Modelo
Celina estava sem se mover a quase uma
hora e precisava aguentar mais uma hora naquela posição. Sentia frio, o corpo
nu sem nada para protegê-lo do ar gelado. De pé, uma das pernas meio flexionada
como se estivesse caminhando, o braço direito levantado segurando um cantil no
ombro, ela se sentia entorpecida pela posição e pelo ar gelado. Apear de ter
sido uma loucura aceitar aquele trabalho no inverno, não podia negar eu fora a
melhor hora para posar. Ninguém queria ficar pelada por tanto tempo no frio,
arriscando-se a pegar um resfriado, uma gripe ou mesmo, até, uma pneumonia.
Felizmente ela era muito saudável não era afeita a doenças de pulmão, e para se
prevenir, antes de começar o trabalho, tomava um bom trago de conhaque para
aquecer o corpo e fazer o sangue correr quente.
Celina tinha esperança de poder fazer um
bom trabalho, de ficar totalmente imóvel, se controlar quando sentia uma
coceira no nariz. Queria que seus serviços fosse contratado por muito tempo, só
ela sabia o quanto aquele dinheirinho era necessário. A magra pensão do
falecido marido, a mixaria de um salário mínimo, a faxina noturna que fazia nos
escritórios da zona central, mal estava dando para alimentar as três bocas, as
duas filhas e a mãe entrevada em cima de um colchão, além de pagar o aluguel do
quarto na cabeça de porco.
O corpo de Celina estava entorpecido,
imóvel, era quase como se nem existisse, porém sua mente trabalhava ágil. Todos
os dias era a mesma coisa, não podia parar de pensar de fazer planos, de ter
esperança. E ela tinha muita esperança, principalmente de poder sair do lugar onde
morava, um mísero quarto alugado numa cabaça de porco da Rua da Liberdade. Mas,
ao mesmo tempo, achava que tivera sorte conseguindo aquele lugar para morar,
tinha direito ao uso de banheiro imundo, coletivo, no corredor, sempre com o
vaso entupido e o chão banhado com água podre e mijo, onde era preciso entrar
usando uma havaiana. E podiam tomar banho frio e usar o tanque do quintal.
Cozinha? Uma espiriteira no quarto para o arroz, o ovo e o café. O problema era
esconder a garrafa de álcool e o fósforo das crianças quando saia. O que ela
mais temia era que se queimassem ou incendiassem o quarto. Mas ela tinha o
extremo cuidado de carregar a caixa de fósforos com ela e meter a garrafa de
álcool, bem arrolhada, debaixo do colchão da mãe. A velha, entrevada, derrubada
por um derrame fulminante só movia os olhos, não falava, não se movia, embora
escutasse tudo, ela tinha certeza disso. Não valia nada para tomar conta das
duas netas. O que Celina gostava naquele lugar imundo e feio, cheio de gente,
era do quintal, com portão sempre fechado com cadeado, cada morador com sua
chave para entrar e sair. Dava-lhe sossego saber que suas filhas não iriam para
a rua.
Celina sentia a perna esquerda
adormecida, a danada formigando, querendo se mexer. Mas ela não iria mover um
só músculo, mais uma hora e estaria tudo terminado. Ainda bem que era
sexta-feira e ela teria dois dias de folga, maneira de dizer, porque sua labuta
não tinha fim. Quando chegasse em casa ainda precisaria banhar a mãe, como
fazia todos os dias, a pobre estava sempre cagada e mijada, precisava de remédios
nas escaras. Era um trapo de gente, quase só ossos. E havia a roupa de cama,
tinha que ir para o tanque, fazer alguma coisa para comer na espiriteira ou um
pouco de arroz ou macarrão, ovo, cortar tomates, sempre a mesma gororoba todos
os dias.
A escola era muito importante para o
futuro das filhas, isso ela fazia questão, iria até trabalhar de prostituta e
rodar a bolsinha na Rua Aurora para dar estudo para as duas. Ela não tinha estudo,
a mãe e o pai só haviam se preocupado com seus dois irmãos. A mãe havia se
matado na máquina de costura e o pai no balcão de uma Drogaria, tudo era para
os dois machos da família. Para ela só até o segundo ano primário, depois
trabalho da casa para deixar a mãe livre para a máquina de costura. Se tivesse
estudado talvez tivesse encontrado um bom marido, um homem estudado e não o
grosseiro feirante, o falecido que lhe havia deixado a mixa pensão de um
salário mínimo. Se ela tivesse frequentado os bailes de faculdades, conhecido
estudantes, futuros médicos, advogados e engenheiros, talvez um deles tivesse
se engraçado com ela e ela tivesse feito um bom casamento. Hoje os irmãos
estavam bem de vida, nadando em dinheiro, um era advogado com banca na Rua
Riachuelo, o outro era locutor esportivo, não querendo saber delas, vivendo no
meio de gente rica e importante, frequentando clubes, tinham até carro.
Celina olhou para as pessoas em frente
dela, os alunos, procurando colocar no papel o seu corpo nu, concentrados no
trabalho. Só um deles, um descarado, olhava para ela com olhos de depravado.
Ela sentia o olhar dele em cada pedacinho da sua carne, olhar cobiçoso,
enquanto ele passava a língua nos lábios. Fingia não perceber e não olhava para
o filho da puta. O professor percorria as pranchetas, corrigindo, explicando.
Graças a Deus, para ser modelo de pintor, não era preciso ter corpo de miss. É
claro que haviam as novinhas, bonitonas, de barriga lisa que posavam, mas
também haviam as mais velhas. O que era necessário, para exercer o ofício, era
ficar pelada, não se mover e não se importar com os olhos dos alunos, mesmo
sendo igual ao do sem vergonha que olhava para ela despudoradamente.
Desde que se lembrava por gente, Celina
gostava de desenha. Muito pequena ainda, ela rabiscava as calçadas e os pisos
com carvão. Enfeitava os cadernos com lindas flores pintadas com lápis de cor e,
quando saiu da escola, muito cedo, continuou desenhando e pintando nos papéis pardos
que vinham embrulhados o pão para o café da manhã. Se tivesse estudado, hoje
poderia ser uma pintora ou professora de artes ou mesmo, até, uma ilustradora
de livros ou de cartazes de propaganda. Ela se lembrava do dia em que enfrentara
amãe, tinha 15 anos:
— Mãe, eu quero estudar na Escola de
Belas Artes.
— Escola? Paga?
— Não mãe, é de graça e eu acho que levo
jeito.
— Então vai ver, se é grátis pode ser,
desde que você dê conta das tarefas da casa.
— Tá bem mãe, mas tem material para
comprar.
A mãe tinha sido irredutível:
— Pode desistir. O dinheiro não dá.
Ela se lembrava como havia ficado
magoada. Para os irmãos, o dinheiro sempre dava. Até o smoking eles tinham,
para ir às festas a rigor e ela, com 15 anos nem escola frequentava havia mais
de cinco anos.
Ela havia conversado com o pai, havia
chorado as mágoas e o convencera a comprar o material para o curso. Havia sido
um tempo feliz, todos os dias tomava o bonde para o centro e caminhava a pé até
a escola. Todos diziam que ela já desenhava muito bem, logo iria aprender a
usar tinta a óleo, fazer aquarelas. Ela havia cursado três meses apenas, ali
mesmo naquela sala onde hoje era uma modelo, desenhando numa prancheta,
procurando se aprimorar cada vez mais, aprendendo a usar as sombras.
Mas felicidade é coisa passageira, a
dela havia durado até o dia em que a mãe havia chegado e entrado na sala, enquanto
uma mulher velha e muxibenta era a modelo nua para os alunos, e quando ela
desenhava prestando atenção às sombras e ao volume, a mãe fez um escândalo e
tanto, o professor atônito parado no meio dos alunos que se levantaram, a velha
modelo se cobrindo com uma toalha, gente aparecendo na porta da sala vinda não
se sabe de onde. Ela nunca havia se sentido tão envergonhada na vida, como se
tivesse nua no meio da rua.
— É para essa sem-vergonhice que eu pago
material?
E todos a olhavam ali, no meio da sala
parada com seu vestido rosa de bolas pretas, segurando a bolsa contra o peito
como se ela tivesse financiado o papel, o crayon e as tintas. A voz dela havia
continuado alta, desfiando impropérios, implacável:
— Não vou permitir que minha filha ficasse
no meio de marmanjos olhado uma mulher da vida pela! Que indecência!
Seu sonho, suas esperanças se foram
enquanto era arrastada porta fora com o rosto vermelho pelo vexame.
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