terça-feira, 18 de dezembro de 2012

Conto: MODELO


Modelo

Celina estava sem se mover a quase uma hora e precisava aguentar mais uma hora naquela posição. Sentia frio, o corpo nu sem nada para protegê-lo do ar gelado. De pé, uma das pernas meio flexionada como se estivesse caminhando, o braço direito levantado segurando um cantil no ombro, ela se sentia entorpecida pela posição e pelo ar gelado. Apear de ter sido uma loucura aceitar aquele trabalho no inverno, não podia negar eu fora a melhor hora para posar. Ninguém queria ficar pelada por tanto tempo no frio, arriscando-se a pegar um resfriado, uma gripe ou mesmo, até, uma pneumonia. Felizmente ela era muito saudável não era afeita a doenças de pulmão, e para se prevenir, antes de começar o trabalho, tomava um bom trago de conhaque para aquecer o corpo e fazer o sangue correr quente.

Celina tinha esperança de poder fazer um bom trabalho, de ficar totalmente imóvel, se controlar quando sentia uma coceira no nariz. Queria que seus serviços fosse contratado por muito tempo, só ela sabia o quanto aquele dinheirinho era necessário. A magra pensão do falecido marido, a mixaria de um salário mínimo, a faxina noturna que fazia nos escritórios da zona central, mal estava dando para alimentar as três bocas, as duas filhas e a mãe entrevada em cima de um colchão, além de pagar o aluguel do quarto na cabeça de porco.

O corpo de Celina estava entorpecido, imóvel, era quase como se nem existisse, porém sua mente trabalhava ágil. Todos os dias era a mesma coisa, não podia parar de pensar de fazer planos, de ter esperança. E ela tinha muita esperança, principalmente de poder sair do lugar onde morava, um mísero quarto alugado numa cabaça de porco da Rua da Liberdade. Mas, ao mesmo tempo, achava que tivera sorte conseguindo aquele lugar para morar, tinha direito ao uso de banheiro imundo, coletivo, no corredor, sempre com o vaso entupido e o chão banhado com água podre e mijo, onde era preciso entrar usando uma havaiana. E podiam tomar banho frio e usar o tanque do quintal. Cozinha? Uma espiriteira no quarto para o arroz, o ovo e o café. O problema era esconder a garrafa de álcool e o fósforo das crianças quando saia. O que ela mais temia era que se queimassem ou incendiassem o quarto. Mas ela tinha o extremo cuidado de carregar a caixa de fósforos com ela e meter a garrafa de álcool, bem arrolhada, debaixo do colchão da mãe. A velha, entrevada, derrubada por um derrame fulminante só movia os olhos, não falava, não se movia, embora escutasse tudo, ela tinha certeza disso. Não valia nada para tomar conta das duas netas. O que Celina gostava naquele lugar imundo e feio, cheio de gente, era do quintal, com portão sempre fechado com cadeado, cada morador com sua chave para entrar e sair. Dava-lhe sossego saber que suas filhas não iriam para a rua.

Celina sentia a perna esquerda adormecida, a danada formigando, querendo se mexer. Mas ela não iria mover um só músculo, mais uma hora e estaria tudo terminado. Ainda bem que era sexta-feira e ela teria dois dias de folga, maneira de dizer, porque sua labuta não tinha fim. Quando chegasse em casa ainda precisaria banhar a mãe, como fazia todos os dias, a pobre estava sempre cagada e mijada, precisava de remédios nas escaras. Era um trapo de gente, quase só ossos. E havia a roupa de cama, tinha que ir para o tanque, fazer alguma coisa para comer na espiriteira ou um pouco de arroz ou macarrão, ovo, cortar tomates, sempre a mesma gororoba todos os dias.

A escola era muito importante para o futuro das filhas, isso ela fazia questão, iria até trabalhar de prostituta e rodar a bolsinha na Rua Aurora para dar estudo para as duas. Ela não tinha estudo, a mãe e o pai só haviam se preocupado com seus dois irmãos. A mãe havia se matado na máquina de costura e o pai no balcão de uma Drogaria, tudo era para os dois machos da família. Para ela só até o segundo ano primário, depois trabalho da casa para deixar a mãe livre para a máquina de costura. Se tivesse estudado talvez tivesse encontrado um bom marido, um homem estudado e não o grosseiro feirante, o falecido que lhe havia deixado a mixa pensão de um salário mínimo. Se ela tivesse frequentado os bailes de faculdades, conhecido estudantes, futuros médicos, advogados e engenheiros, talvez um deles tivesse se engraçado com ela e ela tivesse feito um bom casamento. Hoje os irmãos estavam bem de vida, nadando em dinheiro, um era advogado com banca na Rua Riachuelo, o outro era locutor esportivo, não querendo saber delas, vivendo no meio de gente rica e importante, frequentando clubes, tinham até carro.

Celina olhou para as pessoas em frente dela, os alunos, procurando colocar no papel o seu corpo nu, concentrados no trabalho. Só um deles, um descarado, olhava para ela com olhos de depravado. Ela sentia o olhar dele em cada pedacinho da sua carne, olhar cobiçoso, enquanto ele passava a língua nos lábios. Fingia não perceber e não olhava para o filho da puta. O professor percorria as pranchetas, corrigindo, explicando. Graças a Deus, para ser modelo de pintor, não era preciso ter corpo de miss. É claro que haviam as novinhas, bonitonas, de barriga lisa que posavam, mas também haviam as mais velhas. O que era necessário, para exercer o ofício, era ficar pelada, não se mover e não se importar com os olhos dos alunos, mesmo sendo igual ao do sem vergonha que olhava para ela despudoradamente.

Desde que se lembrava por gente, Celina gostava de desenha. Muito pequena ainda, ela rabiscava as calçadas e os pisos com carvão. Enfeitava os cadernos com lindas flores pintadas com lápis de cor e, quando saiu da escola, muito cedo, continuou desenhando e pintando nos papéis pardos que vinham embrulhados o pão para o café da manhã. Se tivesse estudado, hoje poderia ser uma pintora ou professora de artes ou mesmo, até, uma ilustradora de livros ou de cartazes de propaganda. Ela se lembrava do dia em que enfrentara amãe, tinha 15 anos:

— Mãe, eu quero estudar na Escola de Belas Artes.

— Escola? Paga?

— Não mãe, é de graça e eu acho que levo jeito.

— Então vai ver, se é grátis pode ser, desde que você dê conta das tarefas da casa.

— Tá bem mãe, mas tem material para comprar.

A mãe tinha sido irredutível:

— Pode desistir. O dinheiro não dá.

Ela se lembrava como havia ficado magoada. Para os irmãos, o dinheiro sempre dava. Até o smoking eles tinham, para ir às festas a rigor e ela, com 15 anos nem escola frequentava havia mais de cinco anos.

Ela havia conversado com o pai, havia chorado as mágoas e o convencera a comprar o material para o curso. Havia sido um tempo feliz, todos os dias tomava o bonde para o centro e caminhava a pé até a escola. Todos diziam que ela já desenhava muito bem, logo iria aprender a usar tinta a óleo, fazer aquarelas. Ela havia cursado três meses apenas, ali mesmo naquela sala onde hoje era uma modelo, desenhando numa prancheta, procurando se aprimorar cada vez mais, aprendendo a usar as sombras.

Mas felicidade é coisa passageira, a dela havia durado até o dia em que a mãe havia chegado e entrado na sala, enquanto uma mulher velha e muxibenta era a modelo nua para os alunos, e quando ela desenhava prestando atenção às sombras e ao volume, a mãe fez um escândalo e tanto, o professor atônito parado no meio dos alunos que se levantaram, a velha modelo se cobrindo com uma toalha, gente aparecendo na porta da sala vinda não se sabe de onde. Ela nunca havia se sentido tão envergonhada na vida, como se tivesse nua no meio da rua.

— É para essa sem-vergonhice que eu pago material?

E todos a olhavam ali, no meio da sala parada com seu vestido rosa de bolas pretas, segurando a bolsa contra o peito como se ela tivesse financiado o papel, o crayon e as tintas. A voz dela havia continuado alta, desfiando impropérios, implacável:

— Não vou permitir que minha filha ficasse no meio de marmanjos olhado uma mulher da vida pela! Que indecência!

Seu sonho, suas esperanças se foram enquanto era arrastada porta fora com o rosto vermelho pelo vexame.

 

 

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