domingo, 23 de dezembro de 2012

Conto: Par Perfeito

Criticar, dar palpite em vista de um acontecimento, é fácil, mas para saber o porque do acontecido, uma investigação profunda dos fatos, carece ser feita, deve-se bisbilhotar a fundo, e, muitas vezes os fatos são difíceis de serem encontrados por um simples mortal não afeito a este ofício.
Dizem, os sabidos doutores, entendidos nos assuntos da psicologia e dos estudos da alma humana, a meu ver, questões deveras complicadas, que os sentimentos de amor e de ódio estão muito próximos um do outro, que um amor muito intenso pode se transformar em violento ódio, dependendo das circunstâncias e vicissitudes da vida. Era voz corrente que o Dr. Dionísio Nogueira Camacho, emérito desembargador exercendo suas funções no fórum de São Paulo e dona Alda Nogueira Camacho, sua santa e devotada esposa, estavam ligados por um profundo amor, vivendo uma lua de mel que já durava trinta e sete anos, vida conjugal exemplar e ditosa, mesmo não tendo produzido nenhum rebento. A pobre dona Alda era considerada estéril, não houvera tratamento, médicos nas clínicas especializadas, tanto nos Estados Unidos como na Europa, nem mezinhas, rezas, novenas e promessas que fizessem com que o ventre da coitada conseguisse segurar uma só cria sequer. Ela abortava antes do terceiro mês de gestação. Mas este revez não tinha impedido a felicidade do casal, cantada em verso e prosa pelos amigos e pela vasta parentela, um amor tão lindo e fiel, duas almas gêmeas se completando.
Além de exemplar dona de casa, anfitriã perfeita e socialite modelo, dona Alda era fogosa amante, devotada e fiel esposa e mãe amorosa de um homem só, seu amo e senhor.
Foram trinta e sete anos de vida conjugal, tempo em que nadaram em felicidades, viajaram pelo mundo durante as férias forenses e gozaram as bênçãos de uma fartura financeira. A venturosa bonança durou até o dia em que o dr. Dionísio emigrou para o astral num assalto em que tentou reagir, indignado por ter que submeter a sua meritíssima figura de homem da mais alta justiça à vontade de dois marginais que interceptaram com motos o seu carro, num congestionamento da Avenida Rebouças.
Arrasada, dona Alda viu sua vida naufragar com a perda do marido.
Uma parte da sua felicidade tinha partido para sempre. O falecido havia lhe deixado bens, uma polpuda pensão e uma enorme solidão.
O primeiro ano de viuvez foi de luto fechado, viveu encolhida na preta desolação da roupa fechada dos pés à cabeça, rios de lágrimas sem fim.
Nunca houve defunto mais pranteado do que o desembargador Dionísio Nogueira Camacho. Como uma reclusa, dona Alda se trancou em casa e para a vida, nem parentes, nem amigos conseguiram tirá-la daquele estado de desolada prostração.
No segundo ano de viuvez, o luto foi aliviado. Vestida de cinza ela se dedicou à arte da pintura em porcelana. Arrancada de casas, diga-se de passagem, muito a contragosto, pela irmã caçula, ela concordou em substituir o preto total por um cinza chumbo, enfeitando as blusas com golas e punhos brancos. As duas irmãs se matricularam num curso de artesanato, a vida tinha que continuar. Foi um ano de muito trabalho, totalmente dedicado à nova atividade. Dona Alda fabricou presentes para amigos e para toda a família — canecas, xícaras e bules, açucareiros, pratos e pratinhos, vasos, enfim, todas as quinquilharias costumeiras que se faz nesse tipo de curso. A solitária viúva já não aguentava mais desenhar e colorir florzinhas delicadas em pratos e pratinhos quando lhe insinuaram que ela deveria fazer um curso de computação, que estava na moda, que era o mais moderno meio de comunicação, um show.
Assim, aprender a lidar com uma máquina que lhe era totalmente estranha, tornou-se a meta do terceiro ano de viuvez. Foi realmente espantoso como dona Alda e o computador se deram bem, se completara tinham sido feitos um para o outro. Ela se encontrou dentro do seu novo passatempo, aprendendo com facilidade e espantosa rapidez, passando de um curso para o outro, pensando até em fazer um curso avançado de informática. Tinha finalmente encontrado um vício, algo que talvez pudesse preencher a lacuna de sua vida, a falta que ela sentia em poder se dedicar a alguém, no caso o falecido, seu amado nunca esquecido dr. Dionísio.
Adquiriu um HP com proessador intel, 160 gb, uma impressora fotográfica HP, com scanner e copiadora, câmera digital, microfone e se conectou com o mundo. Instalou o equipamento em seu próprio quarto, móvel, cadeira estofada com rodinhas, com espaldar alto, tudo do bom e do melhor.
Assim passou dona Alda, de luto aliviado, o terceiro ano de sua sofrida viuvez, ainda afastada das festas, das badalações, das viagens e do clube, navegando na internet, descobrindo novos mundos.
Quando dona Alda tirou definitivamente o luto, no quarto ano, ainda prateava o falecido, nunca esquecido dedicado esposo. Invadiu o escritório do saudoso dr. Dionísio para se instala, ao lado dos alfarrábios de direito civil, penal, fiscal e outros direitos, lugar sagrado e intocável. Ela tinha conservado a sala como o falecido a deixara, limpa e arrumada, como um santuário que esperasse a volta do marido. Nessa invasão ela começou a remexer nas gavetas do falecido. Nunca tivera coragem de penetrar naquele mundo misterioso ao qual nunca tivera acesso quando o marido era vivo. Apenas a criada que limpava a sala e o seu advogado que precisou de documentos para cuidar da vida financeira dela tinham penetrado no lugar sagrado. Dona Alda abriu as gavetas, examinou as anotações com a caligrafia de seu amado Dionísio e verte lágrimas de saudades. Ela nada entendia dos assuntos do desembargador, mas, desde que havia iniciado a bisbilhotice, continuou como se não pudesse parar. Numa gaveta da escrivaninha, a última, quase toado o chão, encontrou um revólver de tambor, ela nem sabia que tinham arma em casa. Ao lado dele um livro, O Levitã, de Hobb. Segurou o livro com as mãos, achou o título esquisito. Viu a foto no meio das páginas, uma ampliação em preto e branco. Lá estava o marido falecido, quarentão, usando a camisa de seda estampada esporte, presente dela no dia dos namorados. Ela se lembrava que achara a camisa chique quando a tinha visto em um manequim de uma loja do shopping Iguatemi e havia comprado para o marido que só usava terno e gravata, sempre tão formal. Lá estava o dr. Dionísio ao lado de uma mulher jovem, não era feia, e de um menino. Atrás uma dedicatória — “para Dionísio, meu amor, se lembrar de mim e de seu filho Júnior, quando não puder estar conosco, sua Janete”.
Branca como uma folha de papel, quase desmaiando, o sangue lhe fugindo do rosto e o coração disparando freneticamente, ela precisou fiar mais de uma hora esparramada na Berger do falecido para conseguir ficar de pé. Ela se lembrava vagamente de ter visto o rosto daquela mulher junto com um rapazote espinhento enquanto o caixão do defunto baixava para a cova.
O filho da puta tinha uma amante e um filho, e ela não sabia. Meu Deus! Tantos anos carregando chifres sem nunca perceber nada! O finado deveria ter sido um mágico em matéria de descrição, pois, nunca ouvira um comentário desabonador a respeito dele. E a mulherada, as amigas, que falavam da galinhagem dos homens, que tudo sabiam e eram loucas por um fuxico, nunca lhe tinham contado nada! E contariam se soubessem, eram línguas viperinas e maldosas, invejosas da felicidade dela. Meu Deus! Será que ainda estavam juntos quando ele batera as botas?
Trinta e sete anos de vida conjugal perfeita se desmancharam naquela hora, o amor intenso se transformou em raiva e ódio não menos intensos.
Dona Alda era uma mulher ferida. Mesmo sofrendo uma dos maior do que a dor que havia padecido com a morte do seu homem, não comentou com ninguém o seu achado sinistro. Todo o seu corpo, toda sua alma pediam vingança e ela resolveu botar chifres no defunto.
Ficou ainda alguns dias em estado de choque e foi o computador que lhe deu as respostas que ela precisava. Entrou no site Par Perfeito, que achou discreto e o conveniente para arrumar um home, qualquer cara vestindo calças, para ela, no tempo certo, para exibir para o mundo que Dionísio não seria o único homem de sua vida, e para que o defunto se revirasse no seu caixão de jacarandá, caríssimo por sinal.
Ao lado de uma foto dez anos mais nova, seu perfil a descrevia como viúva ainda jovem, querendo gozar a vida, em boa situação financeira. Obviamente não faltaram respostas, querendo gozar a vida, em boa situação financeira. Obviamente não faltaram respostas, candidatos do Arroio ao Chuí, de todos os tipos, que ela ia descartando depois de trocar algumas mensagens. Estava encantada com tantos assédios, já se haviam passado quarenta anos, estava distante desses afazeres românticos ligados ao amor e à pquera. Depois de dois meses de procura ela viu a foto de um candidato, sujeito ainda jovem, João Batista. Ficou pasma, meu Deus! O sujeito era a cara do falecido quando mais jovem, incrível! Os mesmos olhos fundos, a mesma testa com as entradas laterais, mesmo nariz, a boca grande com dentes fortes, cabeleira preta, muita lisa, penteado para trás.
Entusiasmada, respondeu logo, encontrar o que estava procurando, seu par perfeito, e começaram um namoro eletrônico. No começo trocaram mensagens diárias, horas de bate papo, depois com sua webcam e equipamento apropriado, se viam e se falavam. Até a voz de João Batista lembrava a do falecido, grave, morna.
Todos os dias, depois do almoço, dona Alda se dedicava a se produzir, maquiagem esmerada para disfarçar as poucas imperfeições que o botox não escondera, vestido novo, joias para conversar com João Batista, conversa esta, sempre às três horas da tarde, que se prolongava até as cinco e meia.
Ele se dizia médico cirurgião, estava sempre de branco, tirava plantão depois das dezenove horas em vários hospitais, estava ocupado a noite, dormia de manhã, era solteiro, mas pretendia se amarrar, procurava alguém, não queria uma mocinha de cabeça oca, umas burras. Gostava de mulheres maduras.
Dona Alda estava exultante, tirou o luto, voltou a sorrir, a frequentar o clube e as antigas amizades. Era como se ela estivesse reconquistando o seu Dionísio, sem aquela odiosa Janete para atrapalhar. Passaram a se encontrar em motéis, e ela tinha a sensação que estava corneando o falecido, o velho Dionísio, e, quando ela ia encontra-lo levava-lhe presentes e recebia um buquê de rosas vermelhas.
As amigas estranharam. Depois dos anos negros de pranto, a viúva havia mudado da água para o vinho, tinha um ar de felicidade estampada no rosto.
Pressionada, ela contou seu envolvimento com João Batista, sua aventura cibernética, omitindo as idas aos motéis. As amigas foram categóricas em adverti-la dos perigos desse tipo de amizade e namoro. Ela retrucou, ela estava sendo sincera, abrira-se como um libro expondo sua vida, sua solidão e tinha certeza de que ele era um homem de caráter, não mentiria. Será? A dúvida ficou plantada na sua cabeça, os homens são mentirosos, dissimulados, não tinha ela sido enganada pelo próprio marido falecido?
Dona Alda achou por bem investigar o candidato a marido. Procurou um profissional, detetive por ofício, contratou-o para seguir João Batista quando eles saíssem do motel. Um mês inteiro de investigação — ela tinha muita esperança que João Batista não fosse falso com ela —, o detetive cobrara os olhos da cara, mas ela não queria ter dúvidas.
Pobre dona Alda, o relatório do detetive decepcionou-a — João Batista não era médico, trabalhava mesmo a noite, era porteiro de uma boate na Rua Rego Freitas, onde recebia gorjetas. Era amigado com uma vendedora da C&A, de nome Jandira, tinha uma filha, até o computador que ele usava era da tal Jandira e ele usava-o quando ela estava n batente vendendo camisetas.
O sofrido coração da viúva quase não aguentou o baque. A decepção foi imensa. A cópia do seu amado, porém traidor Dionísio, não passava de um malandro em busca de uma mulher rica e vulnerável. Ela havia sido uma babaca, havia aberto seu coração para ele, entregado seu corpo. O que ela via era um Dionísio em carne e osso, zombando dela, enganando-a outra vez, fazendo-a de boba.
Sua frustação foi seguida de uma intensa raiva e repugnância. Quietametne se produziu, maquiou-se, abriu o computador e deletou João Batista, com um vestido novo estampado de flores miúdas, óculos escuros chegou às três horas da tarde no endereço dado pelo investigador, tocou a campainha, uma casa geminada, sem jardim, na Vila Clementino. João Batista abriu a porta boquiaberto, e dona Alda descarregou o revólver do falecido nele, matando Dionísio para sempre e saiu. Entrando devagar no carro.
Afinal todos os Dionísios não passavam de desalmados.
 
 

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