupas brancas cheias de babados, rendas e fitas, turbante listado de vermelho e azul na cabeça, loiras, morenas ou negras, todas de uma belezura de dar gosto. Parecia que estava havendo uma grande festa, um banquete de arromba, tal a quantidade de comida que saia de lá depois de fabricadas nas enormes panelas. De vez em quando tocava uma campainha estridente que fazia com que duas meninas saíssem pela porta ao lado da mesa onde se escondia a patota, carregando uma bandeja com uma das finas iguarias.
Depois de observar, examinando o trabalho das bailarinas e babarem com vontade de entrar de sola nos lindos pratos, pois fome nunca faltava, um olhou para o outro e por meio de sinais, que ninguém era besta de falar por ali, passaram pela porta que estava ao lado da mesa esconderijo. Um grande corredor vazio, onde se ouvia música e muitas vozes, cheio de portas fechadas, desembocava num imenso salão rodeado por imensas cortinas vermelhas que se arrastavam até o chão. O salão estava pouco iluminado e a luz da lua cheia entrando pelas janelas abertas e favoreceu os garotos que nem olhando o que estava dentro dele, se enfiaram atrás das cortinas, colando-se contra a parede. Ali ficaram imóveis, catatônicos, ouvindo a música que saia lá de dentro, as poucas vozes e risadas enlouquecidas que cortavam o ar. Só depois que quatro corações começaram a bater normalmente e pararam de pular dentro de quatro peitos, é que foram andando devagarinho, rente a parede, até um ponto em que poderiam espiar o salão por uma pequena fresta da cortina, olhando cada um pouco para ver o que estava acontecendo no pedaço. E viram, ficando com as pernas moles, a boca seca, as mãos tremendo, uma vontade louca de correr e sair dali, mijando nas calças de tanto pavor. Uma música suave enchia a sala e os ouvidos deles, vinda não se sabia de onde, mas nem o som gostoso acalmava os garotos. Lá estava ele, o poderoso senhor, o maligno, enorme, imenso, pura banha se derramando de um corpo disforme, sentado em enormes almofadas vermelhas cor de sangue. Era tão gordo que derramava para fora do vermelho, vestido apenas com um short branco encardido e, quando se virava com dificuldade, muito lentamente, o rego aparecia no traseiro branco, quase todo para fora, muito branque, corpo e traseiro, nojentas pipocas vermelhas cobrindo a pele de lesma descascada. O rosto, enfiado no corpo quase sem pescoço, era curiosamente magro, lembrando uma múmia nariguda, careca e senil.
Rafael cochichou baixinho no ouvido do Júnior:
— A cabeça dele parece com um tal de Ramses, uma múmia que eu vi num livro meu pal.
Como pode ser magro na cara e gordo embaixo? Pode? cochichou o André horrorizado.
— Que puta barriga! Nunca vi igual. Nem a do meu avô é assim! disse o Rafael.
Aquele rosto chupado que parecia pertencer a outro corpo fazia parte de uma cabeça enfiada num pescoço de touro e olhava pra frente com dois olhos miúdos semifechados. De cada lado do mostrengo uma mulher velha, duas velhas ao todo, gordas como porcas, com dentes escuros e tortos, rindo alto e se xingando com cabeludos palavrões, com vozes roucas e desagradáveis. E, ao pé dele, um enorme jacaré com uma coleira de ouro com pedras preciosas, que abria e fechava a boca mostrando a fileira de dentes pontiagudos e brancos. Estava amarrado numa pilastra que saia do chão, por meio de uma corrente grossa. Enquanto a música enchia o ar com uma melodia suave, um grupo de meninas vestidas de odaliscas, lindas e graciosas, dançavam, umas de amarelo, outras de rosa, outras lilás. Bem no meio delas reconheceram a Soninha, que horror, a paixão do Douglas e do Júnior, rebolando como escrava de filme americano para aquele monstro gorduroso com cara de múmia. Mal podiam crer nos próprios olhos. Tiveram que piscar várias vezes e dar beliscões fortes nos braços para que tivessem certeza de ser tudo realidade e não apenas um pesadelo.
O Douglas falou baixinho:
— Me segurem. Me segurem pra eu não fazer uma besteira. Pra eu não ir até lá, como o Rambo faz, e acabar com o monstrengo, amassar aquela cara de múmia paralítica, chutar aquela bunda nojenta, pegar a Soninha e levar embora.
— Calma, calma, vamos com calma, disseram os companheiros segurando o Douglas como se, realmente, ele tivesse coragem para tanto.
Assim, com o Douglas satisfeito pelo faz-de-conta-que-eu-quero-ser-Rambo, continuaram, medrosos, a observar o ambiente.
Então, todas as luzes do salão se acenderam, iluminando tudo feericamente, e de vez em quando, pela mesma porta por onde eles tinham entrado, apreciam duas baianinhas da cozinha, carregando uma bandeja de ouro com iguarias para o poderoso senhor e suas duas mulheres. Que nojeira, tirava o apetite de qualquer um ver como ele enfiava tudo inteiro pela boca enorme, que tinha na cara miúda acabando com uma travessa em menos de um minuto, ajudado pelas horrorosas velhas. Os sucos e molhos escorriam pelo queixo e aninhavam-se no peito gordo, lambuzando toda a área da pança.
Ao lado do monstrengo havia uma porta fechada que, de vez em quando se abria, deixando passar por ela uma lourinha vestida de grega, em branco e dourado, sandálias amarradas nas pernas. Quando ela surgia a música parava como que por um milagre e todas as dançarinas e bailarinas, quem quer que estivesse dentro do salão, com exceção dos seguranças armados, ficaram imóveis, brincando de estátua, um braço no ar, uma boca aberta, uma perna levantada, um corpo torcido, em mil posições diferentes, duros como se fosse de pedra. A menina loura, vestida de grega, falava alto: “O poderoso senhor do mal, dono absoluto de todo o comércio de drogas, acaba de conquistar mais duas cidades do interior do Rio de Janeiro”. Ou então em outro estado qualquer, mas sempre abocanhando as cidades para seu nefasto comércio. Ou então ela falava: “O poderoso senhor do mal acaba de ganhar mais duzentos mil dólares”. E outras quantias foram mencionadas, chegando a mais de um milhão de dólares só naquele pouco tempo. E falavam coisas semelhantes, dando notícias ao patrão e dono da droga, do progresso de seus negócios, mostrando que o império e o poder daquele monstro crescia, a cada minuto. E ele, o gordão untuoso com cabeça de múmia, o verme nojento ria de gosto com seus olhos semifechados e seu nariz adunco indo para cima e para baixo. As duas velhas juntavam-se a ele no coro de gargalhadas de prazer. Depois, a grega lourinha saía de volta para os escritórios da mansão e os homens armados que cercavam o poderoso senhor batiam palmas, a música aparecia no ar novamente, as odaliscas continuavam a dança e as velhas recomeçavam o seu cacarejo doido e os xingamentos com palavrões alucinantes, o jacaré continuava abrindo e fechando a boca esperando uma comidinha. A comidinha chegava quando uma das meninas não conseguia ficar imóvel no jogo de estátua. Ai as velhas gritavam numa voz esganiçada que mais parecia um cacarejo: "Eu vi. Eu vi. Ela se mexeu", e apontavam com o dedo gordo a coitada da baiana ou odalisca que tinha ousado se mexer.
— Joguem a insubordinada para o jacaré, gritava o poderoso senhor delirante de prazer.
Os seguranças arrastavam a infeliz que ia gritando e berrando não, não, não, enquanto as velhas riam ainda mais alto e o monstrengo arrotava, o jacaré de tocaia, já de boca aberta e garfo na mão, esperando a comida tenrinha que fazia com que ele babasse, a boca cheia d'água. E mastigava a coitada que só gritava no começo, pois o jacaré sempre começava pela cabeça, estalando os ossos num creque-creque de bolacha sequinha, de torresmo pururuca mastigado, e ia engolindo o resto, que já não gritava mais, pois onde já se viu tronco, braço e perna gritar?
Os quatro clandestinos do salão estavam arrepiados.
— Daqui não saio nem morto, cochichou o André.
— Nem eu. Podem me chamar de cagão. Eu sou um cagão. Perdi até a fome de ver o que eu vi aqui hoje, disse o Rafael baixinho.
Todos estavam catatônicos, o grande senhor das drogas era mais monstro do que tinham pensado, do que tinham ousado imaginar.
As horas foram se passando, as luzes do salão diminuíram. Finalmente o homem monstruoso fez sinal que queria se levantar. Quando os seguranças armados vieram ajudar o grande senhor que pretendia se retirar, a música parou, as meninas correram para dentro, provavelmente contentes por estarem livres do malvado e por terem sobrevivido ao jogo de estátua. O jacaré foi amarrado, suas mandíbulas fortemente atadas, um pano colocado na fachada do bruto e as velhas se retiraram, uma dando tapa na outra, uma chutando a bunda da outra. Precisou um bando de homens para colocar o monstro em cima dos pés tortos e disformes, o short branco encardido caindo perna abaixo deixando aparecer as coisas todas, os homens levantando o short, tentando tapar inutilmente o rego do traseiro. A batalha terminou com o poderoso senhor gemendo e arrotando a cada passo e sendo quase arrastado para fora do salão, as luzes diminuindo de intensidade, e os quatro meninos aterrorizados espiando toda a cena grotesca por uma fresta de uma grande cortina de veludo vermelho. O elefante de cabeça seca foi levado para fora do salão gritando ordens como reforcem-a — segurança, aumentem-as-luzes-lá-fora e não-quero-ser-incomodado-até-amanhã-cedo, e não-ousem— me-desobedecer.
— Ufa! Pensei que ele nunca mais fosse sair dali! exclamou Rafael baixinho.
— O mesmo digo eu. Precisamos sair daqui e avisar a polícia, disse o André.
— Primeiro quero achar a Soninha pra levar a gatinha com a gente, disse o Júnior. Sou gamadão nela.
— Isso, porque eu também sou vidrado nela, arrematou o Douglas.
— Primeiro vamos pegar alguns desses caras desalmados que trabalham para o monstrengo, disse o Rafael. Eu tenho um plano ...
— Peraí! protestou o Júnior. Nada de choque-choques.
— Podem ficar tranquilos. Eu tenho um plano sem usar minhas massas cinzentas, assegurou Rafael.
— Ainda bem, disse o André. Eu queria ver você dar o seu grito de guerra dentro deste castelo de bruxos.
— Fala logo, mas vê se não vai fazer aqueles discursos chatos, recomendou o Júnior.
— O caso é o seguinte: preciso que o André chegue até o jacaré e traga a corrente que está na coleira dele.
— Você tá delirando, cara! retrucou o André, Nem morto!
— André, faz isto pra mim, que eu cheiro o seu tênis por dentro. Pode até tirar o fedorento do pé.
— Nem morto, nem cheirando o meu tênis, nem nada e pronto.
— Ô saco! Tá legal. Mas eu te pego, cara. Na próxima vez que você me pedir um favor, pode esperar o troco, seu cagão!
Os outros concordaram:
— Cagão mesmo.
— Cagão, porém vivo, retrucou André.
Rafael tirou os óculos, colocando-os no bolso da camisa, e se arrastou devagarinho pelo chão do enorme salão vazio, em direção ao bicho. Dava, de vez em quando, uma paradinha, se imobilizava, encostando a cabeça no chão, depois olhava para os lados e prosseguia no rastejamento. O jacaré estava imóvel, deitado numa poça de sangue quase seco, paradão. As mandíbulas amarradas, os olhos cobertos por um pano jogado em cima da cabeça, parecia dormir com a barriga cheia esparramada no chão. O menino se aproximou de mansinho, usando sempre a mesma tática, evitando a proximidade da cauda, com medo de uma rabada, e, com cuidado, tirou a corrente que prendia o feio animal a um pilar. Ainda rastejando, voltou com a corrente para o esconderijo atrás da cortina de veludo vermelho. O jacaré ficou no mesmo lugar sem se mover, parecia empalhado.
— Ufa! Nunca pensei que eu tivesse coragem! suspirou aliviado, quando se viu protegido.
— Pra falar a verdade, nem nós, foi a opinião dos amigos.
— Agora, já que peguei a corrente, vou completar a minha obra com uns pedaços de cano que vi antes de entrar na cozinha, naquela área de serviço, cheia de cacarecos. Vou fazer um lindo Chaco pra rebentar com a cabeça de bandido.
— Chaco? O que é isso? perguntaram curiosos.
— Vocês verão. Esperem eu voltar, e não arredem o pé daqui.
Não foi difícil para o baixinho encontrar o que já tinha visto. A casa parecia deserta. Só se ouviam passos dos guardas, o menino se escondendo e evitando encontrá--las. Atravessou a cozinha vazia, agora à meia luz, e chegou onde queria sem topar com a segurança, embora sentisse a presença dela. Quando chegou de volta ao esconderijo, os companheiros já estavam cansados de esperar, preocupados com a ausência dele, achando que ele estava preso. Com a arma na mão, dois pedaços de cano de ferro amarrados nas extremidades da corrente com os cadarços dos tênis, estavam prontos para a execução de um plano bolado com a inspiração do último filme de Kung Fu.
— Vamos acabar com eles numa ação conjunta, como a SWAT, disse o Júnior. Quanto mais bandidos eliminassem, mais fácil seria para todos, mais vingados estariam, mais heróis se sentiriam.
— Quero ser herói, mas não quero morrer, disse o André. Herói morto não vale nada, quero ser um tremendo herói vivo.
— Tô com você, sabidão, concordou o Júnior. Vamos agir, mas com cuidado. E começaram a ação.
Saíram do esconderijo, andando pela casa à procura de bandidos. Quando havia um à vista, um bandido para ser abatido e massacrado, o André punha o seu ratinho em funcionamento. Esse ratinho nunca saia do bolso dele, e era usado para assustar as meninas na escola. Era um ratinho muito simpático, amarrado com uma linha de plástico, muito fina, tipo linha de pescar, quase invisível, e, quando era puxado, parecia que andava, causando grande reboliço entre as garotas e grandes risadas dos meninos. Pois o André se escondeu atrás das portas, nas curvas dos corredores, atrás das cadeiras, sofás ou móveis, esperando pacientemente que um guarda aparecesse. Então, puxava o fio devagarinho, com maestria, e o guarda, infalivelmente, se abaixava para ver o que era aquilo, um ratinho de bombril, tão estranho e diferente. Bandido abaixado, o Rafael também surgia do esconderijo arrumado, aparecia por trás, fazia rodar o chaco e malhava a cabeça do malvado, massetando os ossos com gosto. Bandido no chão, entravam o Júnior e o Douglas, mais forte, em ação, puxando o corpo pelos pés, escondendo-o em algum lugar qualquer, atrás de uma cortina, atrás de algum sofá, debaixo de algum móvel. Õ primeiro atacado ficou com o crânio rachado. O barulho do osso se quebrando foi assustador. O segundo recebeu um golpe tão forte que separou a cabeça do pescoço e tiveram que puxá-la, primeiro o corpo vazando sangue e depois chutar a cabeça, fazendo com ela um belo gol debaixo do sofá; o terceiro, recebendo um golpe mais fraco, só desmaiou e foi amarrado; o quarto e o quinto não se abaixaram para examinar o ratinho de bombril, por isso receberam o golpe na altura do estômago, e um pouco das tripas saiu pelo buraco feito, dando um trabalhão, pois tiveram que empurrar com o pé, a linguiçona para dentro da barriga.
O número de bandidos, que parecia pequeno no começo, foi se avolumando, e começou a cansar os meninos.
— Tô cansado, já não estou achando graça eliminar bandidos, comentou o Douglas.
— E eu estou todo sujo de sangue, tá ficando sem graça, disse o Júnior.
— Tô com vocês, concordo com tudo, disse o Rafael, mas a tarefa é suja e tem que ser levada até o fim. Senão, como tiramos a Soninha daqui, como vamos acabar com o gordão?
— É, meu, tem razão, concordaram todos.
Quando um bandido pisou no ratinho, rodando o bico do sapato, como se ele fosse um inseto, o André não aguentou mais. Saiu do esconderijo, largou o fio e pulou em cima do homem, gritando:
Seu miserável, filho da puta, você pensa que o meu ratinho é uma barata qualquer?
O homem segurou o pequeno pela camisa, levantando-o como um filhote de gato e gritou, chamando outros guardas, que apareceram como por passe de mágica. Os outros meninos entraram no ringue com a fúria de um Maguila. O tumulto tomou conta do local, gritos furiosos foram emitidos, houve chutes, mordidas, socos no ar, caneladas, cabelos arrancados, dedos nos olhos, mas, finalmente, os quatro foram dominados, bem amarrados e levados para um quarto escuro.
Ali na escuridão, sem que pudessem se movimentar, os quatro estavam aturdidos.
— Poxa! Estava tão certo! choramingou o Júnior.
Um dos bandidos tinha feito um comentário e saíra rindo, deixando os garotos cabreiros:
— Amanhã o jacaré vai ter o melhor café da manhã da vida dele.
Apavorados e zonzos com os acontecimentos e com a virada da sorte, viram que a luta parecia ter chegado ao fim, fim deles mesmos, comida de jacaré. Culparam o André:
— Tinha que dar uma de galinho, tinha? Pode? Não podia ficar quieto onde estava? O André foi categórico:
— Ninguém pisa em ratinho meu e fica por isso mesmo!
— Claro, não ficou, ficou? Ficamos nisso aqui, presos e amarrados, com morte decretada, condenados, respondeu o Douglas.
Rafael, pasmado e sério deu sua opinião:
— É castigo, violamos os direitos humanos massacrando bandidos, esmigalhando crânios criminosos, estraçalhando barrigas vorazes, arrebentando cabeças de homens que ganham a vida honestamente drogando crianças indefesas, violamos os direitos humanos de bandidos. É castigo mesmo, gente.
— Corta essa, cara. Até na hora da morte você tá fazendo discurso! reclamou o Júnior. Assim não dá.
— É isso ai, falou o Douglas, já se recuperando do choque inicial. Larga de dar uma de conselheiro. Há humanos e humanos.
— Você acha que eles não são seres humanos? perguntou o André.
— Bem, são seres humanos mas só na carne. A alma deles é nojenta, acho que não é nem alma humana, raciocinou o Douglas.
— É toda cheia de bichos, toda bichada. A alma. O espírito. É. Não dá pra ser gentil com gente dessa espécie, concluiu o Júnior.
— Vocês acham que a gente não violou os tais direitos humanos? perguntou Rafael.
— Pelo visto eu acho que não, respondeu o André e todos concordaram com ele.
— Ufa! Estou mais aliviado, obrigado pessoal por este apoio moral. Vocês me tiraram um peso enorme da consciência. Posso morrer em paz!
Depois destas considerações altamente filosóficas, Rafael chegou a uma brilhante conclusão:
— Então, se estamos com a razão e não violamos os direitos humanos destes bandidos cidadãos, porque estamos presos aqui? Não vamos morrer em paz! Se não merecemos castigo, não teremos castigo. Alguma coisa vai acontecer e salvar a situação, podem acreditar.
— É sua massa cinzenta que está dizendo isto?
— Não. Eu, Rafael, estou dizendo. E ponto final.
Então um deles lembrou:
— As meninas! Será que elas ainda estão em cima daquela árvore?
Estavam em cima daquela árvore, estavam cansadas, no escuro, esperando os garotos que não apareciam.
— Débora, não consigo enxergar nada. Está tudo tão quieto lá embaixo.
— Eu também não vejo nada há muito tempo. Tô louca pra fazer xixi.
— Eu também tô apertada. Vamos descer?
— Vamos, decidiu a Débora. Tõ cansada de ficar aqui em cima, pendurada que nem fruta. Eles estão demorando demais. Acho que a gente deve descer, fazer xixi e dar uma olhada. Também estou com fome.
As duas desceram da árvore e, depois de um gostoso e aliviante xixi, juntamente com a Afrodite, foram rodeando o mato até chegarem em frente a entrada dos fundos, onde tinham visto os garotos sumir. No gramado da frente, iluminado por holofotes de luz amarelada dois vigilantes patrulhavam a área. No ancorado, um outro de plantão. Os cães não tinham voltado, só Deus sabia o que a Afrodite tinha aprontado com eles. Assim, as duas garotas não tiveram grandes dificuldades em chegar até a cozinha, que estava vazia e onde aproveitaram para comer uns restos de comida que acharam em cima da pia. Dali passaram para o grande corredor, examinando cada cômodo da casa com muito cuidado, se escondendo quando ouviam vozes ou passos. Numa das salas a porta semiaberta mostrou um bando de homens jogando baralho. Subiram uma imensa escadaria para o andar superior e abrindo uma das portas depararam com um salão cheio de camas, um grande dormitório cheio de meninas, somente iluminado por uma lâmpada muito fraca. Uma delas sentou-se na cama e perguntou:
— Quem são vocês? Aqui é o dormitório das odaliscas.
Como as duas não soubessem o que responder e ficassem caladas, ela continuou:
— Vocês são novas? Acabaram de chegar?
— É isso aí, responderam as duas juntas. Acabamos de chegar.
Algumas meninas dormiam. Outras choravam baixinho, outras chamavam as mães, outras rezavam.
— Olha a Soninha ali, gritou a Débora apontando para uma garota sentada bem perto delas.
Foi um Deus nos acuda, abraços, três beijinhos para casar, choradeira, a Soninha perguntando da família, contando como fora levada para aquele lugar tenebroso, o terror que sentia a cada segundo, o medo de nunca mais voltar para casa, as pobres companheiras todas na mesma situação, achando que nunca mais sairiam dali.
— Olha Soninha, comandou a Débora decidida. Fiquem calmas. Vamos tirar vocês daqui.
— Você é que pensa. Daqui ninguém escapa. Eles pagaram vocês também, não pegaram?
— Negativo, disse Raquel. Acredite se quiser, mas entramos aqui por livre e espontânea vontade.
— Verdade, disse a Débora. Somos investigadoras numa missão impossível.
A Soninha começou a chorar:
— Coitadinhas de vocês. Estão loucas. Estamos na mesma situação. Vocês não viram o monstro que manda em tudo. Se vocês vissem como ele é horroroso e cruel, não teriam feito isto. Não seriam tão otimistas, não estariam com essa cara.
— Não estamos sozinhas, explicou a Débora. Temos um cachorro muito valente, e mais quatro garotos estão com a gente. O Rafael, o André, sabe, aquele pequeno irmão do Douglas e que por acaso é meu irmão também, e o Júnior, irmão da Raquel.
— Eu sei, disse a Soninha, conheço os gatinhos. Aliás, já paquerei dois deles. Vou contar pra vocês como foi. Eu ...
— Tudo bem, deixa pra lá, depois você conta. Vocês fiquem prontas para sair daqui que eu vou procurar os meninos. Eles entraram aqui e não saíram. Devem estar em alguma encrenca por aí ...
— Não foram eliminados porque eu estava no salão onde acontecem as eliminações, disse a Soninha.
— Eliminados?
— Comidos pelo jacaré.
— Jacaré?
As recém-chegadas estavam de olhos esbugalhados, espantadas e amedrontadas.
— Jacaré, respondeu a Soninha. Uma enorme fera que o bruxo controla. Ela come gente.
— Bruxo? perguntaram as duas.
— A gente chama o monstrengo de bruxo, mas é pessoa como qualquer um de carne e osso. É muita banha. É feio, feio mesmo, gordo pra chuchu e com uma cara chupada de múmia. Muito estranho. Ele controla todo o tráfico de drogas e é muito rico. Acho que é o homem mais rico do mundo e também o mais feio e o mais malvado.
Soninha começou a chorar.
As outras meninas tinham se levantado e todo o bando rodeava Débora e Raquel. Todas chorando concordaram com as explicações da Soninha e com a descrição que ela tinha feito do dono daquele castelo. Débora ficou pensando. Ela teria que tomar uma decisão e resolver o que fazer. Perguntou:
— E quando vocês dormem, estão aqui no quarto, vem alguém vigiar vocês?
— Nem precisa, respondeu a Soninha, falando por todas elas. Todo mundo está tão aterrorizado que nem pensa em fugir ou fazer alguma coisa fora do regulamento. O regulamento diz pra gente não sair do quarto depois que entra aqui. Mas tem gente vigiando na casa e lá fora.
— Tá. Preparem-se. Vamos ter que fugir a pé. Temos um barco mas é muito pequeno para todo mundo. Eu e a Raquel vamos procurar os meninos. Lá embaixo não estão, já olhamos tudo. Tem uma porção de gente que não dorme aqui, não? Ficam andando pela casa, jogando baralho numa sala ...
— É, são os guardas, ruins que nem cobra-venenosa, e muito bem armados. Estou boba de ver como vocês entraram aqui! Eles dizem sempre que é impossível entrar no castelo.
— Deve ser por isso mesmo, falou a Raquel que tudo ouvia em silêncio. Estão tão confiantes que nem perceberam a gente.
— É, deve ser isso, concordou a Soninha. E os meninos? Onde estarão? Aqui em cima não devem estar, aqui nesta ala só tem grandes dormitórios e banheiros. O nosso dormitório, o das baianas que trabalham na cozinha e na limpeza e o das gregas que trabalham nos escritórios e nos computadores.
— Quer dizer que existe mais meninas por aqui? perguntou a Raquel.
— Xi! Uma porção. Todas roubadas e sem esperança de voltar pra casa.
— O que há na outra ala? perguntou a Débora.
— Os aposentos do poderoso senhor, seus tesouros, seus cofres com muitos milhões de dólares, os aposentos de seus guardas particulares e de duas velhas nojentas que vivem do lado do monstro, duas-bruxas desalmadas que só falam palavrões.
— Tá. Dá pra você avisar todas as meninas para ficarem prontas para fugir assim que eu der o sinal?
— Tenho medo, um pouco de medo, de tentar sair daqui. Quer dizer, muito medo. Mas vou tentar, prometeu a Soninha.
— Isto, você tem que deixar todas preparadas, não pode falhar. Coragem, Soninha, falou a Débora.
— Vou fazer, prometeu Soninha. Vou ter coragem.
— E, além destes lugares aonde posso procurar aqueles pestes, onde poderiam ficar se foram presos?
— Bem, acho que no porão, disse a Soninha. No hall de entrada há urna porta que desce para o porão. Só os bandidos descem lá, é proibido pra nós, quem desce vai parar na barriga do jacaré. Tomem muito cuidado.
As duas meninas saíram com todas as informações a procura da tal porta para o porão. A casa parecia mais animada. Dentro dos quartos havia muitas vozes, as duas não sabiam, mas os guardas estavam discutindo se deveriam informar ao poderoso senhor a captura de quatro espiões dentro da mansão. Não queriam incomodar o chefão com problemas, nunca houvera uma invasão ali, não sabiam o que fazer. Além disso ele ficava uma fúria, chegava a espumar corno cachorro louco quando era incomodado nos seus aposentos e as velhas não resolveriam nada.
Nem desconfiando o que estavam os homens do poderoso senhor discutindo, Débora e Raquel procuravam abrir uma porta que saia do lindo hall de entrada, revestido de mármore preto e branco. Estava trancada.
— Puxa, gostaria de ser o MacGuiver, ele abre qualquer porta até com um sutiã, disse a Raquel.
— Você nem usa sutiã, não adiantaria ser o MacGuiver.
— Credo, não precisa ofender, retrucou a Raquel.
— Tá bem, mas nós temos que dar um jeito e descer até lá.
— Eu sei o jeito. Não é do MacGuiver mas é da Raquel e não preciso nem de sutiã.
— Pois pode ir desembuchando que eu não tenho nenhuma ideia, respondeu a Débora.
— Vamos ficar escondidas atrás daqueles dois jarrões e esperar que alguém desça.
Eles abrem a porta e nós vamos atrás, é claro.
— Boa, vamos tentar, concordou a Débora. Espero que não seja necessário esperar três dias ...
De fato, a Raquel tinha visto dois jarros enormes enfeitando o lugar. Eram tão grandes que qualquer um poderia ter visto o objeto, mas a Raquel viu a utilidade deles como esconderijo e isto foi ótimo. As duas se enfiaram atrás deles e esperaram o que pareceu uma eternidade e foi muito tempo mesmo. Passava guarda para um lado, guarda para outro, não muitos, é verdade, nem muitas vezes, mas nenhum chegou até a porta para descer ao porão. Mas finalmente, um homem abriu a esperada porta com a chave e desceu as escadas em direção ao porão, assoviando.
As duas garotas esperaram o homem desaparecer lá embaixo e, cautelosamente desceram as escadas que levava a um subsolo, se enfiando num quartinho de depósito, cheio de caixas razias e cacarecos, esperando que o assoviador voltasse para cima. Só quando ele subiu as escadas de volta é que as duas tiveram coragem de sair do esconderijo.
— Primeiro vamos ver se não ficamos trancadas nesta ratoeira, disse a Débora.
Felizmente verificaram que, pelo lado de dentro do subsolo, a porta não precisava de chaves, nem tinha algum trinco especial. Abriram facilmente para uma fuga tranquila. Só do outro lado era necessário ter chave.
As duas começaram a fuçar tranquilamente o porão escuro.
— Tá escuro aqui. Não consigo ver nada. E se o jacaré estiver por aqui? perguntou a Raquel.
— Não seja idiota, vire esta boca pra lá, gritou a Débora. Vamos ver se achamos uma tomada perto da porta.
Quando o lugar se iluminou, Viram que não estavam num quartinho de despejo qualquer. Encontraram um enorme depósito de pacotes plásticos cheio de um pó parecido com açúcar e uma sala que acharam ser um laboratório, muito grande e cheia de equipamentos complicados, com grandes latões escrito ETER em grandes letras. Bem no fim do corredor do porão, uma porta com chave virada para o lado de fora. Cautelosamente viraram a chave e abriram a porta e depararam com uma escuridão sem fim. Acenderam a luz e lá estavam eles, bem amarradinhos, sentados, um encostado no outro, esperando o fim.
— Olha só. Os quatro heróis, caçoou a Raquel. Devem estar com as calças cheias.
— Larga de besteira e desamarrem logo senão vamos Virar comida de jacaré, pediram os quatro.
— Só se vocês implorarem, disse a Raquel.
— Não vamos implorar nada pra mulher nenhuma, gritaram.
— Então vão virar comida de jacaré. Vamos embora, Débora. Tchau.
— Peraí, gritaram os quatro.
— Vocês venceram suas nojentas, falou o Júnior. Eu estou implorando.
— Eu também, por favor, tô todo dormido, todo formigando, pediu o André.
— Também tô pedindo, disse o Douglas.
— Tá bom, tô implorando, vamos logo, falou o Rafael. Afinal, eu sabia que vocês iriam aparecer, ou vocês ou qualquer outro pra soltar a gente. Eu não infringi os direitos humanos dos bandidos e não merecia ser castigado, ter um fim inglório.
Os quatro foram soltos e combinaram um novo plano depois que as meninas contaram sobre o que haviam visto e o encontro com a Soninha. Precisavam sair daquele lugar tenebroso e levar as prisioneiras para a salvação. Com tantos guardas armados, tanta gente disposta a qualquer tipo de bandidagem, a tarefa não seria fácil.
— Acho que a gente deve procurar o gordão e liquidar com ele, disse o André.
— Tá besta, cara. Um bandido poderoso como ele deve estar cercado por uma
porção de guardas, argumentou o Júnior.
— Segurança. Hoje todo cara importante tem segurança. Meu pai falou que antigamente eram capangas, jagunço, hoje chamam de segurança, mas é tudo a mesma coisa, explicou o Rafael.
— E então, como a gente vai fazer? perguntou o André. Tô com medo.
— Vamos ver, vamos ver, nós, afinal de contas somos heróis, arrematou o Douglas. Eles não sabiam que os federais seguiam a pista deles patrulhando o lugar com lanchas, investigadores armados descendo e subindo, procurando uma embarcação roubada, vasculhando as margens e observando as propriedades visíveis, continuando a busca mesmo com a escuridão da noite.
Desconhecendo estas providências tomadas, a patota tinha que arranjar um plano. As massas cinzentas do Rafael precisavam entrar em ação. O jeito era tapar a boca dele para que o grito de guerra não acordasse o poderoso senhor e atraísse a turma de bandidos lá de cima.
— Atenção gente, quando o cabelo arrepiar é pra tacar a mão na boca dele, tá? Rafael tomou a clássica posição de concentração, esperou a hora do choque-choque e ele veio choque-chocando depressa, e na hora do eureca recebeu uma mãozada na boca, outra mão, mais outra, e o grito saiu abafado, estrangulado, quase sumido.
— Ufa! Conseguimos, disse o André aliviado.
— Gente, começou o Rafael, as minhas massas cinzentas avaliaram a situação, discutiram com elas mesmas todas as possibilidades e chegaram na conclusão lógica que devamos fazer uma fogueira de São João aqui dentro.
— Legal! disse o Júnior. Vamos botar fogo no castelo!
— Nem é época de São João, disse a Raquel.
— Cala a boca burra, protestou o Júnior.
Discutiram tudo numa tumultuada sessão de insultos, gritos e chegaram finalmente a uma conclusão. As meninas voltariam com todo o cuidado para o andar de cima para comandar a fuga das prisioneiras, enquanto os quatro meninos arrumariam o material para fazer o porão ir para os ares e o castelo virar uma fogueira e tanto.
— Vamos pegar tudo que é material que pega fogo, disse o André.
— Material combustível, corrigiu o Rafael.
— Você entendeu, não entendeu? Então pra quê complicar, cara?
Uma grande pilha de material foi armada no meio de cada sala do porão, enquanto as duas meninas se esgueiravam para junto das prisioneiras para esperar o sinal para fuga. O sinal seria o grito de fogo que qualquer pessoa poderia dar assim que percebesse o castelo ardendo.
— Boa, exclamou o Rafael vendo a obra prima que tinha feito. Procurem também alguma coisa que pegue fogo logo lá no laboratório, álcool, gasolina, sei lá mais o que.
O André, xeretando tudo quanto é canto achou um litro de álcool.
— Gente, olha aqui! Pelo cheiro é álcool. Vou botar fogo pra ver.
— Calma, seu louco, acudiu o irmão, tomando a garrafa da mão dele. Não se põe fogo em garrafa de álcool!
— Larga de ser bobo, caçoou o André. Enganei o bobo mesmo. Eu não tenho fósforo, eu não fumo.
Rafael concordou:
— É isso, gente. Quem tem fósforo? como podemos começar a fogueira sem eles?
O André continuou:
— Você é doido cara, só tem ideia de jerico. Botar fogo é perigoso. Depois, quem brinca com fogo mija na cama.
— Quem é que mija na cama, gritou o Rafael enfurecido, você acha que eu faço isto, seu bundão, filho duma égua ...
— Credo, disse o Júnior segurando o amigo, ninguém falou nada, não precisava se ofender.
— Ofendido tô eu, retrucou o André, me chama desses nomes indecentes. Vou contar pra minha mãe quando eu chegar em casa. Te pego, cara e agora!
o Douglas segurou a barra separando os dois.
— Tudo bem, tudo bem, vocês querem brigar? Depois vocês resolvem no braço.
Quem tem fósforos?
Ninguém tinha, mas não custou muito achá-las no laboratório. O líquido da garrafa pegava um lindo fogo e regaram com ele uma porção de pilhas de material inflamável espalhadas pelo porão.
— Taca fogo em tudo, pessoal e depois, fora do porão. Guerra é guerra! gritou o Rafael entusiasmado.
— Vamos levar um pouco de álcool e fósforos, continuou.
O fogo foi ateado e os quatro saíram correndo do subsolo que iria explodir assim que aqueles tambores se esquentassem. Subiram para o hall e se esgueiraram em direção ao salão, onde as grandes cortinas de veludo vermelho poderiam virar uma boa fogueira. O salão estava semi-iluminado quando a turma entrou procurando não fazer barulho. O André encerrava a fileira e foi ele que ouviu o ruído de passos, um pum-pum-pum, pesado atrás dele. Cutucou o Júnior e os dois olharam para trás. As duas velhas ali estavam, seguindo-os em silêncio.
— Ai meu Deus, gemeu o André.
— Eu não falei que havia algo esquisito aqui? cacarejou a mais moça.
— Guardas! gritou a mais velha. Guardas!
Os meninos correram para trás das cortinas com as duas velhas praguejando atrás deles, se revezando na gritaria:
— Seu desgraçado, de onde você veio?
— Eu não falei, eu não falei? Eu ouvi barulho.
— Cala a boca sua desgraçada, você não falou nada.
— Falei, falei, falei.
— Guardas, guardas, corram, venham.
Os meninos tremiam, as pernas bambas, os joelhos moles quase no chão.
— Meu Deus, me ajude, gemeu o André, chorando. Vou morrer cedo, nem vou crescer, nem vou ter espinha na cara.
— Ai, mamãe, eu juro que se escapar eu obedeço você até ficar um velhinho, rezou o Júnior.
— Gente, falou o Rafael, tô cagando nas calças, mas tô pensando. Joguem álcool na cortina, ensopem tudo.
As duas velhas agarraram a cabeça do Douglas e enrolaram o coitado na cortina.
— Agarrei um, é meu, é meu.
— Larga dele e pega outro, este é meu.
— Fogo nas cortinas, gritou o Rafael.
Os guardas já estavam no salão tentando levantar as pesadas cortinas.
— Deixa pra gente, a gente pega os pestinhas podem ir pra cima dona.
O poderoso senhor entrou se arrastando no salão gritando:
— Que barulho é este? Quem está interrompendo meu repouso sagrado?
Ele mal podia andar, se arrastava molengo, mas sua voz era forte e poderosa:
— Quem é o responsável por esta bagunça? Joguem pro jacaré.
As velhas gritavam:
— Três fedelhos, três trombadinhas, estão escondidos atrás da cortina.
— Agora! gritou o Rafael.
A mão do André tremia tanto que ele não conseguia acender o fósforo. Além disso haviam agarrado a perna dele e tentavam puxá-lo para fora. Um dos guardas arrastou-o de lá, mas ele, heroicamente, riscou um fósforo que caiu na poça de álcool do chão. O fogaréu começou imediatamente, animando o trio que estava sendo arrastado para fora do esconderijo. O fogo foi crescendo, sem dó nem piedade, primeiro nas cortinas do salão, depois nas das outras salas, iluminando o castelo como urna tocha. Com o fogaréu nas cortinas as velhas largaram o Douglas, os guardas os outros dois e saíram todos, bandidos e mocinhos, correndo como loucos.
O poderoso senhor ficou estatelado no chão, o infeliz não conseguia se levantar, foi pisado e pulado como um pedaço de pau. As velhas, como baratas tontas subiram as escadas em direção dos seus aposentos em vez de correrem para fora de casa. O poderoso senhor foi levantado por dois guardas que o levaram para cima.
— Fechem a porta corta-fogo, gritou o gordão. Aqui estamos protegidos. Não posso acreditar que três pivetes possam ter causado tudo isto. Fechem a porta e vão atrás dos três. Eles não podem escapar.
Quando tudo começou a arder, alguém gritou fogo e as meninas, comandadas pela Débora e pela Raquel, saíram, muito ordeiras, descendo a escada em direção à cozinha e, já do lado de fora, ganharam o mato e dispararam em direção ao buraco sob a cerca feita pela Afrodite, passando para a outra propriedade.
Os bandidos corriam de um lado para o outro, procurando acabar com o fogaréu, sem obedecerem as ordens do patrão, sem darem a menor importância para as fujonas, desesperados. Os quatros meninos, depois de aprontarem a confusão, riam, já do lado de fora, ao lado da Afrodite que não parava de latir, como se estivesse achando tudo muito engraçado também. Se esconderam longe da casa, no meio do mato onde poderiam observar tudo sem que fossem molestados e onde poderiam se abrigar dos estilhaços que poderiam acontecer quando aquilo tudo fosse para os ares.
— Nunca pensei que eu, o André, pudesse fazer um fuzuê desses, comentou o André admirado com o que via.
— É, concordou o Júnior. Só tenho medo de ser preso por causa disso.
— Não prendem crianças, cara, mandam pra Febem, concluiu o Rafael.
— Xi? Será? perguntou o Júnior, preocupado. Foi o Douglas que respondeu:
— Vocês parecem burros. Será que ainda não perceberam o bem que fizemos eliminando um quartel general de bandidos?
Isto encerrou o assunto, acalmou as consciências e voltou a atenção deles para o cenário pirotécnico. Foi quando os latões de éter explodiram no porão, levando para o ar uma ala do castelo. Foi um festival de parede pra todo lado, tijolos arrancados, pedaços de madeira, portas voando, estilhaços de vidro caindo que nem confete, escalpos no ar, braços e pernas arrancados e girando lá em cima como hélices de helicóptero. A fogueira foi aumentando na ala que ficou de pé, justamente onde ficaram os aposentos do poderoso senhor do crime, e dos seus tesouros.
Os meninos correram para o gramado, na frente da casa para melhor observar o espetáculo. A porta corta-fogo e a ala da casa protegida contra incêndio não haviam resistido à explosão violenta do porão. Viram as duas velhas de camisolão passarem as pernas gordas pela janela e pularem para o gramado gritando palavrões cabeludos, caindo pesadamente em cima de um canteiro, quebrando os braços e as pernas, virando os pés pra trás e se arrastando, gemendo, para longe da casa. Numa janela apareceu o poderoso senhor. Um cheiro de banha queimada, uma fedentina pra valer encheu todo o ar, gritos pavorosos vinham da direção do monstrengo. Ele estava queimando, só que não queimava como qualquer um queimava que nem vela de sete dias, derretendo as banhas devagar. Só uma comprida língua de fogo saindo do pescoço, no lugar da cabeça.
— Olha aquilo ali, exclamou o Rafael. É ver para crer.
— Inacreditável, concordaram os amigos.
A patota não sabia, mas os federais patrulhando a área atrás deles, viram a formidável fogueira iluminando a noite e, como não era época de São João nem nada, viraram a lancha na direção dela. Ficaram admirados ao ver a cena e encostaram no ancoradouro. Encontraram os fujões calmamente sentados no gramado, junto com a Afrodite, admirando o espetáculo pirotécnico. Tudo explicado e esclarecido, todos os bandidos vivos foram presos, os nomes dos traficantes revelados, os endereços fornecidos, as meninas resgatadas e a patota pronta para voltar para casa.
— Agora vamos para a glória! gritou Rafael.
— Missão cumprida! gritou o Douglas.
— Nunca mais vou comer banana! gritou o André.
— Se não fosse por nós estas meninas estavam fritas! gritou a Raquel.
— Lar, doce lar! gritou a Débora.