Criticar, dar
palpite em vista de um acontecimento, é fácil, mas para saber o porque do
acontecido, uma investigação profunda dos fatos, carece ser feita, deve-se
bisbilhotar a fundo, e, muitas vezes os fatos são difíceis de serem encontrados
por um simples mortal não afeito a este ofício.
Dizem, os sabidos
doutores, entendidos nos assuntos da psicologia e dos estudos da alma humana, a
meu ver, questões deveras complicadas, que os sentimentos de amor e de ódio
estão muito próximos um do outro, que um amor muito intenso pode se transformar
em violento ódio, dependendo das circunstâncias e vicissitudes da vida. Era voz
corrente que o Dr. Dionísio Nogueira Camacho, emérito desembargador exercendo
suas funções no fórum de São Paulo e dona Alda Nogueira Camacho, sua santa e
devotada esposa, estavam ligados por um profundo amor, vivendo uma lua de mel
que já durava trinta e sete anos, vida conjugal exemplar e ditosa, mesmo não
tendo produzido nenhum rebento. A pobre dona Alda era considerada estéril, não
houvera tratamento, médicos nas clínicas especializadas, tanto nos Estados
Unidos como na Europa, nem mezinhas, rezas, novenas e promessas que fizessem
com que o ventre da coitada conseguisse segurar uma só cria sequer. Ela abortava
antes do terceiro mês de gestação. Mas este revez não tinha impedido a
felicidade do casal, cantada em verso e prosa pelos amigos e pela vasta
parentela, um amor tão lindo e fiel, duas almas gêmeas se completando.
Além de exemplar
dona de casa, anfitriã perfeita e socialite modelo, dona Alda era fogosa
amante, devotada e fiel esposa e mãe amorosa de um homem só, seu amo e senhor.
Foram trinta e
sete anos de vida conjugal, tempo em que nadaram em felicidades, viajaram pelo
mundo durante as férias forenses e gozaram as bênçãos de uma fartura
financeira. A venturosa bonança durou até o dia em que o dr. Dionísio emigrou
para o astral num assalto em que tentou reagir, indignado por ter que submeter
a sua meritíssima figura de homem da mais alta justiça à vontade de dois
marginais que interceptaram com motos o seu carro, num congestionamento da
Avenida Rebouças.
Arrasada, dona
Alda viu sua vida naufragar com a perda do marido.
Uma parte da sua
felicidade tinha partido para sempre. O falecido havia lhe deixado bens, uma
polpuda pensão e uma enorme solidão.
O primeiro ano de
viuvez foi de luto fechado, viveu encolhida na preta desolação da roupa fechada
dos pés à cabeça, rios de lágrimas sem fim.
Nunca houve
defunto mais pranteado do que o desembargador Dionísio Nogueira Camacho. Como
uma reclusa, dona Alda se trancou em casa e para a vida, nem parentes, nem
amigos conseguiram tirá-la daquele estado de desolada prostração.
No segundo ano de
viuvez, o luto foi aliviado. Vestida de cinza ela se dedicou à arte da pintura
em porcelana. Arrancada de casas, diga-se de passagem, muito a contragosto,
pela irmã caçula, ela concordou em substituir o preto total por um cinza
chumbo, enfeitando as blusas com golas e punhos brancos. As duas irmãs se
matricularam num curso de artesanato, a vida tinha que continuar. Foi um ano de
muito trabalho, totalmente dedicado à nova atividade. Dona Alda fabricou
presentes para amigos e para toda a família — canecas, xícaras e bules,
açucareiros, pratos e pratinhos, vasos, enfim, todas as quinquilharias
costumeiras que se faz nesse tipo de curso. A solitária viúva já não aguentava
mais desenhar e colorir florzinhas delicadas em pratos e pratinhos quando lhe
insinuaram que ela deveria fazer um curso de computação, que estava na moda,
que era o mais moderno meio de comunicação, um show.
Assim, aprender a
lidar com uma máquina que lhe era totalmente estranha, tornou-se a meta do
terceiro ano de viuvez. Foi realmente espantoso como dona Alda e o computador
se deram bem, se completara tinham sido feitos um para o outro. Ela se
encontrou dentro do seu novo passatempo, aprendendo com facilidade e espantosa
rapidez, passando de um curso para o outro, pensando até em fazer um curso
avançado de informática. Tinha finalmente encontrado um vício, algo que talvez
pudesse preencher a lacuna de sua vida, a falta que ela sentia em poder se
dedicar a alguém, no caso o falecido, seu amado nunca esquecido dr. Dionísio.
Adquiriu um HP com
proessador intel, 160 gb, uma impressora fotográfica HP, com scanner e copiadora,
câmera digital, microfone e se conectou com o mundo. Instalou o equipamento em
seu próprio quarto, móvel, cadeira estofada com rodinhas, com espaldar alto,
tudo do bom e do melhor.
Assim passou dona
Alda, de luto aliviado, o terceiro ano de sua sofrida viuvez, ainda afastada
das festas, das badalações, das viagens e do clube, navegando na internet,
descobrindo novos mundos.
Quando dona Alda tirou
definitivamente o luto, no quarto ano, ainda prateava o falecido, nunca
esquecido dedicado esposo. Invadiu o escritório do saudoso dr. Dionísio para se
instala, ao lado dos alfarrábios de direito civil, penal, fiscal e outros
direitos, lugar sagrado e intocável. Ela tinha conservado a sala como o falecido
a deixara, limpa e arrumada, como um santuário que esperasse a volta do marido.
Nessa invasão ela começou a remexer nas gavetas do falecido. Nunca tivera
coragem de penetrar naquele mundo misterioso ao qual nunca tivera acesso quando
o marido era vivo. Apenas a criada que limpava a sala e o seu advogado que
precisou de documentos para cuidar da vida financeira dela tinham penetrado no
lugar sagrado. Dona Alda abriu as gavetas, examinou as anotações com a
caligrafia de seu amado Dionísio e verte lágrimas de saudades. Ela nada
entendia dos assuntos do desembargador, mas, desde que havia iniciado a
bisbilhotice, continuou como se não pudesse parar. Numa gaveta da escrivaninha,
a última, quase toado o chão, encontrou um revólver de tambor, ela nem sabia
que tinham arma em casa. Ao lado dele um livro, O Levitã, de Hobb. Segurou o
livro com as mãos, achou o título esquisito. Viu a foto no meio das páginas,
uma ampliação em preto e branco. Lá estava o marido falecido, quarentão, usando
a camisa de seda estampada esporte, presente dela no dia dos namorados. Ela se lembrava
que achara a camisa chique quando a tinha visto em um manequim de uma loja do
shopping Iguatemi e havia comprado para o marido que só usava terno e gravata,
sempre tão formal. Lá estava o dr. Dionísio ao lado de uma mulher jovem, não
era feia, e de um menino. Atrás uma dedicatória — “para Dionísio, meu amor, se
lembrar de mim e de seu filho Júnior, quando não puder estar conosco, sua Janete”.
Branca como uma
folha de papel, quase desmaiando, o sangue lhe fugindo do rosto e o coração
disparando freneticamente, ela precisou fiar mais de uma hora esparramada na Berger
do falecido para conseguir ficar de pé. Ela se lembrava vagamente de ter visto
o rosto daquela mulher junto com um rapazote espinhento enquanto o caixão do
defunto baixava para a cova.
O filho da puta
tinha uma amante e um filho, e ela não sabia. Meu Deus! Tantos anos carregando
chifres sem nunca perceber nada! O finado deveria ter sido um mágico em matéria
de descrição, pois, nunca ouvira um comentário desabonador a respeito dele. E a
mulherada, as amigas, que falavam da galinhagem dos homens, que tudo sabiam e
eram loucas por um fuxico, nunca lhe tinham contado nada! E contariam se soubessem,
eram línguas viperinas e maldosas, invejosas da felicidade dela. Meu Deus! Será
que ainda estavam juntos quando ele batera as botas?
Trinta e sete anos
de vida conjugal perfeita se desmancharam naquela hora, o amor intenso se
transformou em raiva e ódio não menos intensos.
Dona Alda era uma
mulher ferida. Mesmo sofrendo uma dos maior do que a dor que havia padecido com
a morte do seu homem, não comentou com ninguém o seu achado sinistro. Todo o
seu corpo, toda sua alma pediam vingança e ela resolveu botar chifres no defunto.
Ficou ainda alguns
dias em estado de choque e foi o computador que lhe deu as respostas que ela
precisava. Entrou no site Par Perfeito, que achou discreto e o conveniente para
arrumar um home, qualquer cara vestindo calças, para ela, no tempo certo, para
exibir para o mundo que Dionísio não seria o único homem de sua vida, e para
que o defunto se revirasse no seu caixão de jacarandá, caríssimo por sinal.
Ao lado de uma
foto dez anos mais nova, seu perfil a descrevia como viúva ainda jovem,
querendo gozar a vida, em boa situação financeira. Obviamente não faltaram
respostas, querendo gozar a vida, em boa situação financeira. Obviamente não
faltaram respostas, candidatos do Arroio ao Chuí, de todos os tipos, que ela ia
descartando depois de trocar algumas mensagens. Estava encantada com tantos
assédios, já se haviam passado quarenta anos, estava distante desses afazeres
românticos ligados ao amor e à pquera. Depois de dois meses de procura ela viu
a foto de um candidato, sujeito ainda jovem, João Batista. Ficou pasma, meu
Deus! O sujeito era a cara do falecido quando mais jovem, incrível! Os mesmos
olhos fundos, a mesma testa com as entradas laterais, mesmo nariz, a boca
grande com dentes fortes, cabeleira preta, muita lisa, penteado para trás.
Entusiasmada,
respondeu logo, encontrar o que estava procurando, seu par perfeito, e
começaram um namoro eletrônico. No começo trocaram mensagens diárias, horas de
bate papo, depois com sua webcam e equipamento apropriado, se viam e se
falavam. Até a voz de João Batista lembrava a do falecido, grave, morna.
Todos os dias,
depois do almoço, dona Alda se dedicava a se produzir, maquiagem esmerada para
disfarçar as poucas imperfeições que o botox não escondera, vestido novo, joias
para conversar com João Batista, conversa esta, sempre às três horas da tarde,
que se prolongava até as cinco e meia.
Ele se dizia
médico cirurgião, estava sempre de branco, tirava plantão depois das dezenove
horas em vários hospitais, estava ocupado a noite, dormia de manhã, era
solteiro, mas pretendia se amarrar, procurava alguém, não queria uma mocinha de
cabeça oca, umas burras. Gostava de mulheres maduras.
Dona Alda estava
exultante, tirou o luto, voltou a sorrir, a frequentar o clube e as antigas
amizades. Era como se ela estivesse reconquistando o seu Dionísio, sem aquela
odiosa Janete para atrapalhar. Passaram a se encontrar em motéis, e ela tinha a
sensação que estava corneando o falecido, o velho Dionísio, e, quando ela ia encontra-lo
levava-lhe presentes e recebia um buquê de rosas vermelhas.
As amigas
estranharam. Depois dos anos negros de pranto, a viúva havia mudado da água
para o vinho, tinha um ar de felicidade estampada no rosto.
Pressionada, ela
contou seu envolvimento com João Batista, sua aventura cibernética, omitindo as
idas aos motéis. As amigas foram categóricas em adverti-la dos perigos desse
tipo de amizade e namoro. Ela retrucou, ela estava sendo sincera, abrira-se como
um libro expondo sua vida, sua solidão e tinha certeza de que ele era um homem
de caráter, não mentiria. Será? A dúvida ficou plantada na sua cabeça, os
homens são mentirosos, dissimulados, não tinha ela sido enganada pelo próprio
marido falecido?
Dona Alda achou
por bem investigar o candidato a marido. Procurou um profissional, detetive por
ofício, contratou-o para seguir João Batista quando eles saíssem do motel. Um
mês inteiro de investigação — ela tinha muita esperança que João Batista não
fosse falso com ela —, o detetive cobrara os olhos da cara, mas ela não queria
ter dúvidas.
Pobre dona Alda, o
relatório do detetive decepcionou-a — João Batista não era médico, trabalhava
mesmo a noite, era porteiro de uma boate na Rua Rego Freitas, onde recebia
gorjetas. Era amigado com uma vendedora da C&A, de nome Jandira, tinha uma
filha, até o computador que ele usava era da tal Jandira e ele usava-o quando ela
estava n batente vendendo camisetas.
O sofrido coração
da viúva quase não aguentou o baque. A decepção foi imensa. A cópia do seu
amado, porém traidor Dionísio, não passava de um malandro em busca de uma
mulher rica e vulnerável. Ela havia sido uma babaca, havia aberto seu coração
para ele, entregado seu corpo. O que ela via era um Dionísio em carne e osso,
zombando dela, enganando-a outra vez, fazendo-a de boba.
Sua frustação foi
seguida de uma intensa raiva e repugnância. Quietametne se produziu,
maquiou-se, abriu o computador e deletou João Batista, com um vestido novo
estampado de flores miúdas, óculos escuros chegou às três horas da tarde no
endereço dado pelo investigador, tocou a campainha, uma casa geminada, sem
jardim, na Vila Clementino. João Batista abriu a porta boquiaberto, e dona Alda
descarregou o revólver do falecido nele, matando Dionísio para sempre e saiu.
Entrando devagar no carro.
Afinal todos os
Dionísios não passavam de desalmados.
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