domingo, 23 de dezembro de 2012

Conto: O Milagre


O Milagre

Milagres? Não sou muito chegada nesses mistérios de fé e sempre fiz pouco deles. Mas Dona Lola afirma, de pé junto, que milagres acontecem, não os despreza, muito pelo contrário, enaltece todos eles e o Santo Milagreiro responsável pelo acontecido. Ela me garantiu que, no sertão da Bahia, onde ela nasceu e viveu boa parte de sua vida sofrida, o povo põe muita fé neles, pois não é o serão povoado de santos milagreiros que são a salvação de todo? O povo do sertão não sobrevivia por puro milagre?

O fato é que dona Lola, mulherzinha cheia de vida, ainda empenada nos seus setenta anos, atribui a um milagre poder estar vivendo na abastança, podendo criar seus netos no “bem-bom”.

Bem, vou contar o que ela me segredou, num momento de fraqueza, por pura necessidade de dividir com alguém o inaudito acontecimento que mudou o rumo de sua vida. Ela me garantiu que eu era a primeira pessoa a quem ela confiava o seu segredo e esperava total sigilo, que tudo ficasse entre nós. Mas eu não assumo nenhuma responsabilidade pelos fatos, estou passando ipsis literis com me foi narrado. O leitor pode explicar o acontecido como melhor lhe apetecer, eu me reservo o direito de interpretar o sucedido da minha maneira e do meu modo de pensar.

Conheci dona Lola — eu sempre tive dúvidas que este fosse o seu verdadeiro nome —, numa aprazível praia do litoral do Paraná, Matinhos, onde eu havia alugado um apartamento para passar alguns dias. A época, fora de temporada, fazia com que a cidadezinha estivesse às moscas, praias vazias, comércio parado. Por dois dias eu amarguei um silêncio desesperador, engolindo saliva, solitária, louca para achar uma companhia para conversar. Por isso não me foi difícil me aproximar da velhinha plantada no meio da areia numa cadeira colorida, sob um guarda-sol listrado. Sentei-me ao lado dela pedindo licença, ela foi extremamente gentil e entabulamos uma conversação sem compromisso. Em pouco tempo nos fizemos amigas. Dona Lola estava ali veraneando com os netos. Achei estranho, um tanto inusitado, crianças em período escolar deveriam estar sentadas em carteiras e não brincando na praia. Mas ela me explicou e eu me dei por satisfeita:

— Gosto de vir aqui quando há sossego. Tiro as crianças por quinze dias da escola, deixo meu comércio nas mãos de funcionário e venho gozar as excelências deste lugar lindo.

Ela tinha cinco netos ao todo, a mais velha com doze anos, e mais um rapaz de vinte, que não era seu neto de sangue, mas que era como se fosse.

— É Josué me contou. Está comigo desde os dezesseis anos. Vivia na rua, abandonado, sem família, um cão sem dono, jogado ao deus-dará. Hoje é meu braço direito, de comprovado devotamento, meu ajudante inestimável no meu estabelecimento comercial, entende as particularidades do comércio melhor que eu. E ainda é um motorista porreta.

Ficamos amigas, passávamos as horas juntas, fazíamos moquecas memoráveis, jogávamos baralho enquanto o bando de netos e o agregado se divertiam pela praia e pelas ruas.

Só no último dia das férias dela, ela se abriu comigo. Primeiro ela me passou um santinho e enquanto eu examinava a estampa, começou a falar:

— Sabe, a senhora pode não acreditar, mas não foi um santo milagreiro baiano que me valeu na minha aflição. Foi um santo que mal e mal eu conhecia, um santo aqui do sul, santo de paulista, tão porreta como um santo do nordeste. Mas tudo é santo, pois não é? Vou lhe contar que há quatro anos eu estava no maior misere, no maior sufoco, morando numa favela fedida, com estes meus netos para criar, tudo com uma pensão de salário mínimo deixada pelo meu defunto marido, que Deus o tenha! Uma mixaria que mal dava para pagar o barraco, eu morava de aluguel. As crianças, coitadas, sem escola, eu não tinha meios para mandar os coitados estudar. Mas tinha que criar os bichinhos. Não que não tivessem mãe. Minhas filhas nunca tiveram um pingo de juízo, viviam soltas no mundo, fazendo o que, eu não sei, nem nunca soube. Elas só apareciam no meu barraco para desovar mais uma cria, depois se mandavam para o mundo sem a barrigada, de minissaia, numas blusinhas que mal tapavam o corpo, o umbigo de fora. Para que? Não sei. Dinheiro? Nunca falaram nisso, nenhuma ajuda, nenhuma responsabilidade. Embuchavam, pariam e jogavam a cria no meu colo, sem perguntar se eu tinha ou não como o que comprar o leite. Já era um milagre eles estarem vivos. Não sei como não perdi nenhum deles, como vingaram. O dinheiro nunca deu, eu catava restos de feira, lixo, fazia o diabo para eles não morrerem de fome.

Pois há quatro anos, mais ou menos, eu estava por demais num sufoco, aperreada, não tinha nada no barraco, só açúcar para tomar com água. Trabalhar como? Mesmo se eu fosse moça, não ganharia o que eu precisava para educar os coitados. A roça havia sido minha escola, a enxada meu lápis.

Me amiguei nova, vim com o falecido para São Paulo, limpei muito banheiro, lavei muita cueca para ajudar o meu homem. Com pouca leitura, só consigo juntar umas letras, não podia fazer outra coisa. Meu finado marido também era sem estudo, ajudante de pedreiro por ofício, trabalhou até morrer sem ir pra frente.

Pois eu estava sem dinheiro para um pedaço de pão, as crianças de bucho vazio, jururu, nos cantos, coitadinhas. Eu tinha comigo uma estampa de santo, um santo novo para mim, de um tal de Santo Expedito, com uma oração atrás de leitura muito difícil, mas que tinham me afirmado que ele dava adjutório para as causas urgentes. E se havia uma urgência dona, era a minha e de meus coitadinhos. Eu ainda não tinha o Josué, mas como podia ter alguém mais se eu não tava dando conta do recado? Aí eu pensei, vou até a igreja dele, me arrastar no chão se preciso for, para ele tomar conta da minha aflição. O santo tinha a devoção dele numa capela perto da Estação Tiradentes do metrô. Dinheiro para ônibus, não tinha, só um passe de metrô, desses que dão para os velhos. Me agarrei com minha fé, que graças a Deus nunca me abandonou, deixei as crianças trancadas no barraco e me mandei a pé, eram quinze quarteirões até a estação do metrô. Andei como uma condenada determinada a atingir a meta almejada, fraca por falta de comida no bucho.

Quando cheguei na estação Santa Cruz, eu estava esbodegada, perna, pé, tudo doía, o sol estava quente por demais, um calor sufocante. Encostei num muro, dona, para dizer a verdade, naquela hora eu não tinha muita coragem para ir adiante, para levar a cabo a empreitada.

Foi quando eu comecei a rezar pro santo, valei-me Santo Expedido, dai-me forças pra me ajoelhar nos pés da vossa imagem, pra fazer a minha solicitação, tão carecida eu estou.

Naquela hora eu era um fiapo de gente, tão precisada, tão preocupada, que nem sei como vi o sujeitinho, um tal de Cascola, correndo na minha direção. Eu conhecia o excomungado, morador da favela e todo mundo dizia que não era boa coisa, era metido em roubalheira, com droga, assalto e outras coisas que nem me lembro agora. Só lembro de que ele vinha na disparada, com um três oitão na mão, uma sacola pendurada no braço e atrás dele um bando de policiais também de arma na mão, numa gritaria de dar gosto. Senti medo, muito medo, me encostei mais no muro, eu , naquela hora, queria que o chão se abrisse e me engolisse. Quando o perseguido excomungado passou quase grudado em mim, não parou não, jogou a bolsa no meu pé e gritou: — guarda para mim vó, depois eu pego.

O cão tinhoso, filho de uma égua, tinha me reconhecido e me transformado em cúmplice, passadora de droga. Uma baita zonzeira me dominou, um torpor nas pernas, chumbo nos pés, juro que pensei que fosse desmaiar, achei até que eu estava com o pé na cova. Como uma pedra de uma tonelada, eu caí sentada em cima da bagagem que o cão tinhoso tinha jogado para mim, e ali fiquei, sem desmaiar e vendo todo o cenário se desenrolar como se tudo estivesse se passando bem devagar.

Os policiais começara a atirar, o Cascola caiu uns vinte metros adiante, eu ali espiando a morte nua e crua do desinfeliz, o corpo do branquelo lavado em sangue, o povaréu se juntando em volta, interessado nas peripécias da ocorrência. Ninguém olhou para mim, dona, nenhum cristão pôs reparo na minha figura, eu ali em cima da maldita mala preta, descorçoada sem coragem pra me por de pé. Eu era cúmplice do defunto excomungado que deveria ter comparsas por ali. O desinfeliz havia batido as botas, mas com certeza seus amigos viriam recuperar a mercadoria.

A duras penas me firmei nas pernas bambas e nem seu como consegui me safar de fininho carregando a maleta. Segui em frente e me enfiei na igreja da Saúde, e fiquei esperando o meu coração bater no compasso normal. Arreneguei o santo paulista, me achei culpada por ter abandonado os milagreiros de minha confiança.

Então abri a sacola, devagar, com medo. Não era cocaína não dona, era dinheiro, um montão, como eu nunca pensei que pudesse existir, tudo em nota de cinquenta. Aí eu percebi o milagre realizado, pedi desculpas ao santo paulista que fez o braço do Cascola jogar a sorte nos meus pés.

Por isso não faço pouco de milagres. O santo é danado de bom, milagreiro tão porreta que nem careceu eu ficar ajoelhada suplicante em frente a sua imagem.

Nesse pondo da narrativa, eu interrompi a velha senhora:

— A senhora não teve medo, dona Lola? Medo de ser perseguida pela gang do falecido Cascola?

— Claro que tive, mas tive sabedoria de fazer o que era correto e não desmerecer o milagre. Catei uma notas de cinquenta, enfiei nos molambos do meus peitos, peguei um táxi até a favela, catei meus netos e me mandei para a Barra Funda. Eu tinha que procurar outro horizonte para me estabelecer. Comprei passagens para uma cidade do interior do Paraná e nem chego perto de São Paulo.

Dona Lola que perdoe, mas o marginal, a meu ver, não teve nenhuma sociedade com o santo. Apenas não quis que a sua maleta recheada caísse nas mãos da polícia. Ele sabia que todo o dinheiro iria sumir. Talvez ele até pensasse que se safaria e poderia recuperar a maleta mais tarde.

Mas para dona Lola, foi puro milagre.

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