Para todas as mamães e todos os filhos do coração:
12A e Sua Mania
I — 12A e Sua Mania
Ele era uma fofura. E tinha duas asinhas quase transparentes,
que batiam nervosas e tremelicantes, como um pequeno elfo. Não se podia deixar
de gostar dele. Quase todo peladinho cheio de curvas e covinhas, só vestia uma
fraldinha muito branca, tampando os necessários. Era covinha no queixo, covinha
na bochecha, covinha nos joelhos, covinha nos cotovelos, covinhas nas mãos,
covinhas que não acabavam mais. Lá estava ele, todo covinhas, sentado na ponta
de uma nuvem muito branca e fofa, uma potente luneta nas mãozinhas, fazendo uma
força danada para não deixar que ela caísse, procurando alguma coisa lá embaixo
na terra. E focalizava, virava, procurava, mirava a luneta numa direção, olhava
pra esquerda, pra direita, nervozinho porque não estava encontrando o que
queria, resmungando como se fosse um velho ranzinza. E, de repente, parou num
ponto, focalizou, ajeitou-se melhor para não derrubar a luneta e ficou de pé,
bem na pontinha da nuvem. Quando se levantou o número 12A ficou bem visível, carimbada
no traseiro.
— Achei! Achei! Ela! Como é
linda! Nossa, já está ficando meio velha, está com alguns fios de
cabelos brancos!
E ali ficou, rindo sozinho, feliz com o que estava vendo
através daquela luneta, tão contente que não percebeu o outro vindo em sua
direção. O outro era bem parecido com ele, só o número carimbado no traseiro
era outro: 586 376F.
— 12A! 12A! chamou. Aí está
você outra vez. O superintendente está uma fera, procurando você por todo lado.
Aí eu pensei: aposto que ele está na ponta de uma nuvem espiando terra com uma
luneta. Não deu outra. Você não enjoa de ficar espiando?
A nem deu muita confiança, nem
parou de fazer o que mais gostava, espionar sua á embaixo na terra. Sem nem
mesmo dar uma olhadela para trás, respondeu animado:
— Oi, amigo, claro que não
enjoo. Eu vigio minha mãe há tanto tempo! Fui um dos primeiros que chegou nesta
estação de distribuição humana. Veja o seu número e olhe o meu. Já estou
cansado. Não chega a minha vez! Minha mãe está ficando velha, meu pai também
...
586 376 F olhou o para o 12 A
com pena e ficou calado por uns instantes, observando o jeitão dele. Todos os
que viviam na estação de distribuição humana conheciam a história daquela
criaturinha que queria ir lá para baixo, há tanto tempo. desejando, que nem
dava pra contar.
12 A tirou a luneta dos olhos,
virou-se, fincou a mãozinha gorducha na cintura, acudiu a cabecinha quase
careca, fez um muchocho e disse:
— Olha aqui, será que vão
esperar eu criar uma barba até o chão pra me mandarem pra baixo? Ah! Ah! Ah!
Vai ser gozado! Um bebê barbudo, onde já se viu isto?
— Bem, companheiro, disse o
outro, o superintendente está procurando você. Se ele souber que você está aqui
na ponta de uma nuvem, vai ficar muito zangado.
— Que fique! Que fique! Já
estou cansado de ser bonzinho, sempre esperando a vez sem ela nunca chegar.
— Por que você olha sempre lá
embaixo? Eu nunca olhei...
— Pois eu olho há muito tempo.
Vi minha mãe nascer, ficar menina. Era uma gatinha, toda dengosa. Depois ficou
moça e foi morar com meu pai. Meu pai é legal, ele andava de moto, levava minha
mãe na garupa ... Os dois moram juntos há muito tempo e eu ... nada. Por aqui.
O que eles estão esperando? Já estão ficando velhos e até tem cabelos brancos!
Será que eles não desconfiam que eu estou aqui?
— Sabe ...
12 A não deixou o outro falar.
Toda vez que falava no assunto (e, coitado, não tinha outro), era um chato. E
quem estivesse por perto, se não conseguisse fugir, tinha que encarar toda sua
lenga-lenga já mais conhecida e sabida.
— Minha mãe é linda. Tem os
cabelos lisos. Tem os dentes da frente meio separados, uma covinha bem aqui na
bochecha direita, quando ri, uma pinta do lado do olho esquerdo ...
— Puxa, você ...
— ... Meu pai é legal, tá meio
barrigudo agora, também toma uma cerveja todo dia, mas quando ri faz ho, ho,
ho, grosso. Não dá pra ouvir daqui, mas aposto que o ho, ho, ho dele é grosso.
— O superin ...
— ... E os dois estão sempre
juntos ...
— 12 A! 12 A! A voz do
superintendente chegou alta e sonora fazendo 12 A parar no meio do que estava
dizendo.
586 376 F disse:
— Tô querendo avisar que o
cara vinha vindo, mas você não parava de falar ...
Um velho alto, bem barbeado,
corado como uma maçã, com um camisolão branco bordado com uns sinais que só ele
sabia o que significavam, andando devagar, pisando nas nuvens com cuidado, os
pés meio enterrados nelas, foi se aproximando e já dizendo:
— 12 A quantas vezes eu já
falei que é perigoso ficar na ponta de nuvem? Se você cair, babau! E daí? Como
explico isto pro computador? Ele é computador, não tem sentimentos, não quer
saber se você sumiu ou não. Você está no computador como 12A, e de lá não pode
sair. Vamos, cuidado, ande devagarinho para cá. Vocês dois. E você, 586 376 F
vai também pegar a mania do 12A?
— Senhor, respondeu 586 376 F,
eu só vim avisar o 12A que ...
— Ba, ba, ba, ba! Chega! Não
perguntei nada!
— Perguntou, senhor, respondeu
ele.
— Se eu perguntei não era para
responder, retrucou o velho.
o superintendente era broca.
Estava zangado mesmo, mas era o chefão e sua função era fazer com que o
regulamento fosse respeitado e tudo corresse normalmente naquela estação de
distribuição de bebês humanos para a terra. E, como sua função era esta, não
podia deixar de tomar conta dos que estavam sob sua tutela.
12A esperou o velho despejar
toda sua catilinária de sempre, já estava acostumado, era reincidente, sempre
desrespeitando o artigo 0359 do regulamento, que dizia que ninguém poderia sair
das instalações, que era proibido andar sobre as nuvens, quanto mais ficar na
ponta delas.
— Você pegou a luneta outra
vez, arrematou o velho.
— Precisava dela, senhor,
queria ver minha mãe, disse 12 A.
— Está bem, respondeu o velho,
vamos para a sala de despachos. Chegou sua vez.
Graças a Deu ficarei livre de
você e de suas manias. Você vai ser enviado à terra.
Quando ouviu isto, 12 A ficou
ali parado, incapaz de se mover, até suas azinhas pararam de bater. Primeiro
ficou imóvel, de boquinha aberta, olhos muito arregalados fitando o velho
superintendente. Depois sorriu de orelha a orelha, um sorriso de felicidade
enorme numa boquinha rosada e sem dentes. E correu para o velho, abraçou as
pernas dele se enfiando no meio do camisolão, dizendo obrigado, obrigado, o
velho quase caindo com aquela coisinha fofa grudada nele, rindo também,
esquecendo a zanga.
— Chega! Chega! Chegou sua
vez, só isto. Vamos lá para dentro. 586 376 F seguiu os dois, dizendo:
— Puxa amigão, vamos sentir
saudades de você. Tomara que a gente se encontre lá embaixo. Que bom!
11 — 12A
é enviado para a terra
Os três chegaram nas
instalações da estação e o velho superintendente foi falando e mandando:
— 586 376 F vá para o seu
departamento. 12A siga-me.
— Adeus 12 A, gritou o amigo.
Você finalmente vai encontrar sua mãe.
— Adeus, amigo, e o meu pai
também, respondeu 12A abanando as mãozinhas e seguindo com passinhos curtos e
asas tremelicantes os passos largos do velho, ziguezagueando pelos corredores
das instalações. O velho parou em frente de uma porta onde estava escrito com
tinta prateada — Seção de Despacho — e colocou a mão vem em cima do
"cho". Um ruído parecido com trique-trique-trique apareceu no ar e a
porta se abriu deslizando sem ruído.
— Vamos, vamos, entre 12 A,
falou o velho. Entre, tire suas asinhas e guarde as duas na prateleira à
esquerda.
12 A entrou numa sala nua, sem
nem uma simples cadeira, apenas uma prateleira baixinha, cheia de asinhas, uma
em cima da outra. Com cuidado, desatarraxou as suas e colocou uma em cima da
outra na pilha. Não ia mais precisar delas.
— Pronto, senhor, disse.
— Ótimo, respondeu o velho.
Agora pise bem no meio da sala, aqui junto comigo.
Um cilindro transparente, como
se fosse de vidro, foi descendo lentamente do teto, até chegar ao chão e deixar
os dois presos dentro dele. Uma luz forte encheu o cilindro levando-os para o
andar de cima, uma outra sala, enorme, cheia de instrumentos complicados, com
luzes coloridas se acendendo e se apagando, piscando como doidas. Pessoas
parecidas com o superintendente, umas mais jovens, outras mais velhas ainda,
todas vestindo camisolões brancos com símbolos bordados, ali se moviam
atarefadas.
— Chegamos, disse o velho para
um jovem. Já programaram o despacho do 12A?
— Está tudo pronto, senhor,
respondeu o jovem. As coordenadas foram calculadas.
É só enfiá-lo no tubo de
lançamento e digitar o número do código.
— Bem, 12A Obedeça as ordens e
boa sorte.
— Adeus, senhor, nunca me esquecerei do tempo que passei
aqui, a bondade de todos, a paciência que tiveram comigo e com as minhas
desobediências.
— Adeus 12A. Você vai se esquecer de tudo, faz parte do jogo.
A medida que você aprender as coisas da terra, você irá esquecendo o que tem na
sua cabecinha, o que aconteceu aqui na estação, e de nós também. É assim que
funciona.
12A foi levado pela mão até o tudo de lançamento, ajeitado
dentro dele e lá ficou ansioso, esperando. Aos poucos, ele percebeu, ia
sumindo, sumindo, e se transformando numa bolinha de luz, muito pequena mas
muito brilhante.
— Que coisa mais esquisita, pensou. É ver para crer. A gente
vira uma estrelinha para ser mandado pra terra! Que barato!
Começou a pular como um doido, de um lado para o outro, como
se ainda tivesse pernas, uma minúscula bolinha de luz endoidecida.
— Não se mexa 12 A, falou um dos operadores.
— Não sei por que todos fazem isso, resmungou outro.
— Fique imóvel para não atrapalhar, vamos digitar, comandou
outro de camisolão.
12A parou de se agitar, fechou os olhinhos, isto é, teve a
sensação de estar fechando os olhinhos e esperou.
Um dos operadores do computador digitou o código e o relógio
digital começou a contagem regressiva. Alguém gritou:
— Parem! Parem o processo! Tempestade cósmica se aproximando
rapidamente.
Superventos cósmicos vão interferir no processo de
lançamento!
— Não dá mais, gritou o
operador, a contagem regressiva já está no final.
— Meu Deus!
O ejetor disparou a luzinha 12A
que caiu bem no meio da tempestade. Foi jogado para cima para baixo, para a
direita e para a esquerda, chacoalhando, balançando. Estava apavorado, não
sabia o que estava acontecendo, achando tudo muito estranho, mais estranho do
que pensava que seria.
Depois de algum tempo, saiu
num túnel e foi rolando, rolando, até que finalmente sentiu-se acomodado num
lugar quentinho e confortável.
— Ufa! Pensou consegui chegar
em algum lugar, e um lugar muito escuro. Sei que virei uma luzinha e não tenho
olhos, mas sei que é escuro. Não posso ver nada! Nem sei onde estou!
Era verdade. 12A não sabia
mesmo onde estava. E, como estava sozinho, sem ninguém para poder lhe dizer
alguma coisa, e muito cansado, resolveu descansar, dormir e esperar. Mesmo
sendo uma luzinha, ele ficou sonolento, entorpecido, molenga e mergulhou numa
espécie de sono reparador. Afinal, quem sabe se este não era o modo de chegar
até sua mãe, com sua covinha, seus dentes separados e sua pinta do lado do olho
esquerdo?
III — 12
A chega ao mundo cruel
Já fazia algum tempo que ele
estava aninhado naquele lugar escuro, entorpecido e sonolento, quando foi
sacudido pelo som de uma voz de mulher. Não era suave, nem tão pouco doce, mas
estridente e até desagradável. No princípio, não conseguiu descobrir o que ela
dizia e gritava.
— Minhas faculdades auditivas
estão se recuperando, pensou satisfeito. Poxa, a gente deveria ser melhor
preparado lá em cima pra enfrentar a entrada no mundo. Mas ainda não consigo
ver nadinha.
Ficou atento, e as palavras
daquela voz de mulher foram formando sentido e tendo um significado.
— Não quero esta criança! Não
quero ter este bebê!
E a voz começou a chorar alto,
fazendo um barulho danado. 12A ficou abobalhado, sentiu até uma leve tontura.
— Será a voz de minha mãe? Não
pode ser, não pode ser! Ela não me quer! Tanto tempo fiquei esperando e ela não
me quer! É de desanimar qualquer um.
12A ficou abatido, desolado,
muito triste, com a moral abaixo de zero. Agora ele não era mais aquela
criaturinha com duas asinhas tremelicantes que fugia e mergulhava os pezinhos
na fofura das nuvens para espionar sua mãe. Ele sabia que estava sendo
fabricado, aninhado dentro dela e, antes de chegar de verdade, pra valer, no
mundo, já estava sendo rejeitado. Quis até chorar mas seus olhinhos eram dois
risquinhos, nem estavam prontos ainda. Quis fugir dali, mas seus braços eram
dois cotocos, que não davam nem para esfregar os risquinhos dos olhos e suas
pernas nem eram pernas ainda. Só podia mesmo era curtir uma tremenda fossa, uma
grande tristeza, um desânimo sem fim, enquanto percebia os sons que vinham de
fora, tentando adivinhar o que poderia estar acontecendo, e lembrando-se dos
amigos que deixara para trás na estação de distribuição de bebês humanos.
E o que conseguia perceber era
desanimador. Vozes iradas e exaltadas, brigas e gritaria e muito choro.
A mulher não o queria, era
nervosa e briguenta, sua voz soava como um cometa desafinado e estridente
dizendo coisas desagradáveis. As outras vozes que ele ouvia também não pareciam
muito agradáveis. O mundo lá fora parecia ser um lugar ameaçador e feroz.
Enquanto o tempo ia se
passando, 12A ia se ocupando em sentir e observar seu corpinho se
desenvolvendo. Ficou feliz quando viu que iria ter pernas e braços com mãos e
pés perfeitos, quando sentiu que sua boquinha estava no lugar em que sempre
estivera e que estava completo.
— Vou ser um menino, um bebê
menino, e, tudo o que eu tinha lá em cima está certinho e prontinho nos seus
devidos lugares. Pena que minha mãe e meu pai briguem tanto e não me queiram.
De fato, ele conseguia
descobrir tudo o que se passava e não era nada animador.
— Já sei, pensou, não vou sair
daqui. Se aquela gente não me quer, não vou sair daqui. Se eles botarem a mão
em mim, coitado de mim. Vou ficar bem quietinho aqui, agora que já sou como eu
era. Alguém lá em cima, o superintendente, é isso aí, vai tomar uma providência
e virão me buscar. Daqui não saio, só pra voltar lá pra cima!
E estava firme no propósito de
permanecer onde estava. Mas não conseguiu. Um dia se sentiu empurrado. Ficou
apavorado:
— Não adianta me empurrar.
Daqui não vou sair: Só com o superintendente. Quero voltar lá pra cima.
De nada adiantou ele ficar
querendo, querendo, querendo. Foi empurrado, espremido e puxado contra sua vontade,
em direção ao mundo e à vida terrestre. Sentiu um frio imenso quando se viu
pendurado pelos pés, seguro por uma grande mão estranha.
— Aqui estou, mundo cruel,
gritou quando sentiu uma palmada forte no traseiro.
— Ele chora forte, ouviu uma
voz dizendo. É um menino.
— Mostre o bebê para a mãe,
ouviu a mesma voz dizer.
Quando ouviu isto 12A abriu os
olhos e forçou sua vista, mesmo com toda a luminosidade, mesmo vendo tudo
embaçado, em direção da mulher deitada, para onde estava sendo levado. Era
moça, morena, muito jovem, cabelos bem crespos. Ele não conseguiu enxergar
direito. Via tudo meio nublado, como se uma névoa rarefeita estivesse na sua
frente. Procurou a pinta do lado do olho esquerdo e não achou nada. Foi lavado
para bem perto dela e pode ver a cabeleira crespa, uma boca de lábios apertados
e horrorizado percebeu a verdade.
— Não é minha mãe, gritou,
esta não é minha mãe!
— Que bebê chorão, disse a
moça. Pode levar embora. Não quero nem ver.
12 A ficou aliviado.
— Ainda bem, ainda bem que ela
não me quer, pensou. Assim posso encontrar minha mãe.
— Parou de chorar, disse uma
voz. Vou levá-lo para o berçário.
IV — 12
A encontra Gatinha
No terceiro dia, já enxergando
melhor, 12 A acordou e ficou pensando nas palavras do superintendente, quando
havia se despedido dele na estação de lançamento: "A medida em que você
aprender as coisa da terra, irá esquecendo o que tem em sua cabecinha ...
".
Viu, com horror, que já sabia
o que era uma mamadeira, e que já conhecia a moça que o alimentava. Também
sabia que, quando queria falar com ela, apenas gritava e chorava, não
conseguindo sequer pronunciar uma palavra.
— Assim não dá! Como posso
dizer a esta moça tão boazinha que preciso procurar e encontrar minha mãe? Ela
não me entende. Assim não dá!
Quando tentou se levantar para
andar e fugir dali e ir ao encontro dela, só movia desajeitadamente os braços e
as pernas não conseguindo nem levantar a cabeça.
— Como fiquei fraco, chorava
ele.
— Este nené não para quieto,
queixou-se a moça que cuidava dele embrulhando o coitado bem apertado num
cobertorzinho desbotado, deixando-o sem movimentos, como um boneco.
Ele tentou dizer que só queria
sair dali, mas o que fez foi berrar alto. — Calma, disse a moça. Hoje você vai
embora, vai sair daqui.
12 A suspirou aliviado.
— Vou embora, vão me levar
para minha mãe, pensou. Vou tratar de fechar os olhos e dormir um soninho,
puxa, como os bebês são dorminhocos. Vivo morrendo de sono, mas vou dormir só
um pouquinho e quando eu acordar vou estar com minha mãe, a coitada deve estar
tão aflita atrás de mim, sem saber onde estou ...
E mergulhou numa gostosa
soneca, tão gostosa que ele nem percebeu quando foi carregado e levado para
outra casa, colocado numa caminha ao lado de outro bebê. Só quando acordou e
deu um bocejo comprido fazendo uma careta torta e engraçada, tentando livrar os
braços e as pernas apertadas como trouxinha de cobertor é que percebeu que não estava
sozinho.
— Quem é você? perguntou ao
bebê ao lado dele.
— Ainda não ganhei um nome,
respondeu o bebê. Eu tinha um número mas não me lembro bem qual era.
— Você chegou há muito tempo?
— Hum! Um tempinho.
— É por isso que esqueceu o
seu número. Eu ainda não esqueci o meu. Sou 12A.
12A estava feliz por ter
companhia. Agradecia a Deus por poder conversar com alguém, trocar ideias.
— Ainda bem que os bebês se
entendem e eu tenho com quem conversar.
— Você é menino? perguntou.
— Não, bebê menina.
— Ah! Uma gatinha. Até que sou
sortudo. Vou chamar você de Gatinha, tá?
— Tá bem. Você é 12A, não é?
— Ainda me lembro do meu
número. Não posso me esquecer de nada sabe, gatinha.
Preciso achar minha mãe. Ela
deve estar feito doida por aí me procurando e eu aqui, preso como uma trouxa de
roupa.
— E como você sabe quem é sua
mãe?
12A desfiou outra vez toda sua
história. Quem diria que mesmo sem suas asinhas e tão longe da estação de bebês
ele teria a oportunidade de achar alguém para ouvi-lo? Pois é. Ele achou e
Gatinha até dormiu antes dele acabar de contar tudinho, muito feliz por não ter
esquecido nada, se lembrar de todos os detalhes.
— ... então tenho que sair
daqui o quanto antes ...
— Quietinho nené, disse uma
freira enfiando uma mamadeira na boca de 12A.
Você está gritando tão alto
que acordou o berçário inteiro. O mamá já chegou.
12 A começou a sugar o leito
pelo bico da mamadeira, enchendo a barriguinha com um quentinho gostoso, mas
não deixou de pensar:
— Ninguém entende a gente
mesmo. Os bebês, senão aprendem logo a falar estão ferrados. Eu aqui, contando
minhas desventuras para a Gatinha e a madama pensando que estou com fome. Bem
que isto aqui é gostoso, lá isto é.
V — 12A começa a aprender as
coisas do mundo
Gatinha e 12A tomaram-se bons
amigos, sempre conversando, transformando o berçário num inferno. Para as
freiras os dois eram dois berradores e chorões que só davam alguma paz quando
dormiam.
12A queria desesperadamente
sair dali. Esperneava, se desembrulhava, dava chutes no ar com as perninhas que
não podiam andar, socos no ar procurando agarrar alguma coisa em que se firmar.
— Não consigo, Gatinha. Não
consigo nem sentar, quanto mais ficar de pé. E como poderei andar? choramingava
ele desesperado.
— Acho que com o tempo,
responde Gatinha. Eu não tenho pressa.
— Mas eu não posso esperar o
tempo passar. Não posso esquecer...
Cada dia que se passava ele
aprendia alguma coisa nova: a hora da mamadeira, o sorriso da freira que
cuidava dele, a gostosura de uma fraldinha seca, a luz do dia entrando pela
janela, os passos das pessoas que passavam pelo berçário. E, a medida que ia
aprendendo a viver, conhecendo as pessoas, uma parte do que ele tinha sido
sumia de sua memória. Já não se lembrava de suas asinhas, do velho
superintendente que vestia um camisolão branco, das nuvens fofas por onde tinha
andado tão perigosamente, dos companheiros que com ele haviam convivido lá em
cima, das instalações de onde viera.
Um dia ficou assustado:
— Gatinha, como é o número?
Não tenho nome e não me lembro do meu número.
— Você me disse que é 12A. Eu
falei que você também ia esquecer ...
A única coisa que ainda estava
muito nítida em sua cabecinha, bem lá no fundo de sua memória era o rosto de
sua mãe. Repetia para si mesmo, toda hora "ela tem cabelos lisos, estão
ficando brancos, uma pinta do lado esquerdo perto do olho, os dentes separados,
com medo de esquecer, com medo de perder a mãe para sempre apagando-a de sua memória.
Na sua cabecinha, ele achava que quanto mais repetisse, mais difícil seria
esquece-la e teria assim chance de encontrá-la.
— Sabe 12A, você é um chato,
dizia Gatinha. Por que não desiste? Mas ele não desistia e pedia:
— Se eu me esquecer dela, você
me conta Gatinha? Você já sabe como ela é, pode me ajudar se eu me esquecer,
promete?
— Tá bem, prometo.
VI — 12A
— Gatinha vai embora
Uma novidade aconteceu no
berçário. Pessoas estranhas entravam para ver os bebês, ficavam olhando para
eles durante algum tempo. A novidade se espalhou num berreiro alto e terrível,
eram candidatos a pais. Muitos ficaram contentes e começaram a praticar
gracinhas e gu-gus para impressioná-los. Foi assim que Gatinha foi embora. Um
casal apareceu por lá, como quem não quer nada, olhou para ela, voltou uma
segunda vez e carregaram-na. Ela gritou:
— Adeus 12 A, acho que nunca
mais vou ver você. Acho que vou morar com eles.
— Adeus Gatinha, um dia a
gente se encontra e se casa.
Desolado ele ficou ali
sozinho, agora sem ninguém para ajudá-lo. Chorou muito e nenhum outro bebê foi
colocado ao lugar de Gatinha. Ela fazia muita falta, com sua paciência sem fim
para ouvir seus choramingos, para ajudá-lo a não esquecer.
— Eu e Deus, pensou 12A. Não
tenho com quem conversar, não tenho ninguém para me ajudar a lembrar. Pena que
os bebês só conversam com outros bebês. Mas mesmo assim, não posso desistir e
ficarei repetindo para mim mesmo para não esquecer minha mãe, até minhas pernas
ficarem fortes para eu poder sair daqui correndo até a casa dela.
— Eh, fofinho, você perdeu a
amiguinha. Agora está mais quietinho, parece que se acostumou com a gente. Não
está gritando mais, só esperneia muito, está ficando um bebê muito bonzinho.
Logo vai achar um lar, uma casa para crescer... Está todo desagasalhado.
Também não para quieto, não é
fofinho? Pois vou fazer um embrulhinho de você, tão apertadinho e bem feito que
quero ver você escapar.
12A não queria achar um lar,
uma casa para crescer, queria apenas encontrar o que estava esperando há tanto
tempo. Ali ficou ele, uma trouxinha apertada, sem poder se mexer, só a
cabecinha virando devagar de um lado para o outro, bocejando e fazendo caretas,
fazendo uma força danada para se livrar daqueles panos, ficando vermelhinho de
tanta força que fazia, e repetindo só para ele mesmo minha mãe tem cabelos
lisos com alguns fios brancos, uma pinta no lado esquerdo bem perto do olho, os
dentes separados e covinha quando ri. Tinha um medo danado de dormir, tirar
suas sonequinhas tão gostosas, principalmente quando estava sequinho e com a
barriguinha confortavelmente cheia, tinha medo de que, durante o sono, se
apagasse o resto de lembranças ainda dentro de sua mente.
Três dias já se haviam passado
desde que Gatinha se fora. Vários casais tinham entrado no berçário e o
toque-toques dos passos estranhos chegavam até os ouvidos dos bebês, que
ficavam alvoroçados, fazendo charminho, abrindo a boquinha e fazendo biquinho,
pensando assim poder atrair as atenções dos candidatos a pai e mãe. Só 12A fechava
os olhos bem apertados, não querendo nem vê-las, dizendo para si mesmo não, não,
não, não quero ir com vocês, e dava um suspiro de alívio quando ouvia os passos
se afastarem do seu berço. Não procurava seduzi-los, como os outros bebês, não
procurava atrair os olhares, não queria ir embora para um lar. Fazia caretas
tortas e rezava para que eles o deixassem em paz. E, quando os passos se
afastavam os suspiros de alívio se transformavam em soluços, hic, hic, hic, que
desespero, não passavam mesmo abrindo os olhos para ver que não havia lá em
cima, parecendo fazer parte do teto, uns rostos enormes, curiosos, espiando,
examinando.
Ficava aliviado, mas chorava
de tristeza, de saudades da Gatinha, sentindo-se só e desamparado. Sabia que já
conhecia muita coisa do mundo em que estava vivendo e havia se esquecido quase
tudo que trouxera consigo na memória. Se não fizesse alguma coisa, se não
acontecesse um milagre, como conseguir andar, mesmo cambaleando, ele precisava
dar um jeito, para conseguir encontrar sua casa e seu lar. Será? Já nem se
lembrava da casa que via lá de cima, será que via mesmo uma casa, ou era um
sonho, um produto da imaginação de um bebê dorminhoco? Estava tudo tão
nebuloso, tão vago, tão distante que mais parecia um sonho, uma fantasia.
— Sou um bebê cansado, pensou.
Cansado mesmo. Um bebê desanimado. Só quero dormir, dormir, dormir.
Mergulhou numa soneca gostosa,
mesmo não querendo se desligar, e acordar alheio a tudo e nunca mais se lembrar
do rosto da mãe.
Seu soninho profundo e gostoso
foi interrompido por vozes e passos, toque, toques estranhos, não era o andar
das freiras. Outra vez, outra vez, lá vinha gente espiar o pequenino, examiná-lo
e, talvez, levá-lo. Fechou os olhos com força, como sempre fazia, não querendo
nem ver, nem fazer gracinhas e gu-gus para não seduzir e não conquistar. Não os
queria e não tinha meios de se comunicar, pedir que o deixassem em paz,
explicar sua situação, o resto nebuloso que tinha na memória.
Ficou esperando, pensando no
pouco que conseguia pensar, fazendo caretas e sentindo a presença de alguém
olhando para ele. Começou a abrir os olhos devagar para ver quem o olhava tão
demoradamente querendo gritar — Vai embora! Quero minha mãe! Abrindo bem os
olhos viu uma mulher com uma covinha do lado, rindo para ele, uma pinta no olho
esquerdo, os dentes da frente separados e alguns cabelos brancos. E ouviu a voz
dela, tema e meiga dizendo:
— Encontrei o meu filhinho!
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