terça-feira, 22 de janeiro de 2013

Conto Infantojuvenil Psiu!


 
Psiu! 

 

— 1 —

 

Fátima olhou para o menino brincando debaixo da mangueira.

— Ele parece estar crescendo, mas é tão indefeso, pensou em voz alta.

Fátima voltou seus pensamentos para uns meses atrás, para o dia em que encontraram o garoto agachadinho na beira de uma estrada, apavorado e sujo, cara de bobo e olhar vazio.

A caravana estava indo para Araraquara fazer um show no aniversário da cidade.

— É mês de folclore, dissera Paco. Vamos apresentar “A festa do bumba-meu-boi”.

Ela fora contra:

— Não! Esta peça é a mais chata que você escreveu. Uma saqueira!

— Mas é uma comédia, contestara Paco. Dia de festa é dia de comédia, dia de rir, de alegria total.

— Mas é chata, um horror, ela teimara.

Os outros integrantes do grupo não haviam dado palpite.

— Vocês não acham? Ela pedira o apoio deles.

— Acho sim, respondera Nanete timidamente, ela era sempre uma maria-vai-com-as-outras.

Júlio não havia aberto a boca, como sempre caladão e na dele.

Haviam rodado pela estrada discutindo as peças do repertório, ela e Paco, sem chegare a nenhuma conclusão, ele sempre teimoso e querendo fazer valer sua opinião, até que pararam num espaço largo do acostamento, uma área de lazer com água potável.

Fátima se lembrava muito bem disso porque, quando todos desceram para beber água e dar uma esticada nas pernas, el ficara rodeando o caminhão novinho em folha, admirando a pintura vermelha, chocando cada pedaço dele com os olhos, toda orgulhosa. Era lindo, enorme e reluzente, o lar e o local de trabalho deles, enormes leras douradas faiscando e anunciando: “CARAVANA PIRILAMPO” em cima, TEATRO AMBULANTE mais abaixo.

Os componentes haviam se dirigido para a bica d´água, mas Fátima ficara ali, pensando no quanto tivera de trabalhar para que conseguissem compra-lo.

Se ela não tivesse feito isso não teria encontrado Psiu. Ele estava lá, sentado no chão, todo encolhido, um enorme chapéu na cabeça, quase invisível no meio de tanta roupa enrolada n corpinho magrela. Mais parecia um monte de trapos sujos e velhos do que uma criança, e estava assustado como um coelho.

— Gente, venham ver o que eu achei, havia gritado espantada.

A criança havia procurado fugir, mas ela, muito esperta, agarrara os bracinhos dela, prendendo-a firmemente.

— Não vá embora! Onde estão seus pais?

Os outros haviam se aproximado.

— Ora vejam só! Acho que está perdida, dissera Paco. Vamos recolhê-la e entregá-la para a polícia na próxima cidade.

— Como é o seu nome? Perguntaram.

Os olhos do coitadinho haviam se enchido de lágrimas e como o dedo preto de sujeira colocado em cima da boca fechada só dissera:

— Psiu! Psiu!

Nanete tinha falado baixinho:

— Não tenha medo. A gente é amiga. Pode dizer o seu nome.

— Psiu! Psiu! Respondera a criança como que pedindo silêncio.

O nome dele ficara sendo Psiu. Todos haviam, achado esse, um bom nome, como outro nome qualquer.

Fátima também se lembrava como ele estava sujo e fedia a gambá. Também se lembrava como fora fácil à decisão de não entrega-lo à polícia. Psiu ficara com eles como mascote da caravana. Era uma criança muito estranha, muito quieta, sempre pedindo silêncio com um psiu, como se estivesse com medo. Mas falava, não sabia quem era, não sabia de sua família nem de onde viera. Tinha no máximo uns dez anos, parecia não saber ler, vivia acocorado nos cantos com ar de bichinho assustado, ensimesmado e tristonho, mesmo com todo o amor que recebia dos quatro atores ambulantes.

Paco chegou da cidade e entro no acampamento da caravana. Vinha com uma mocinha magrela, de cabelos lisos.

— Esta é Coralice. É assim pequena mas já é maior. Deixou o Circo Irmãos Coragem e vai trabalhar com a gente. Já fiz um teste com ela. Acho que ela tem futuro.

— Que bom, disse Fátima. Poderemos ampliar o nosso repertório com mais uma atriz.

— Arranjo um lugar na barraca para ela. Só que vai ficar um pouco apertado para viajar, disse Paco.

— Não faz mal, retrucava Fátima.

Paco, o chefe, também resolveu:

— Vamos começar a por o Psiu em cima do palco. Assim podemos encenar uma peça com crianças.

Fátima, mulher de Paco, às vezes concordava com ele:

— É uma boa. O público sempre gosta.

Psiu começou a trabalhar com o grupo junto com a magrela Coralice.

No dia seguinte começaram a ensaiar “O velho avarento” escrito, dirigido e encenado por Paco, que fazia também o papel do velho pão duro, mudou até a voz e o jeito de andar para parecer idoso. Psiu, que parecia mudo, só não era porque falava quando precisava não iria dizer uma palavra. Fazia o papel de um menino, neto do velho avarento e ficava brincando com um carrinho de plástico num canto do palco durante a última cena. Quando ele quebrava um prato (nos ensaios o prato também era de plástico) que ficava em cima da mesa, o velho batia nele com uma bengala, gritando:

— Desastrado! Prato custa dinheiro!

Aí, Psiu saia correndo do palco e a cena continuava sem ele, com outro ator entrando para brigar com o velho.

Paco explicou para Psiu o que ele precisava fazer, como se fosse uma brincadeira e os ensaios até que foram bem, ninguém caracterizado, era Paco mesmo que fingia bater no menino e que gritava com ele. Depois abraçava-o e dizia:

— É tudo mentirinha, só para fingir tá?

Quando o ensaio geral ficou bom, levantaram acampamento e rodaram para uma cidade para levar a peça e faturar algum dinheiro. Vestiram uma roupa velha em Psiu e Paco se disfarçou de velho, peruca branca e barba branca de Papai Noel. Virou um perfeito velho, parecia de verdade.

Quando as luzes se acenderam a peça começou. Psiu nem ficou com medo de ver tanta gente olhado para ele, ficou a ele, brincando com o carrinho de plástico no canto do palco. Também não ficou com medo de ver tantas luzes em cima dele. Parecia até que estava gostando da brincadeira. Continuou no seu lugar, do jeito que fazia nos ensaios, sem se incomodar com a conversarada no palco atrás dele. Quando ouviu a sua deixa, se levantou em direção da mesa, esbarrou nela, direitinho, o prato despencou — agora era um prato preparado para partir em dois quando batesse na madeira do chão —, e virou dois cacos, só então ele percebeu que não era seu amigo, Paco que estava ali, fingindo de bravo, era um velho mesmo, com uma ameaçadora bengala, gritando as mesmas palavras:

— Desastrado! Prato custa dinheiro!

Psiu não saiu correndo do palco como nos ensaios. Mergulhou num túnel escuro, comprido, foi girando dentro dele de cabeça para baixo, rodopiando até chegar numa porta que se abriu subitamente, deixando uma luz forte e brilhante iluminar a escuridão. Então naquela luz apareceu a figura de um velho de barbas que sorria para ele. Começou a chorar e a gritar.

— É mentira! É mentira! meu avô era bom! Ele era meu amigo, não era esse velho malvado.

Precisaram tirar Psiu do palco para que ele saísse do túnel escuro. O público nem percebeu que ele havia entrado no túnel e encontrado seu avô. Achou que tudo aquilo fazia parte do enredo.

Fátima abraçou o pequeno:

— Quieto, querido, não precisa chorar. Você falou sobre seu avô, você conseguiu se lembrar de alguém de sua família?

Mas o espetáculo continuar em cima do caminhão e o garoto correu para chorar sozinho dentro da cabine Só quando todos acabaram o trabalho é que foram procurar o pobrezinho.

— Não assustem o garoto, pediu Fátima abraçando-o com carinho.

— Conta pra gente conta Psiu, como se chama ele, quem era seu avô? Onde morava? Conta Psiu.

— Chamava vovô, soluçou ele. Era bonzinho, fazia carrinho de rolemã para mim, nunca me bateu.

— Onde ele mora Psiu?

Ele apontou para cima:

— No céu. Ele está morando lá.

Conta mais Psiu, pediram.

— Ele estava lá na porta, no meio da luz, no fim do túnel escuro.

Depois desse dia, Psiu começou a falar do avô. Falava mais vezes ficou menos calado e ensimesmado, parecia até mais alegre. Sua memória abriu um compartimento especial onde morava seu velho avô e todas suas boas lembranças. Mas foi só este compartimento que se abriu. Psiu não se lembrava de mais nada. Só de seu avô.

 

— 2 —

 

— Nanete começou a ensinar Psiu a ler e a escrever Comprou uma cartilha e um caderno para ele. Júlio ensinava o menino a fazer contas. Psiu aprendia tão depressa que parecia que já sabia tudo aquilo, que estava apenas recordando as lições.

— Ele não é nada bobo, comentou Júlio. Eu acho que ele já sabe essas coisas mas esqueceu tudo.

Fátima ensinava geografia. Não que ela soubesse geografia. Ela aprendia junto com ele num atlas e num livro, ia lendo para ele e mostrando as cidades e os rios, as montanhas e os mares nos mapas. Coralice contava a história do mundo para ele, pedaços que ela se lembrava de ter estudado. Era uma história aos pedacinhos porque Coraline não tinha sido uma boa aluna e colocava o Napoleão Bonaparte na Guerra da Independência dos Estados Unidos e D. Pedro I em Araçatuba, dono da cidade e de um tal do dia do Fico.

Todos estavam entusiasmados com o progresso do menino, rápido demais e se achavam responsáveis por sua educação. Cuidavam dele o melhor que podiam enquanto viajavam pelo país levando ao povo a arte do palco através das peças escritas por Paco.

Mesmo no palco Psiu já conseguia trabalhar melhor, chegando mesmo a dizer algumas falas com muita segurança. Ele era menino, menina anjinho e capetinha, usava peruca de cachinhos, asinhas ou rabinho, tudo de acordo com os textos de Paco, ensaiado por Coralice.

Paco estava com uma peça nova, saída do forno "O violão de estimação", que só precisava ser aprovada pela censura. Muitas vezes a censura era um delegado de polícia que lia a peça e dava um alvará de apresentação.

— Não vejo a hora de acabar esta nojeira de governo para agente poder dirigir uma peça melhor, mais autêntica, mais dentro da realidade do povo, desabafou Paco.

— Fátima entrou na conversa e ia dizendo:

— No tempo em que a gente trabalhava no circo, lembra-se Paco, a gente nem precisava escrever peça, só escrevia se quisesse. A gente encenava cada farsa tão boa! Hoje eles cortaram tudo...

— Mutilam os textos, às vezes o enredo nem tem sentido quando passa pelas mãos deles, comentou Nanete.

— Coralice perguntou:

— Os seus também Paco?

— Não, eu já escrevo pra censura nenhuma botar defeito, sou macaco velho e curtido. Minhas peças são aprovadas na íntegra, mas vocês sabem, são testemunhas vivas que eu não faço lavagem cerebral no povão, Deus que me livre desta tarefa nojenta.

— Um dia não teremos mais isto, suspirou Fátima. Parece incrível que isto ainda existe em 1977.

— Acho que vai demorar muito, lamentou Paco. Tenho uma vontade louca, uma vontade me roendo aqui dentro de fazer uma peça sobre um ditador, e vou escrever, será a primeira a ser feita quando tudo mudar, isto eu prometo.

Eles gostavam muito de conversar à noite, enquanto jantavam e esperavam a hora de dormir. Relembravam os velhos tempos, relembravam a vida do circo onde haviam trabalhado juntos, falavam sobre o teatro que algum dia teriam numa grande cidade, sobre o novo caminhão, sobre assuntos que gostariam de representar, peças que gostariam de fazer, personagens que queriam ser. Paco contou-lhes que a nova peça tinha como personagem principal um violão.

-— Vamos precisar cantar? Perguntou Coralice. Minha voz é horrível, sou desafinada e se meu personagem precisar cantar, não sei não.

— Só a Fátima e o Júlio vão cantar, respondeu Paco. A Fátima até que é afinada e canta direitinho, me cantou até pra casar com ela.

Todos riram da Fátima que falou:

— É, mas só sei canções antigas, do tempo da minha mãe e não sei tocar violão. O Júlio toca bem.

— Toca Júlio, toca. Toca um pouco pra Fátima cantar, pediram.

Júlio não se faz de rogado!

— Mas só se Fátima cantar, disse pegando seu violão.

— Tá bom. V á lá. Não sei se vocês vão gostar. É uma canção antiga.

O violão foi dedilhado com maestria, o som encheu a noite e Fátima começou, entrando certinho no tom, até parecia que tinham ensaiado antes.

"Era o meu lindo jangadeiro

Dos olhos verdes da cor do mar."

Ela cantava suavemente, Júlio também acompanhando certinho. Psiu foi se aproximando, os olhos arregalados, atraído pelo som. Então ele entrou no túnel escuro mais uma vez, mergulhou dentro dele e foi rodando rodopiando, solto no ar, até chegar no fim, na luz onde ele estava deitado num quarto, numa cama quentinha e macia e um vulto de mulher, ele não podia ver bem quem era, cantava pra ele a mesma melodia.

— Para! Para! Não! Não! Gritou saindo do túnel para o colo de Nanete.

Todos ficaram em silêncio.

— Porque Psiu? Perguntou Fátima.

Psiu começou a chorar:

— Eu entrei no túnel escuro outra vez. E eu estava lá, eu mesmo. Era eu, deitado na minha cama e ela cantando pra mim. Ele cantava isso aí pra eu dormir, cantava esta música.

— Ela quem, Psiu, conta pra gente quem era ela, pediu Fátima.

— Não sei, só sei que ela gostava de mim e cantava isso aí pra eu dormir. Não sei, não sei.

Fátima abraço o menino carinhosamente, tirando dos braços de Nanete.

— Deixa pra lá, deixa estar, agora eu canto esta música pra você dormir, tá? Assim você poderá se lembrar dela.

Depois desta noite Psiu começou a namorar o violão. Sentava-se em frente dele e ficava com os olhos grudados ali, até parecia que o pinho guardava a canção dentro de sua caixa.

Fátima comentou com os amigos

— Alguém, acho que a mãe dele, tocava violão e cantava pra ele. Um dia ele vai se lembrar e vai poder viver melhor.

— 3 —

Depois que "O violão de estimação" foi encenado com muito sucesso, contando a história de uma boia fria que virou cantadora famosa no mundo do disco, a Fátima cantando sem desafinar, fizeram mais duas peças, duas comédias muito engraçadas lá pelas bandas de Goiás. Então Paco começou a ensaiar "Carmem", que não tinha sido escrita por ele mas tinha a aprovação da Censura Federal. Eles iriam para a festa do peão boiadeiro de Barretos, como iam todos os anos como contratados pelos organizadores da feira, deixando Goiás para trás e entrando no Estado de São Paulo. Paco rodava o caminhão pela estrada. Precisava chegar antes do evento para contratar alguns extras para o papel de soldado.

— Acho que deveríamos encenar algo mais alegre, uma farsa, afinal é dia de festa e você sempre falou que drama não é para festa, opinou Júlio.

Mas Paco, que resolvia tudo como chefe da caravana, decidiu:

— Mudei de ideia. Quem tem cabeça tem direito de mudar de opinião. Há muito tempo não encenamos um bom drama e acho que é a ocasião certa. Se não houver receptividade, não der certo, o público levantar e sair, estas coisas que podem acontecer, entraremos com “A Deusa assanhada” ou “O rabo do diabo” que já estão na ponta da língua e não precisa e ensaio.

— Vai dar um trabalhão, disse Fátima. Você tem que mandar fazer até fardas para os soldados, a gente não tem isto no guarda-roupa.

— Não faz mal, teimou Paco. Vamos encenar “Carmem”.

Chegaram bem antes da feira. Paco arrumou os extras, mandou confeccionar os uniformes, gastou dinheiro (que não estava sobrando, muito pelo contrário), ensaiou o grupo. Os ensaios foram acelerados à medida que se aproximava o dia da inauguração. Psiu adorou o movimento, ficou zanzando livre pelo recinto da feira, vendo a montagem das barracas, do parque de diversões, prestando atenção no vai e vem do pessoal engajado na preparação dos festejos. Quando a festa foi inaugurada ele adorou os rodeios, os cantores regionais, as pessoas bonitas andando de um lado para o outro. Era a primeira vez que participava de festejos tão bonitos e alegres. À noite, quando a história de "Carmem" estava acontecendo em cima do caminhão, ele ficava admirando as luzes da roda gigante, os carros da montanha russa.

Paco reclamou:

— Psiu nem viu os ensaios. Ele faz parte da caravana e precisa conhecer todas as montagens, mesmo que não participe do elenco.

Psiu foi intimado a ficar atrás dos bastidores, um cenário muito bonito, num ponto em que poderia observar o que se passava no palco. Quando os soldados entraram no palco para prender o personagem principal, Psiu mergulhou mais uma vez no túnel negro.

Rodopiou, rodopiou e entrando cada vez mais no fundo, sem saber o que iria encontrar quando enxergasse a luz brilhante no fim dele. Lá no fundo na luz muito clara seu pai estava nítido. Não sorria pra ele como seu avô, o havia feito, apenas olhava na direção dele com um ar de tristeza e sofrimento estampados no roso barbado. De repente no meio da claridade soldados apareceram como num passe de mágica, comandados por um homem pequeno e corpulento. Psiu. viu seu pai espancado, surrado elevado para fora da claridade.

O homem corpulento gritava:

— Terrorista! Terrorista!

— Não levem meu pai, por favor! Ele não é terrorista!

Os gritos de Psiu foram socorridos por Coralice que estava por perto e tinha acabado de sair de cena.

— Ele é bom! Não botam no meu pai!

— Calma, baixinho, sussurrou ela, calma Psiu.

Ele voltou do túnel num piscar de olhos, chorando nos braços de Coralice, que o abraçava com força, com medo de ele entrar no palco e arruinar o espetáculo.

A apresentação terminou a Fátima recolheu Psiu nos braços.

— Conta pra gente Psiu, conta o que você sabe. Nós somos seus amigos. Pode confiar em nós.

No meio das lágrimas Psiu falou:

— Meu pai foi preso. Os soldados entraram, bateram nele. Eu vi meu pai gritando. Sangue, saiu sangue dele!

— Calma, meu filho, disse Paco. Não fale, só responda as perguntas, tá?

— Tá, concordou soluçando.

— Como era seu pai, você se lembra?

— Grande forte e bom. Eu gostava dele.

— Você se lembra qual o nome dele? Faça força, precisa lembrar garoto.

— Lembro. Dr. Carlos Braga.

— Você se lembra porque ele foi preso?

Psiu começou a chorar de novo.

— Ele não fez nada. Ele era bom, não era bandido.

— Tudo bem, garoto, tudo bem, disse Paco. Você se lembra como tudo aconteceu. Consegue fazer isso Psiu?

— Consigo. Minha mãe levou agente pra cozinhar...

— A gente Psiu? Você e quem mais?

— Não sei... a gente... lembrou a gente pra cozinha e fez psiu pra gente ficar quietinho lá. Acho que era minha mãe, eu não consigo me lembrar dela. Eu fiquei olhando o que acontecia na sala por um pedacinho da porta que não estava bem fechada. Bateram nele, os soldados, o homem mandou e gritava terrorista, comunista, sub... sub... não me lembro...

— Será subversivo? Era essa a palavra? Perguntou Fátima.

— Acho que era isso, não me lembro, nem sei o que é. O homem baixo gordo era um mandão. Mandava gritando e os outros faziam. Eu fiquei lá não ajudei meu pai...

— Você não poderia fazer nada. É apenas um menino. E sua mãe?

— Não me lembro. Só me lembro disso que eu contei.

Psiu não chorava mais, parecia muito cansado.

— Vou levar o coitadinho pra cama. Foi demais pra ele, disse Fátima.

— Dá um copo de água com açúcar pra ele, disse Paco.

— Não, disse Fátima. Beber água na hora de dormir é xixi na cama na certa. Vou cantar pra ele... até ele dormir..

— 4 —

Agora os integrantes da caravana sabiam o que tinha acontecido à família de Psiu, o nome do pai dele, alguém para procurar. Era um nome muito comum, mas um dia topariam com a família Braga do Psiu.

Depois da festa do peão boiadeiro a caravana seguiu pra Minas Gerais para cumprir alguns compromissos, viajando durante mais de três meses pelo triângulo mineiro. Depois foram para o sertão do Mato Grosso do Norte. Psiu continuava seus estudos com seus amigos, estudos meio estropiados, mas com professores de muito boa vontade. Estava mais falante, mas andava tristonho. Todos estavam muito preocupados com ele.

— Acho que devemos arranjar um psicólogo pra ele, disse Nanete.

— Como pode falar isto, menina? Disse Paco. Nós viajamos como ciganos, não paramos em lugar nenhum.

— É, bobagem minha, concordou Nanete.

— Acho que se ele se lembrar da mãe tudo se resolve. Já li uma peça teatral, há muito tempo com esse tema, um enredo até bem interessante, disse Paco.

— Mais dia, menos dia ele vai se recordar dela e de tudo, disse Júlio.

Fátima opinou:

— Porque você não escreve uma peça de fantasma?

— De fantasma? Qual é a ideia? Perguntaram curiosos.

— Eu acho que, se houver o fantasma de uma mulher que aparece para uma criança  ele poderá se lembrar da mãe, dizer que ela não morreu, etecetera e tal, coisas assim.

— Será? Perguntaram.

— E não vale a pena tentar? Ele sempre se lembra do passado pelas peças, né?

— É, você até que tem razão, disse Paco. Vou escrever uma peça especialmente para ele, com tudo o que se passou, com avô velho de barba branca, música de violão que ele ouvia pra dormir, pai sendo preso e mãe aparecendo, como se fosse a vidinha dele, isso é aquilo que nós sabemos da vidinha dele com a família.

Paco começou no dia seguinte e, em uma semana, a história estava pronta. Era mesmo uma mistura completa. Tinha avô, tinha "era o meu lindo jangadeiro", tinha soldado prendendo homem, tinha terrorista, tinha também um fantasma de mulher que aparecia para uma criança.

A oficina começou depois que Psiu foi pra cama. O grupo se reuniu pra ouvir e ler a peça. Paco, como autor, foi o leitor enquanto os outros prestavam atenção. Ele tinha feito um milagre, era uma história muito engraçada mesmo, uma miscelânea de vários assuntos misturados. Cada autor iria fazer mais de um papel, entrando e saindo de cena trocando de roupa e peruca, trocando de maquilagem, tudo muito rápido, exigindo muito deles.

— Psiu não poderá ver os ensaios, disse Paco. Pelo menos não poderá ver o pedaço do fantasma. O papel dele é pequeno e vai ser ensaiado à parte. Só vai participar do conjunto no dia da estreia. Nem no ensaio final ele poderá aparecer. A Coralice vai fazer o favor de ficar fora e tomar conta dele. Vai ensaiar o menino, tá?

— Tudo bem, concordou. Eu já sei. Na hora da verdade eu vou agir. Oriento o menino.

Os planos foram seguidos ao pé da letra, Tim-Tim por Tim-Tim, todos com esperança de ver a vida de Psiu esclarecida. Paco não submeteu sua peça à D. Censura. Sabia que se o fizesse iria ferir os sentimentos dos poderosos e não iria ser aprovada.

— Vamos nos arriscar, disse Paco. Os soldados vão bater pra valer no homem e vão chamá-lo de terrorista e subversivo.

— Não vai ficar mal? E muito perigoso!

— Poderemos ser presos.

— Por isso vamos levar a peça num lugar bem pequeno onde nem as pessoas percebam. Com gente muito simples mesmo na plateia. Numa currutela onde não haja delegacia e delegado, cadeia e soldado.

Paco já tinha tudo na cabeça, todos os planos feitos para a armadilha que iriam armar para Psiu. Seus cúmplices aprovaram tudo.

— 5 —

A caravana chegou no pequeno arraial de uma rua só. Foi uma festa, a rua repleta de gente que corria atrás do caminhão pensando que ele estava só de passagem. Quando pararam no campinho de futebol do vilarejo, todos desceram e foi um aplauso geral, um grande viva estourou no ar. Paco pediu silêncio com as mãos e grito:

— Hoje à noite, as oito em ponto tem espetáculo de graça. Compareçam todos com suas cadeiras.

— Viva a caravana Pirilampo! Gritou o povo feliz, mal acreditando no que estava acontecendo.

Já a sete horas havia gente sentada, gente esperta que quer colocar suas cadeiras bem perto e não perder nada, nem um gesto, nem uma fala. Velhos, jovens, crianças, lá estava toda a aldeia quando o caminhão acendeu as luzes com a eletricidade roubada de um .poste da vizinhança. O palco ficou iluminado, o cenário colorido esperando os atores, um oh! Saindo de todas as bocas, a admiração brilhando nos olhos das crianças e dos adultos.

As oito em ponto o espetáculo começou. Psiu pronto para entrar em cena ao lado de Coralice viu as cenas com o velho, viu Fátima cantar ao violão, riu com as palhaçadas do texto, riu com a correria dos atores que trocavam de perucas, roupas e maquilagem num piscar de olhos, riu com o público que se sacudia nas cadeiras.

Na hora de entrar em cena Coralice o empurrou.

Psiu entrou no palco devagarinho, pé ante pé, sozinho. As luzes diminuíram mas ele nem ligou. Tinha apenas que gritar umas poucas palavras de acordo com o texto:

— Minha mãe está escondida. Está brincando comigo. Vou chamá-la de novo. Mamãe! Mamãe!

Ele teria que fechar os olhos, contar até dez, abrir os olhos no cinco e sair do palco no dez, dizendo:

— Desisto, vou embora.

O público levou um baita susto, a plateia se encolheu vendo Nanete, toda maquiada de azul, a peruca esvoaçando, soprada por um ventilador escondido, pairando no ar e envolta em um filé fantasmagórico. Quando Psiu abriu os olhos só viu afigura de Nanete quase em cima dele, dizendo:

— Você está me procurando, meu filho?

Psiu não disse sua fala e não saiu do palco. O túnel abriu sua boca escura e o devorou, e lá dentro dele ele ia passando por portas que se abriram, uma porta, outra, outra e outra, ele rodopiando e depois de todas as portas lá longe, a última toda iluminada com a figura de uma mulher caída no chão, o rosto voltado para ele, olhos fechados e muito pálida. De repente o túnel sumiu, a figura sumiu a porta sumiu.

— Mataram minha mãe! Levaram meu pai e mataram minha mãe! Gritou desesperado. Meus irmãos estão esperando por mim na cozinha, lá na minha casa.

Coralice entrou no palco e tirou o menino de lá. O espetáculo continuou com ofantasma aprontando, a plateia rindo e se recuperando do susto. Coralice levou Psiu em prantos para a cabine do caminhão e ficou com ele nos braços, esperando pelos companheiros. As luzes foram se apagando, o público foi para casa feliz. Paco, Júlio, Fátima e Nanete cansados, correram para ele. Fátima o abraçou:

— Agora você sabe tudo, querido. Nós também sabemos.

— Ela caiu no chão, soluçou Psiu, bateram nela até ela cair, Acho que ela morreu.

— Ela pode não estar morta, querido. Pode ter caído desmaiado. O que você fez quando viu sua mãe caída no chão? Perguntou Fátima.

— Saí da casa, larguei meus irmãos na cozinha, saí correndo, correndo, esqueci que meu nome era Bruno. Fiquei andando, andando até vocês me acharem. Eu deixei meus irmãos sozinhos, minha mãe caída no chão, não sei porque, soluçou.

Porque ficou assustado, só por isso. E fugiu. Eu teria feito a mesma coisa, disse Nanete.

— E apagou tudo na sua cabeça porque o que você viu foi muito feio, disse Júlio.

Psiu ficou tremendo, nos braços de Fátima. Estavam todos emocionados.

— Paco, você é um gemo, disse Coraline e todos concordaram com ela.

Fátima beijou o menino e disse:

— Calma, Psiu. Você vai contar pra nós sobre sua família, aos poucos, não precisa ser agora.

— É isso aí, garotão, falou Paco. Agora você sabe que tem um nome e uma família. Tem um pai, e uma mãe que deve estar viva, tem irmãos. Nós vamos achá-los juntos, disse Paco.

Júlio continuou:

— E um dia não vai mais haver repressão, todos vão pensar o que quiser, não vai haver censura, todo mundo vai poder falar o que pensa. Um mundo de coisas feias que estão acontecendo na nossa terra vai ter um fim. Haverá liberdade para todos, prisão só para criminosos, gente limpa e de cabeça governando e todos poderão estar juntos novamente.

— Pode acreditar nisso, garoto, disse Paco. Vou escrever a sua história e fazer uma peça muito bonita depois que tudo terminar e a liberdade chegar. Nós temos esperança.

 

São Paulo, 1977