sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Conto infantil


Para todas as mamães e todos os filhos do coração:



12A e Sua Mania
 
I — 12A e Sua Mania

 

Ele era uma fofura. E tinha duas asinhas quase transparentes, que batiam nervosas e tremelicantes, como um pequeno elfo. Não se podia deixar de gostar dele. Quase todo peladinho cheio de curvas e covinhas, só vestia uma fraldinha muito branca, tampando os necessários. Era covinha no queixo, covinha na bochecha, covinha nos joelhos, covinha nos cotovelos, covinhas nas mãos, covinhas que não acabavam mais. Lá estava ele, todo covinhas, sentado na ponta de uma nuvem muito branca e fofa, uma potente luneta nas mãozinhas, fazendo uma força danada para não deixar que ela caísse, procurando alguma coisa lá embaixo na terra. E focalizava, virava, procurava, mirava a luneta numa direção, olhava pra esquerda, pra direita, nervozinho porque não estava encontrando o que queria, resmungando como se fosse um velho ranzinza. E, de repente, parou num ponto, focalizou, ajeitou-se melhor para não derrubar a luneta e ficou de pé, bem na pontinha da nuvem. Quando se levantou o número 12A ficou bem visível, carimbada no traseiro.

— Achei! Achei! Ela! Como é linda! Nossa, já está ficando meio velha, está com alguns fios de cabelos brancos!

E ali ficou, rindo sozinho, feliz com o que estava vendo através daquela luneta, tão contente que não percebeu o outro vindo em sua direção. O outro era bem parecido com ele, só o número carimbado no traseiro era outro: 586 376F.

— 12A! 12A! chamou. Aí está você outra vez. O superintendente está uma fera, procurando você por todo lado. Aí eu pensei: aposto que ele está na ponta de uma nuvem espiando terra com uma luneta. Não deu outra. Você não enjoa de ficar espiando?

A nem deu muita confiança, nem parou de fazer o que mais gostava, espionar sua á embaixo na terra. Sem nem mesmo dar uma olhadela para trás, respondeu animado:

— Oi, amigo, claro que não enjoo. Eu vigio minha mãe há tanto tempo! Fui um dos primeiros que chegou nesta estação de distribuição humana. Veja o seu número e olhe o meu. Já estou cansado. Não chega a minha vez! Minha mãe está ficando velha, meu pai também ...

586 376 F olhou o para o 12 A com pena e ficou calado por uns instantes, observando o jeitão dele. Todos os que viviam na estação de distribuição humana conheciam a história daquela criaturinha que queria ir lá para baixo, há tanto tempo. desejando, que nem dava pra contar.

12 A tirou a luneta dos olhos, virou-se, fincou a mãozinha gorducha na cintura, acudiu a cabecinha quase careca, fez um muchocho e disse:

— Olha aqui, será que vão esperar eu criar uma barba até o chão pra me mandarem pra baixo? Ah! Ah! Ah! Vai ser gozado! Um bebê barbudo, onde já se viu isto?

— Bem, companheiro, disse o outro, o superintendente está procurando você. Se ele souber que você está aqui na ponta de uma nuvem, vai ficar muito zangado.

— Que fique! Que fique! Já estou cansado de ser bonzinho, sempre esperando a vez sem ela nunca chegar.

— Por que você olha sempre lá embaixo? Eu nunca olhei...

— Pois eu olho há muito tempo. Vi minha mãe nascer, ficar menina. Era uma gatinha, toda dengosa. Depois ficou moça e foi morar com meu pai. Meu pai é legal, ele andava de moto, levava minha mãe na garupa ... Os dois moram juntos há muito tempo e eu ... nada. Por aqui. O que eles estão esperando? Já estão ficando velhos e até tem cabelos brancos! Será que eles não desconfiam que eu estou aqui?

— Sabe ...

12 A não deixou o outro falar. Toda vez que falava no assunto (e, coitado, não tinha outro), era um chato. E quem estivesse por perto, se não conseguisse fugir, tinha que encarar toda sua lenga-lenga já mais conhecida e sabida.

— Minha mãe é linda. Tem os cabelos lisos. Tem os dentes da frente meio separados, uma covinha bem aqui na bochecha direita, quando ri, uma pinta do lado do olho esquerdo ...

— Puxa, você ...

— ... Meu pai é legal, tá meio barrigudo agora, também toma uma cerveja todo dia, mas quando ri faz ho, ho, ho, grosso. Não dá pra ouvir daqui, mas aposto que o ho, ho, ho dele é grosso.

— O superin ...

— ... E os dois estão sempre juntos ...

— 12 A! 12 A! A voz do superintendente chegou alta e sonora fazendo 12 A parar no meio do que estava dizendo.

586 376 F disse:

— Tô querendo avisar que o cara vinha vindo, mas você não parava de falar ...

Um velho alto, bem barbeado, corado como uma maçã, com um camisolão branco bordado com uns sinais que só ele sabia o que significavam, andando devagar, pisando nas nuvens com cuidado, os pés meio enterrados nelas, foi se aproximando e já dizendo:

— 12 A quantas vezes eu já falei que é perigoso ficar na ponta de nuvem? Se você cair, babau! E daí? Como explico isto pro computador? Ele é computador, não tem sentimentos, não quer saber se você sumiu ou não. Você está no computador como 12A, e de lá não pode sair. Vamos, cuidado, ande devagarinho para cá. Vocês dois. E você, 586 376 F vai também pegar a mania do 12A?

— Senhor, respondeu 586 376 F, eu só vim avisar o 12A que ...

— Ba, ba, ba, ba! Chega! Não perguntei nada!

— Perguntou, senhor, respondeu ele.

— Se eu perguntei não era para responder, retrucou o velho.

o superintendente era broca. Estava zangado mesmo, mas era o chefão e sua função era fazer com que o regulamento fosse respeitado e tudo corresse normalmente naquela estação de distribuição de bebês humanos para a terra. E, como sua função era esta, não podia deixar de tomar conta dos que estavam sob sua tutela.

12A esperou o velho despejar toda sua catilinária de sempre, já estava acostumado, era reincidente, sempre desrespeitando o artigo 0359 do regulamento, que dizia que ninguém poderia sair das instalações, que era proibido andar sobre as nuvens, quanto mais ficar na ponta delas.

— Você pegou a luneta outra vez, arrematou o velho.

— Precisava dela, senhor, queria ver minha mãe, disse 12 A.

— Está bem, respondeu o velho, vamos para a sala de despachos. Chegou sua vez.

Graças a Deu ficarei livre de você e de suas manias. Você vai ser enviado à terra.

Quando ouviu isto, 12 A ficou ali parado, incapaz de se mover, até suas azinhas pararam de bater. Primeiro ficou imóvel, de boquinha aberta, olhos muito arregalados fitando o velho superintendente. Depois sorriu de orelha a orelha, um sorriso de felicidade enorme numa boquinha rosada e sem dentes. E correu para o velho, abraçou as pernas dele se enfiando no meio do camisolão, dizendo obrigado, obrigado, o velho quase caindo com aquela coisinha fofa grudada nele, rindo também, esquecendo a zanga.

— Chega! Chega! Chegou sua vez, só isto. Vamos lá para dentro. 586 376 F seguiu os dois, dizendo:

— Puxa amigão, vamos sentir saudades de você. Tomara que a gente se encontre lá embaixo. Que bom!

 

11 — 12A é enviado para a terra

 

Os três chegaram nas instalações da estação e o velho superintendente foi falando e mandando:

— 586 376 F vá para o seu departamento. 12A siga-me.

— Adeus 12 A, gritou o amigo. Você finalmente vai encontrar sua mãe.

— Adeus, amigo, e o meu pai também, respondeu 12A abanando as mãozinhas e seguindo com passinhos curtos e asas tremelicantes os passos largos do velho, ziguezagueando pelos corredores das instalações. O velho parou em frente de uma porta onde estava escrito com tinta prateada — Seção de Despacho — e colocou a mão vem em cima do "cho". Um ruído parecido com trique-trique-trique apareceu no ar e a porta se abriu deslizando sem ruído.

— Vamos, vamos, entre 12 A, falou o velho. Entre, tire suas asinhas e guarde as duas na prateleira à esquerda.

12 A entrou numa sala nua, sem nem uma simples cadeira, apenas uma prateleira baixinha, cheia de asinhas, uma em cima da outra. Com cuidado, desatarraxou as suas e colocou uma em cima da outra na pilha. Não ia mais precisar delas.

— Pronto, senhor, disse.

— Ótimo, respondeu o velho. Agora pise bem no meio da sala, aqui junto comigo.

Um cilindro transparente, como se fosse de vidro, foi descendo lentamente do teto, até chegar ao chão e deixar os dois presos dentro dele. Uma luz forte encheu o cilindro levando-os para o andar de cima, uma outra sala, enorme, cheia de instrumentos complicados, com luzes coloridas se acendendo e se apagando, piscando como doidas. Pessoas parecidas com o superintendente, umas mais jovens, outras mais velhas ainda, todas vestindo camisolões brancos com símbolos bordados, ali se moviam atarefadas.

— Chegamos, disse o velho para um jovem. Já programaram o despacho do 12A?

— Está tudo pronto, senhor, respondeu o jovem. As coordenadas foram calculadas.

É só enfiá-lo no tubo de lançamento e digitar o número do código.

— Bem, 12A Obedeça as ordens e boa sorte.

— Adeus, senhor, nunca me esquecerei do tempo que passei aqui, a bondade de todos, a paciência que tiveram comigo e com as minhas desobediências.

— Adeus 12A. Você vai se esquecer de tudo, faz parte do jogo. A medida que você aprender as coisas da terra, você irá esquecendo o que tem na sua cabecinha, o que aconteceu aqui na estação, e de nós também. É assim que funciona.

12A foi levado pela mão até o tudo de lançamento, ajeitado dentro dele e lá ficou ansioso, esperando. Aos poucos, ele percebeu, ia sumindo, sumindo, e se transformando numa bolinha de luz, muito pequena mas muito brilhante.

— Que coisa mais esquisita, pensou. É ver para crer. A gente vira uma estrelinha para ser mandado pra terra! Que barato!

Começou a pular como um doido, de um lado para o outro, como se ainda tivesse pernas, uma minúscula bolinha de luz endoidecida.

— Não se mexa 12 A, falou um dos operadores.

— Não sei por que todos fazem isso, resmungou outro.

— Fique imóvel para não atrapalhar, vamos digitar, comandou outro de camisolão.

12A parou de se agitar, fechou os olhinhos, isto é, teve a sensação de estar fechando os olhinhos e esperou.

Um dos operadores do computador digitou o código e o relógio digital começou a contagem regressiva. Alguém gritou:

— Parem! Parem o processo! Tempestade cósmica se aproximando rapidamente.

Superventos cósmicos vão interferir no processo de lançamento!

— Não dá mais, gritou o operador, a contagem regressiva já está no final.

— Meu Deus!

O ejetor disparou a luzinha 12A que caiu bem no meio da tempestade. Foi jogado para cima para baixo, para a direita e para a esquerda, chacoalhando, balançando. Estava apavorado, não sabia o que estava acontecendo, achando tudo muito estranho, mais estranho do que pensava que seria.

Depois de algum tempo, saiu num túnel e foi rolando, rolando, até que finalmente sentiu-se acomodado num lugar quentinho e confortável.

— Ufa! Pensou consegui chegar em algum lugar, e um lugar muito escuro. Sei que virei uma luzinha e não tenho olhos, mas sei que é escuro. Não posso ver nada! Nem sei onde estou!

Era verdade. 12A não sabia mesmo onde estava. E, como estava sozinho, sem ninguém para poder lhe dizer alguma coisa, e muito cansado, resolveu descansar, dormir e esperar. Mesmo sendo uma luzinha, ele ficou sonolento, entorpecido, molenga e mergulhou numa espécie de sono reparador. Afinal, quem sabe se este não era o modo de chegar até sua mãe, com sua covinha, seus dentes separados e sua pinta do lado do olho esquerdo?




III — 12 A chega ao mundo cruel

 

Já fazia algum tempo que ele estava aninhado naquele lugar escuro, entorpecido e sonolento, quando foi sacudido pelo som de uma voz de mulher. Não era suave, nem tão pouco doce, mas estridente e até desagradável. No princípio, não conseguiu descobrir o que ela dizia e gritava.

— Minhas faculdades auditivas estão se recuperando, pensou satisfeito. Poxa, a gente deveria ser melhor preparado lá em cima pra enfrentar a entrada no mundo. Mas ainda não consigo ver nadinha.

Ficou atento, e as palavras daquela voz de mulher foram formando sentido e tendo um significado.

— Não quero esta criança! Não quero ter este bebê!

E a voz começou a chorar alto, fazendo um barulho danado. 12A ficou abobalhado, sentiu até uma leve tontura.

— Será a voz de minha mãe? Não pode ser, não pode ser! Ela não me quer! Tanto tempo fiquei esperando e ela não me quer! É de desanimar qualquer um.

12A ficou abatido, desolado, muito triste, com a moral abaixo de zero. Agora ele não era mais aquela criaturinha com duas asinhas tremelicantes que fugia e mergulhava os pezinhos na fofura das nuvens para espionar sua mãe. Ele sabia que estava sendo fabricado, aninhado dentro dela e, antes de chegar de verdade, pra valer, no mundo, já estava sendo rejeitado. Quis até chorar mas seus olhinhos eram dois risquinhos, nem estavam prontos ainda. Quis fugir dali, mas seus braços eram dois cotocos, que não davam nem para esfregar os risquinhos dos olhos e suas pernas nem eram pernas ainda. Só podia mesmo era curtir uma tremenda fossa, uma grande tristeza, um desânimo sem fim, enquanto percebia os sons que vinham de fora, tentando adivinhar o que poderia estar acontecendo, e lembrando-se dos amigos que deixara para trás na estação de distribuição de bebês humanos.

E o que conseguia perceber era desanimador. Vozes iradas e exaltadas, brigas e gritaria e muito choro.

A mulher não o queria, era nervosa e briguenta, sua voz soava como um cometa desafinado e estridente dizendo coisas desagradáveis. As outras vozes que ele ouvia também não pareciam muito agradáveis. O mundo lá fora parecia ser um lugar ameaçador e feroz.

Enquanto o tempo ia se passando, 12A ia se ocupando em sentir e observar seu corpinho se desenvolvendo. Ficou feliz quando viu que iria ter pernas e braços com mãos e pés perfeitos, quando sentiu que sua boquinha estava no lugar em que sempre estivera e que estava completo.

— Vou ser um menino, um bebê menino, e, tudo o que eu tinha lá em cima está certinho e prontinho nos seus devidos lugares. Pena que minha mãe e meu pai briguem tanto e não me queiram.

De fato, ele conseguia descobrir tudo o que se passava e não era nada animador.

— Já sei, pensou, não vou sair daqui. Se aquela gente não me quer, não vou sair daqui. Se eles botarem a mão em mim, coitado de mim. Vou ficar bem quietinho aqui, agora que já sou como eu era. Alguém lá em cima, o superintendente, é isso aí, vai tomar uma providência e virão me buscar. Daqui não saio, só pra voltar lá pra cima!

E estava firme no propósito de permanecer onde estava. Mas não conseguiu. Um dia se sentiu empurrado. Ficou apavorado:

— Não adianta me empurrar. Daqui não vou sair: Só com o superintendente. Quero voltar lá pra cima.

De nada adiantou ele ficar querendo, querendo, querendo. Foi empurrado, espremido e puxado contra sua vontade, em direção ao mundo e à vida terrestre. Sentiu um frio imenso quando se viu pendurado pelos pés, seguro por uma grande mão estranha.

— Aqui estou, mundo cruel, gritou quando sentiu uma palmada forte no traseiro.

— Ele chora forte, ouviu uma voz dizendo. É um menino.

— Mostre o bebê para a mãe, ouviu a mesma voz dizer.

Quando ouviu isto 12A abriu os olhos e forçou sua vista, mesmo com toda a luminosidade, mesmo vendo tudo embaçado, em direção da mulher deitada, para onde estava sendo levado. Era moça, morena, muito jovem, cabelos bem crespos. Ele não conseguiu enxergar direito. Via tudo meio nublado, como se uma névoa rarefeita estivesse na sua frente. Procurou a pinta do lado do olho esquerdo e não achou nada. Foi lavado para bem perto dela e pode ver a cabeleira crespa, uma boca de lábios apertados e horrorizado percebeu a verdade.

— Não é minha mãe, gritou, esta não é minha mãe!

— Que bebê chorão, disse a moça. Pode levar embora. Não quero nem ver.

12 A ficou aliviado.

— Ainda bem, ainda bem que ela não me quer, pensou. Assim posso encontrar minha mãe.

— Parou de chorar, disse uma voz. Vou levá-lo para o berçário.




IV — 12 A encontra Gatinha

 

No terceiro dia, já enxergando melhor, 12 A acordou e ficou pensando nas palavras do superintendente, quando havia se despedido dele na estação de lançamento: "A medida em que você aprender as coisa da terra, irá esquecendo o que tem em sua cabecinha ... ".

Viu, com horror, que já sabia o que era uma mamadeira, e que já conhecia a moça que o alimentava. Também sabia que, quando queria falar com ela, apenas gritava e chorava, não conseguindo sequer pronunciar uma palavra.

— Assim não dá! Como posso dizer a esta moça tão boazinha que preciso procurar e encontrar minha mãe? Ela não me entende. Assim não dá!

Quando tentou se levantar para andar e fugir dali e ir ao encontro dela, só movia desajeitadamente os braços e as pernas não conseguindo nem levantar a cabeça.

— Como fiquei fraco, chorava ele.

— Este nené não para quieto, queixou-se a moça que cuidava dele embrulhando o coitado bem apertado num cobertorzinho desbotado, deixando-o sem movimentos, como um boneco.

Ele tentou dizer que só queria sair dali, mas o que fez foi berrar alto. — Calma, disse a moça. Hoje você vai embora, vai sair daqui.

12 A suspirou aliviado.

— Vou embora, vão me levar para minha mãe, pensou. Vou tratar de fechar os olhos e dormir um soninho, puxa, como os bebês são dorminhocos. Vivo morrendo de sono, mas vou dormir só um pouquinho e quando eu acordar vou estar com minha mãe, a coitada deve estar tão aflita atrás de mim, sem saber onde estou ...

E mergulhou numa gostosa soneca, tão gostosa que ele nem percebeu quando foi carregado e levado para outra casa, colocado numa caminha ao lado de outro bebê. Só quando acordou e deu um bocejo comprido fazendo uma careta torta e engraçada, tentando livrar os braços e as pernas apertadas como trouxinha de cobertor é que percebeu que não estava sozinho.

— Quem é você? perguntou ao bebê ao lado dele.

— Ainda não ganhei um nome, respondeu o bebê. Eu tinha um número mas não me lembro bem qual era.

— Você chegou há muito tempo?

— Hum! Um tempinho.

— É por isso que esqueceu o seu número. Eu ainda não esqueci o meu. Sou 12A.

12A estava feliz por ter companhia. Agradecia a Deus por poder conversar com alguém, trocar ideias.

— Ainda bem que os bebês se entendem e eu tenho com quem conversar.

— Você é menino? perguntou.

— Não, bebê menina.

— Ah! Uma gatinha. Até que sou sortudo. Vou chamar você de Gatinha, tá?

— Tá bem. Você é 12A, não é?

— Ainda me lembro do meu número. Não posso me esquecer de nada sabe, gatinha.

Preciso achar minha mãe. Ela deve estar feito doida por aí me procurando e eu aqui, preso como uma trouxa de roupa.

— E como você sabe quem é sua mãe?

12A desfiou outra vez toda sua história. Quem diria que mesmo sem suas asinhas e tão longe da estação de bebês ele teria a oportunidade de achar alguém para ouvi-lo? Pois é. Ele achou e Gatinha até dormiu antes dele acabar de contar tudinho, muito feliz por não ter esquecido nada, se lembrar de todos os detalhes.

— ... então tenho que sair daqui o quanto antes ...

— Quietinho nené, disse uma freira enfiando uma mamadeira na boca de 12A.

Você está gritando tão alto que acordou o berçário inteiro. O mamá já chegou.

12 A começou a sugar o leito pelo bico da mamadeira, enchendo a barriguinha com um quentinho gostoso, mas não deixou de pensar:

— Ninguém entende a gente mesmo. Os bebês, senão aprendem logo a falar estão ferrados. Eu aqui, contando minhas desventuras para a Gatinha e a madama pensando que estou com fome. Bem que isto aqui é gostoso, lá isto é.

 

V — 12A começa a aprender as coisas do mundo

 

Gatinha e 12A tomaram-se bons amigos, sempre conversando, transformando o berçário num inferno. Para as freiras os dois eram dois berradores e chorões que só davam alguma paz quando dormiam.

12A queria desesperadamente sair dali. Esperneava, se desembrulhava, dava chutes no ar com as perninhas que não podiam andar, socos no ar procurando agarrar alguma coisa em que se firmar.

— Não consigo, Gatinha. Não consigo nem sentar, quanto mais ficar de pé. E como poderei andar? choramingava ele desesperado.

— Acho que com o tempo, responde Gatinha. Eu não tenho pressa.

— Mas eu não posso esperar o tempo passar. Não posso esquecer...

Cada dia que se passava ele aprendia alguma coisa nova: a hora da mamadeira, o sorriso da freira que cuidava dele, a gostosura de uma fraldinha seca, a luz do dia entrando pela janela, os passos das pessoas que passavam pelo berçário. E, a medida que ia aprendendo a viver, conhecendo as pessoas, uma parte do que ele tinha sido sumia de sua memória. Já não se lembrava de suas asinhas, do velho superintendente que vestia um camisolão branco, das nuvens fofas por onde tinha andado tão perigosamente, dos companheiros que com ele haviam convivido lá em cima, das instalações de onde viera.

Um dia ficou assustado:

— Gatinha, como é o número? Não tenho nome e não me lembro do meu número.

— Você me disse que é 12A. Eu falei que você também ia esquecer ...

A única coisa que ainda estava muito nítida em sua cabecinha, bem lá no fundo de sua memória era o rosto de sua mãe. Repetia para si mesmo, toda hora "ela tem cabelos lisos, estão ficando brancos, uma pinta do lado esquerdo perto do olho, os dentes separados, com medo de esquecer, com medo de perder a mãe para sempre apagando-a de sua memória. Na sua cabecinha, ele achava que quanto mais repetisse, mais difícil seria esquece-la e teria assim chance de encontrá-la.

— Sabe 12A, você é um chato, dizia Gatinha. Por que não desiste? Mas ele não desistia e pedia:

— Se eu me esquecer dela, você me conta Gatinha? Você já sabe como ela é, pode me ajudar se eu me esquecer, promete?

— Tá bem, prometo.

 

 

VI — 12A — Gatinha vai embora

 

Uma novidade aconteceu no berçário. Pessoas estranhas entravam para ver os bebês, ficavam olhando para eles durante algum tempo. A novidade se espalhou num berreiro alto e terrível, eram candidatos a pais. Muitos ficaram contentes e começaram a praticar gracinhas e gu-gus para impressioná-los. Foi assim que Gatinha foi embora. Um casal apareceu por lá, como quem não quer nada, olhou para ela, voltou uma segunda vez e carregaram-na. Ela gritou:

— Adeus 12 A, acho que nunca mais vou ver você. Acho que vou morar com eles.

— Adeus Gatinha, um dia a gente se encontra e se casa.

Desolado ele ficou ali sozinho, agora sem ninguém para ajudá-lo. Chorou muito e nenhum outro bebê foi colocado ao lugar de Gatinha. Ela fazia muita falta, com sua paciência sem fim para ouvir seus choramingos, para ajudá-lo a não esquecer.

— Eu e Deus, pensou 12A. Não tenho com quem conversar, não tenho ninguém para me ajudar a lembrar. Pena que os bebês só conversam com outros bebês. Mas mesmo assim, não posso desistir e ficarei repetindo para mim mesmo para não esquecer minha mãe, até minhas pernas ficarem fortes para eu poder sair daqui correndo até a casa dela.

— Eh, fofinho, você perdeu a amiguinha. Agora está mais quietinho, parece que se acostumou com a gente. Não está gritando mais, só esperneia muito, está ficando um bebê muito bonzinho. Logo vai achar um lar, uma casa para crescer... Está todo desagasalhado.

Também não para quieto, não é fofinho? Pois vou fazer um embrulhinho de você, tão apertadinho e bem feito que quero ver você escapar.

12A não queria achar um lar, uma casa para crescer, queria apenas encontrar o que estava esperando há tanto tempo. Ali ficou ele, uma trouxinha apertada, sem poder se mexer, só a cabecinha virando devagar de um lado para o outro, bocejando e fazendo caretas, fazendo uma força danada para se livrar daqueles panos, ficando vermelhinho de tanta força que fazia, e repetindo só para ele mesmo minha mãe tem cabelos lisos com alguns fios brancos, uma pinta no lado esquerdo bem perto do olho, os dentes separados e covinha quando ri. Tinha um medo danado de dormir, tirar suas sonequinhas tão gostosas, principalmente quando estava sequinho e com a barriguinha confortavelmente cheia, tinha medo de que, durante o sono, se apagasse o resto de lembranças ainda dentro de sua mente.

Três dias já se haviam passado desde que Gatinha se fora. Vários casais tinham entrado no berçário e o toque-toques dos passos estranhos chegavam até os ouvidos dos bebês, que ficavam alvoroçados, fazendo charminho, abrindo a boquinha e fazendo biquinho, pensando assim poder atrair as atenções dos candidatos a pai e mãe. Só 12A fechava os olhos bem apertados, não querendo nem vê-las, dizendo para si mesmo não, não, não, não quero ir com vocês, e dava um suspiro de alívio quando ouvia os passos se afastarem do seu berço. Não procurava seduzi-los, como os outros bebês, não procurava atrair os olhares, não queria ir embora para um lar. Fazia caretas tortas e rezava para que eles o deixassem em paz. E, quando os passos se afastavam os suspiros de alívio se transformavam em soluços, hic, hic, hic, que desespero, não passavam mesmo abrindo os olhos para ver que não havia lá em cima, parecendo fazer parte do teto, uns rostos enormes, curiosos, espiando, examinando.

Ficava aliviado, mas chorava de tristeza, de saudades da Gatinha, sentindo-se só e desamparado. Sabia que já conhecia muita coisa do mundo em que estava vivendo e havia se esquecido quase tudo que trouxera consigo na memória. Se não fizesse alguma coisa, se não acontecesse um milagre, como conseguir andar, mesmo cambaleando, ele precisava dar um jeito, para conseguir encontrar sua casa e seu lar. Será? Já nem se lembrava da casa que via lá de cima, será que via mesmo uma casa, ou era um sonho, um produto da imaginação de um bebê dorminhoco? Estava tudo tão nebuloso, tão vago, tão distante que mais parecia um sonho, uma fantasia.

— Sou um bebê cansado, pensou. Cansado mesmo. Um bebê desanimado. Só quero dormir, dormir, dormir.

Mergulhou numa soneca gostosa, mesmo não querendo se desligar, e acordar alheio a tudo e nunca mais se lembrar do rosto da mãe.

Seu soninho profundo e gostoso foi interrompido por vozes e passos, toque, toques estranhos, não era o andar das freiras. Outra vez, outra vez, lá vinha gente espiar o pequenino, examiná-lo e, talvez, levá-lo. Fechou os olhos com força, como sempre fazia, não querendo nem ver, nem fazer gracinhas e gu-gus para não seduzir e não conquistar. Não os queria e não tinha meios de se comunicar, pedir que o deixassem em paz, explicar sua situação, o resto nebuloso que tinha na memória.

Ficou esperando, pensando no pouco que conseguia pensar, fazendo caretas e sentindo a presença de alguém olhando para ele. Começou a abrir os olhos devagar para ver quem o olhava tão demoradamente querendo gritar — Vai embora! Quero minha mãe! Abrindo bem os olhos viu uma mulher com uma covinha do lado, rindo para ele, uma pinta no olho esquerdo, os dentes da frente separados e alguns cabelos brancos. E ouviu a voz dela, tema e meiga dizendo:

— Encontrei o meu filhinho!

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