Xico
e Xulé
— 1 —
— Vem cá Xulé, vamos espiar a turma da escola na oficina.
— Au: Au! respondeu Xulé pulando e sacudindo o rabo
peludo.
Xico pendurou a caixa de engraxate no ombro. Já tinha
feito uma boa féria e podia se dar ao luxo de se divertir um pouco.
Xule corria na frente, cheirando cada pedaço da calçada,
parando em cada poste para levantar a perna traseira e deixar sua marca registrada.
— Para Xulé, gritou Xico. Precisamos ter cuidado. Eles
não deixam a gente entrar.
E segredo o que eles estão fazendo.
Realmente, era impossível penetrar na oficina da Escola
de Samba "Unidos Venceremos". Ali estavam sendo preparados, no mais
absoluto segredo, os carros alegóricos que iriam desfilar no domingo de
carnaval. E, o diretor da escola, Seu Vado, havia comentado mais de uma vez que
estavam lindos e que a escola, fatalmente, iria ganhar o primeiro lugar. Por
onde passava, no bar, para tomar uma cervejinha, na banca de jornal, na praça
onde Xico engraxava, nos ensaios da escola na quadra, por todo lugar mesmo, ele
ia espalhando a notícia e fazia questão de falar bem alto que a escola estava
mais afiada que nunca no enredo, que os carros alegóricos iriam deixar o povo e
a comissão julgadora de queixo caído. A notícia se espalhou por todo o bairro,
só se falava nisso, até grandes apostas estavam sendo feitas, mas dizer como os
carros eram, o que estava sendo feito e guardado a sete chaves, isso ninguém
sabia. Só mesmo o Seu Vado e os que estavam trabalhando na construção deles é
que entravam na oficina, mas tinham jurado guardar segredo e não contavam nem
em casa o que estavam fazendo. À noite o barracão da oficina era guardado por
dois homens fortes, bons de braço e de briga, contratados especialmente para
fazer a segurança do lugar, e ajudados por dois enormes cachorros bravos.
Todas as alas da escola ensaiavam com grande entusiasmo
pois todos tinham a certeza que, naquele ano, finalmente, a "Unidos
Venceremos" seria a gloriosa campeã da avenida. A bateria estava afiada.
contagiante, deixando todo mundo doido, as pastoras afinadíssimas e o samba
enredo já era cantado pelo povo. A importante ala das baianas estava divina,
animadíssima para entrar na passarela, não desfazendo das outras alas que,
mesmo sem a importância das baianas, ondulavam num ritmo perfeito nos ensaios
da quadra.
Xico não aguentava de curiosidade. Seus vizinhos, todos
eles eram da escola e não falavam em outra coisa. Só os pais dele é que não
participavam daquela alegria e festança, por motivos religiosos, pois seguiam
uma seita muito severa, mas não proibiam o menino de ver e se divertir com a
brincadeira dos amigos.
Por ser curioso e estar contagiado pelo entusiasmo da rua,
da praça e do bairro, Xico resolveu furar a vigilância e ver de perto as
maravilhas anunciadas, porém muito bem escondidas, quase prontas, pois o
carnaval estava chegando, e ele morria de vontade de poder entrar na escola e
participar daquela, aventura colorida, daquela loucura coletiva. Quando ficasse
maior e pudesse tomar suas decisões, sozinho sem o consentimento dos pais, e o
dinheiro sobrasse para poder gastar na fantasia, ele iria entrar naquela turma
festeira e alegre. Mas, enquanto não podia, o jeito era ficar de fora
bisbilhotando e participando como conseguia.
— Nada de latir, hein, Xulé. Não ponha tudo a perder.
Xulé era um cãozinho
maravilhoso, só faltava falar língua de gente, porque entender, entendia.
Seguiu direitinho atrás do dono que ia apalpando as tábuas do fundo do
barracão. Xico sabia que tinha uma quase solta, era só forçar um pouquinho e
ela cederia para que eles pudessem entrar e desvendar o mistério. Ainda estava
claro e havia gente trabalhando nos carros.
Dito e feito, a tábua estava
mole, balançando e foi só dar um empurrãozinho que ela bambeou de vez. Xico
olhou para dentro. Moleza. Bem em frente do buraco havia uma pilha de material.
Era só se esconder atrás e espiar, tranquilamente, para ver as maravilhas. — Olha,
Xulé, você pode entrar também, mas se fizer um barulhinho a gente tá frito. Vão
cair de pau em cima de nós e não vai sobrar cachorro pra fazer salsicha.
Xulé virou a cabeça de um
lado para o outro, sem fazer nenhum ruído. Xico entrou de gatinhas no barracão
e se agachou atrás da pilha esperando os olhos se acostumarem com a iluminação
do ambiente. Xulé, quietinho do lado.
Um bando de homens
trabalhava, martelando, colando, pintando, colorindo, afixando plumas e papel
laminado. Que beleza estavam os carros. Um, parecia uma floresta, com pássaros
de plumagem colorida, outro dourado com um grande sol. Os olhos do menino iam
de um lado para o outro, procurando decorar as formas e as cores.
— Pôxa, pensou, não é à
toa que Seu Vado tá tão convencido. As alegorias esbanjavam cores, as das
escolas, verde e rosa e muito dourado que se esparramava em cascatas de papel
laminado e isopor, formando figuras de cavalos alados com asas de ouro, oceanos
verdes povoados de sereias também de ouro, peixes multicoloridos e, um vulcão resplandecente
de onde iriam jorrar toneladas de confete prateado que subiriam para o céu e
caíram como estrelas sobre o povão embasbacado. Xico ouvia a conversa dos
trabalhadores, descrevendo o que iria acontecer na avenida e examinava cada
detalhe de todos os carros. Estava tão distraído, tão deslumbrado, que nem
notou um dos trabalhadores chegando perto dele, para retirar alguma coisa da
pilha de material.
— Abaixa, Xulé, cochichou
e os dois se esparramaram no chão, tremendo de medo.
O homem nem desconfiou.
Cantarolando o samba enredo, chegou até a pilha, abaixou-se e pegou alguns
sacos para levá-los, voltando para o seu trabalho. Um dos sacos que estava
empilhado estava furado e, com a retirada dos que estavam em cima dele, um
pouco de um pó caiu bem em cima de Xulé. Mas. mesmo assim, o cão ficou
quietinho. Recebeu um banho daquela coisa e nem se mexeu,
— Vamos embora Xulé,
chamou baixinho, passando para o lado de fora do barracão, onde tinha deixado
sua caixa de engraxate.
Lá fora, colocou a tábua e
o lugar, com muito jeito e cautela para não fazer barulho, escorando-a com uma
pedra e correu a mais não poder com o cão nos seus calcanhares. Parou num
terreno baldio, o coração pulando dentro do peito, fazendo tum-tum-tum-tum pela
corrida e pela aventura, respirou fundo, soltou a. caixa no chão e sentou-se
pesadamente ao lado dela. Só então olhou para Xulé. Ele brilhava, focinho,
orelhas, um cachorro todo dourado, brilhando até no escuro, dava até pra
desfilar como destaque num carro alegórico.
Xico rolou no chão de
tanto rir. Mas, e agora? Teria que dar um banho nele. Se ele aparecesse com um
cachorro brilhante, cor de ouro, todos iriam querer saber das coisas e, junta
aqui, junta ali, logo descobririam que ele estivera na oficina.
Examinou o pelo dele. O pó
era diferente de purpurina essa ele conhecia. Era um material bonito, como ele
nunca vira igual. Bonito e grudento. Passou o dedo no pelo de Xulé e a coisa
grudou que nem visgo nele, não saindo nem quando esfregou o dedo no chão, com
força, quase arrancando a pele.
— Preciso tirar isto de
cima do Xulé. Vou tentar. Deve ser material das estranjas, pensou.
Mas, dar banho no Xulé era
um problema dos diabos. O cão era fedido e ensebado, fugia até de água de
chuva. Tinha uma inclinação natural para a sujeita e imundície, lixos e
porcarias.
— É companheiro, disse.
Dessa você não escapa, senão estamos fritos. Se o Seu Vado botar os olhos em
cima de você do jeito que está, o pau vai cantar no nosso lombo.
Dirigiu-se para o riacho que
corria lá no pé do morro, um bocado longe. Tirou a correia que servia para
carregar sua caixa e fez com ela, uma trela para o pescoço do cão. Xulé, quando
viu a água do riacho, desconfiou que alguma coisa ia mal, que ia sobrar pra
ele, tentou fugir, mas foi impedido pela trela na mão de Xico. Esperneou,
gemeu, ganiu, deitou-se no chão com as patas viradas para cima como morto,
lambeu a mão do dono como que pedindo piedade, fez tudo quanto era chantagem
para não ser levado pra dentro d'água. Xico, segurando firme, apertando a
correia na mão até ficar com a pele queimando, entrou no riacho e arrastou o
cão que pulava pra cima dele como um gato, querendo agarrar o braço que o
arrastava e subir no ombro dele, fugindo desesperadamente da água. E os dois,
cachorro e dono, estatelaram no leito do riacho. Mas Xico segurou firme e não
deixou o infeliz escapar. Sentou-se o melhor que pode, enfiado dentro da água
fria e gostosa, esfregando o bicho até não poder mais. Esfregava o Xulé com a
mão livre com tanta força que os pelos do animal saíam aos tufos, esfregava o
focinho e as orelhas quase arrancando a pele do bicho. Xulé latiu, gemeu,
ganiu, esperneou, fez o que pode mas foi lavado.
— Pena eu não ter sabonete
aqui. Se tivesse eu tirava seu fedor de vez.
Contudo, mesmo com todo
aquele estardalhaço, com toda a esfregação e água, o cão em várias partes; do
corpo. Onde o pó havia grudado, havia ficado, só havia saído nos pedaços do
corpo em que não tinha se agarrado tanto. Pingando, molhado e infeliz, assim
que foi solto, Xulé correu para fora da água como diabo fugindo da cruz e rolou
na terra que beirava o riacho. Rolou para a esquerda, para a direita, coçou as
costas no chão, esfregou o focinho e as orelhas, rolou até se tornar mais
parecido com uma pelota de barro do que com um cão.
— Diabo de cachorro porco.
Parece que nasceu pra ser fedido e sujo. O primeiro banho que toma e se
emporcalha todo. Bem, quem sabe a terra em cima dele vai esconder o brilho de
pó que ficou grudado nele, depois de secar.
— 2
—
Xico não contou pra
ninguém as maravilhas que tinha visto no barracão. Guardou segredo até mesmo
para sua vizinha de porta, a Risoleta, que estava acabando sua fantasia de
Porta-estandarte. Estava linda, toda bordada de pedrinhas coloridas e babados,
com uma gola enorme de plumas nas cores da escola.
Risoleta gostava muito de
Xico. Ela trabalhava numa fábrica de balas e sempre achava um jeitinho de
trazer um pacotinho para seu amiguinho. Xico também adorava a mocinha, o amor
mútuo era feito de carinhos e agrados. Xico não passava um dia sem ir ver a
Risoleta, catava os botões de rosa da praça e trazia os mais lindos para o
cabelo dela. Quando ela empunhava o estandarte da "Unidos Venceremos"
e deslizava numa cadência faceira, era uma deusa para o menino. Ela e Quelé,
seu namorado, bom na bateria e no batuque, às do ritmo, tão bom que, quando
começava o seu tique-tum, tique-tum, todo mundo começava a balançar o corpo,
mesmo sem querer, eram os grandes amigos de Xico. Mas, mesmo gostando do Quelé,
ele sempre dizia para seu amigo ainda maior, Xulé:
— Sabe, Xulé, eu gosto do
Quelé, ele é batuta, bom de papo, amigão mesmo. Mas, quando eu acabar de
crescer vou casar com a Risoleta, vou tirar minha deusa do Quelé. Aí eu vou tá
um gatão, o Quelé já vai ser velho e eu vou chegar para ela e dizer
"Pronto já cresci", vamos embora, vamos casar. Tenho até dó do Quelé,
coitado, vai até criar um caso comigo, mas eu não vou arredar o pé. Caso com
ela. Por enquanto, ele tá tomado conta dela pra mim, é meu amigo, protege a
Risoleta.
Pois nem mesmo para sua
deusa e seu namorado se atreveu Xico a contar as suas andanças pelo barracão.
Guardou segredo absoluto e como Xulé não falava língua de gente, ninguém ficou
sabendo da bisbilhotice.
Na sexta-feira, quando
tudo já deveria estar pronto para o desfile de domingo e para a grande vitória,
Risoleta apareceu na casa de Xico, chorando feito um bezerro desmamado. Era
muito cedo ainda, o sol nem tinha saído, mas na casa de Xico todos já tinham
saído para o trabalho. Só o menino dormia e foi acordado pela voz aflita dela:
— Xico, aconteceu uma
desgraça. Vieram me avisar. Vai chamar o Quelé pra mim.
— Que desgraça? Morreu
alguém?
— Os carros alegóricos
foram roubados. Roubados ontem à noite.
— Minha nossa! exclamou
Xico.
— Como vamos desfilar?
Chorava, Risoleta, inconformada.
— Mas como? E os guardas?
E os cachorros?
— Me contaram que deram
algum remédio pra eles e eles estão dormindo até agora que nem defunto.
— Quem? os guardas?
— Não, Xico, os cachorros.
Os guardas levaram uma paulada na cabeça. Ficaram caídos e não viram quem foi.
— Que desgraça mesmo,
disse Xico.
— Vai chamar o Quelé pra
mim, não vou trabalhar hoje, eu não aguento, chorava Risoleta.
Nem precisou ir atrás do
Quelé. Este apareceu com um bando de rapazes da bateria, todos lamentando o
acontecido, desanimados, sem saber o que fazer.
— Ô meu, logo este ano que
a gente tá fervendo de animação, lamentavam-se.
Logo se formou uma zona na
rua, gente chegando pra saber quem tinha morrido, gente gritando nas janelas,
ameaçando atirar água se não acabasse a zoeira, as moças das alas chorando,
fazendo um escândalo dos diabos. Um rapaz bateu palmas e gritou silêncio tão
forte que todos se aquietaram. Alguém perguntou:
— E o Seu Vado? Já sabe?
— Foi ele que deu a
notícia. .Os guardas, quando acordaram das pauladas, agora de manhãzinha,
correram pra casa dele, respondeu Risoleta.
— É. Agora ele tem carro,
não anda mais de bicicleta. Deve tá rodando por aí pra ver se descobre alguma
coisa.
— Já chamaram a polícia
mas os guardas não sabem como foi.
— Deve ser a campeã do ano
passado. Os inimigos sabiam que a gente ia entrar na avenida pia ganhar. Tinham
medo da gente.
Cada um tinha uma coisa
para dizer, para comentar. E a zona voltou a se instalar na rua, o tempo a
passar.
Xico precisava trabalhar.
Tomou uma xícara de café com um pedaço de pão, catou sua caixa e chamou Xulé
que estava escondido debaixo da cama ... Parecia que ele sabia que, debaixo da
terra seca grudada nos fios de seu pelo havia um pó dourado. Olhando bem o
cachorro, podiam-se notar grãozinhos brilhantes aqui e ali, onde a sujeita do
barro não ia grudado. O menino engraxate, seguido pelo seu cão, que se
esgueirava pelos cantos e cabeça baixa, foi para o seu ponto, no centro do
bairro. Mesmo com tanta desgraça não podia deixar de ganhar para ajudar em
casa. E, enquanto ia engraxando, não saía da cabeça dele a malvadeza que havia
sido feita para a turma da escola e para a sua Risoleta, tão animada e certa da
vitória. Será que a escola não ia mais sair? Será que ele não veria a beleza da
Risoleta no seu vestido de princesa deslizar como uma deusa na avenida? Será
que os surdos iriam ficar mudos também?
— 3 —
Quando chegou o sábado,
véspera do desfile, as coisas estavam na mesma, estavam pretas. Não se sabia
dos carros, não havia ao menos uma pequena pista deles. Parecia um caso difícil
toda vida, impossível de ser resolvido.
— Puxa vida, Xulé. Aqueles
carros lindos de morrer eram grandes. Como podiam se evaporar, sumir daqui, sem
ninguém saber onde andam. Parece até coisa de bruxaria! Quem fez o trabalho,
fez bem feito mesmo.
Na hora do almoço, quando
Xico já ia recolher a caixa para pegar o grude em casa, Xulé latiu olhando em
direção de um Chevete que havia acabado de estacionar do outro lado da praça.
Pois não era o carro do Seu Vado? Desde que largara a bicicleta, uns quinze
dias atrás, Seu Vado tinha adotado um ar importante de gente rica. Nem parecia
mais que marretava todos os dias nas feiras, fugindo dos fiscais. Agora andava
todo emproado, numa frescura de dar gosto, rodando pelo bairro no carro que nem
era zero, um carro velho à gasolina, parecendo ter o rei na barriga. Todo o
bairro comentava que, desde que tinha montado no Chevete branco, Seu Vado já
não era o mesmo, ficara orgulhoso, fizera novas amizades com gente metida a
sebo.
Um homem com um nariz
chato de lutador de box desceu do Chevete, nova amizade do Seu Vado, e foi para
o lado de Xico. Seu Vado tocou o carro e sumiu.
— Ei, menino! Quero
engraxar.
— Tô indo pra casa, moço,
hora da bóia, disse Xico.
— Pago o dobro se engraxar
agora.
— Bem, pensou Xico
reconsiderando, uma engraxada pelo preço de duas vale a pena fazer uma barriga
esperar.
E disse para o homem de
nariz chato:
— Vamos lá, seu moço. Pode
sentar e colocar o pé.
O Nariz Chato colocou o pé
na caixa. Xulé se enfiou debaixo do banco do jardim, com o focinho entre as
patas, fingindo dormir.
— Tira a mancha do sapato,
garoto.
A mancha. Xicou olhou bem.
Xulé esticou o focinho, farejando. A mancha estava ali, muito pequena mas bem
dourada e reluzente, do mesmo pó que obrigava Xulé tomar o banho forçado.
— Aí tem coisa, pensou o
menino enquanto ia limpando e esfregando. A mancha não saiu. Precisou ser
tingida com graxa, pedacinho por pedacinho até desaparecer, deixando por
debaixo o danado do pó dourado escondido.
Aquilo não saiu da cabeça
do menino. Assim, depois que almoçou, disse para o cão:
— Xulé, vamos investigar.
Não vou levar a caixa pra rua. Vamos vigiar a casa do eu Vado. Ele conhece o Nariz
Chato. E o Nariz Chato conhece a oficina de onde os carros oram roubados. Se
este cara aparecer por lá vamos ver se achamos o fio da meada.
— 4 —
O Chevete estava parado em
frente a casa do Seu Vado. Lustroso, era lavado . ariamente com uma mangueira e
lustrado com cera. Podia ser velho, mas estava muito bem cuidado.
— Venha cá, Xulé, tenho
uma ideia, disse Xico.
Xico arrumou um pedaço de
pau, caído pelo chão e, com ele, cutucou o porta-malas.
Mexeu por baixo, examinou
cada pedacinho. Não era fácil abrir aquela tampa, não dava pé mesmo, iria
precisar das chaves. Tornou uma decisão. Pulou o portãozinho da casa do Seu
Vado com Xulé no colo, e os dois, de mansinho, se esgueirando e rastejando
chegaram à janela escancarada. Seu Vado roncava, estendido no sofá vermelho da
sala, sem camisa, o barrigão descendo e subindo. Estava só mas vinha barulho da
cozinha ao lado. Lá estavam elas. As chaves do Chevete branco, imóveis em cima
da mesa, bem na beirada. Xico se abaixou, pegou Xule, levantando-o Cochichou no
ouvido do cão:
— Xulé, tá vendo aquelas
chaves? Vou botar você pra dentro. Você pega as chaves e fica de pé na beira da
janela. Eu pego as chaves, você volta e espera escondido debaixo do sofá.
Xulé abanou o rabo. Tinha
entendido muito bem o que precisava fazer. Com cuidado, sorrateiro, já dentro
da sala, pegou as chaves com a boca. As chaves fizeram tilim-tilim e Xulé
parou, imóvel como um perdigueiro, esperando Seu Vado acordar. Mas foi um
barulho muito fraco e tudo continuou na mesma, por isso foi para a janela e
ficou de pé com elas ainda na boca. Assim que Xico tomou posse delas, foi para
seu esconderijo e ficou esperando.
O porta-malas aberto, as
chaves de volta no lugar, foi só suspender o cão para fora, Seu Vado nem se
mexendo no seu sono pesado, roncando gostoso, alheio ao movimento que havia
acontecido em volta dele.
A ação tinha sido lenta e
perigosa, poderiam ter sido flagrados.
— Credo, se me pegarem vou
em cana, pensou Xico. No mínimo pego Febem.
Aberto o porta-malas, Xico
enfiou Xulé dentro dele e se acomodou também no meio de algumas tralhas jogadas
no fundo. Ficou esperando, espiando por uma pequena fresta, pois havia deixado
a tampa meio aberta, porém firmemente escorada, para poder espiar e observar a
casa.
Que sufoco! Além do medo de
estar ali e ser apanhado escondido, havia o fedor de Xulé que, naquele ambiente
abafado era de dar ânsia de vômito.
— Tá loco, SÔ, nunca vi um
bicho com nome assim tão certinho! Você fede, hein, amigão?
Os dois estavam quietinhos
há tanto tempo que as pernas e os braços de Xico adormeceram. Seu corpo doía e
ele, mesmo se acostumando com o terrível cheiro do cão, sentia-se mal naquele
abafamento.
— Não aguento mais Xulé.
Acho que vou desistir.
Xulé começou a lamber o
amigo, com pena dela, tentando agradá-lo. Com ele tudo bem, estava bem
acomodado, perto do dono, não sentia nada a não ser sono.
— Na cara não, gritou
Xico.
— Tá. bem, pensou Xulé, e
lambeu as pernas dormentes do dono. O tempo foi se assando e nada acontecia.
Xulé, tão quietinho e acomodado começou a não gostar da Mércia e reclamou dando
uns gemidos baixinhos. Ninguém aparecia, Nariz Chato não havia dado, ainda.
Quando Seu Vado saiu da
casa e entrou no carro, os dois ficaram mais animados.
— Ufa! Finalmente vai
acontecer alguma coisa pra chacoalhar a gente. Acho que o carro vai andar.
Segura, Xulé!
Seu Vado ligou o motor, o
carro começou a roncar e rodar, chacoalhando de verdade os clandestinos no
porta-malas. Tomou a direção de uma rodovia, depois de rodar por algumas
avenidas. Olhando pela fresta do porta-malas Xico viu que saíram da cidade e,
depois de rodar algum tempo no asfalto, pegou uma estradinha de terra,
poeirenta e esburacada, fazendo tudo sacudir ainda mais, a lataria velha, as
tralhas no fundo do porta-malas, Xico se agarrando como podia para não bater
com o traseiro no fundo e a cabeça na tampa, Xulé rolando de um lado pra outro,
se contorcendo e ganindo, um desconforto dos diabos, um barulhão enchendo os
buracos dos ouvidos.
Finalmente, o carro parou,
uma brecada rápida que jogou os dois para frente e para trás.
— Graças a Deus, disse
Xico. Acho que vou morrer. Não. Acho que já estou mortinho. Não estou
aguentando mais, acho que tenho algum osso quebrado, meu estômago mudou de
lugar, meu pescoço entortou de vez.
Ficou parado, quieto no
meio do silêncio, esperando, só ouvindo o barulho dos grilos no meio da noite.
Depois, saltou com o cão para fora do esconderijo, pulou e se esticou todo até
se sentir melhor e com as juntas das pernas e braços no lugar certo. Olhou em volta
e enxergou uma janela iluminada de uma casa pequena de sítio, ao lado de um
galpão de onde vinham faíscas de objetos luminosos e brilhantes, visíveis na
luz do luar.
— Vamos Xulé, comandou.
Vamos examinar aquilo. Aquilo eram os carros alegóricos da "Unidos
Venceremos".
O queixo de Xico caiu.
Ficou imóvel olhando mais uma vez para aquelas coisas lindas, o sol dourado, os
cavalos alados. Ele tinha o corpo todo dolorido. Ainda não estava legal, ainda
doía tudo, até a ponta do dedão, mas já que havia começado, o jeito era ir até
o fim, principalmente com a grande descoberta que havia feito. Ele sabia onde
estavam os carros roubados. Sentou-se nas sombras, com Xulé ao seu lado e
esperou um bocado de tempo até passar a sensação de corpo moído, chacoalhado em
liquidificador.
Só quando se sentiu
realmente bem, pronto para correr se fosse preciso, é que foi olhar o que havia
de trás da janela iluminada. Dentro da casa, na maior camaradagem, Seu Vado
conversava o Nariz Chato.
— Aqui está o resto do
dinheiro pelo serviço, disse Nariz Chato, dando um bolo de notas para o Seu
Vado. Bom trabalho, tiramos a "Unidos Venceremos" da avenida.
— É. Foi mole, disse Seu
Vado.
Ele contou o dinheiro
cuidadosamente e enfiou o bolo no bolso parecendo muito contente.
— Vamos ficar por aqui até
amanhã para garantir que nada impedirá o sucesso do trabalho. Tenho bastante
cerveja. Como a Escola não vai sair sem os carros você fica aqui para eu ter
certeza que não vai se arrepender do negócio e dar com a língua nos dentes.
— Que é isso, ô meu? Sou
cara de uma palavra só, respondeu Seu Vado ofendido.
Quando fiz o negócio,
topei a parada, era pra valer.
Mas eu fico. Vamos virar
umas cervejinhas e jogar um baralhinho pra passar o tempo?
— Assim que se fala,
bicho. É pra já.
Xico já tinha ouvido tudo
que precisava. Se afastou com muito cuidado na branda dão da noite, iluminada
por uma lua camarada, Xulé quietinho nos seus calcanhares, até a estrada de
terra.
— Agora é com você, Xulé,
ache o caminho de casa.
Xulé entendeu a ordem.
Seguiu em frente, farejando aqui e ali, correndo e parando, até chegarem ao
asfalto. Já era muito tarde da noite e o caminho para casa era longo. Xico
estava muito cansado e a rodovia era perigosa, não dava para correr, mesmo pelo
acostamento. Carros passavam velozes, nas duas direções, com faróis enormes que
cegavam e iluminaram a estrada sem fim.
— Pera aí, Xulé. Deste
jeito não chegamos nunca. Vamos pedir uma carona até a entrada da cidade.
Os dois ficaram parados, Xico
fazendo sinais com os braços, mas ninguém parava.
— Vamos andar mais um
pouco, Deve haver um posto, um lugar qualquer por perto, eu me lembro que
passamos por um. Vamos! em frente marchar!
— Au! Au! Au! respondeu
Xulé, abanando o rabo e continuando a caminhada.
— Xulé, você tem certeza
que estamos na direção certa? perguntou Xico.
Xico já estava tão cansado
que tinha medo de estar andando em direção errada e se perder por aquele
mundão. Mas Xulé respondeu com mais dois latidos, sacudiu o rabo e farejou,
cheirou o chão da estrada, o chão do acostamento, olhou para Xico como que
dizendo é por-aqui-mesmo e trotou na frente. Andaram os dois, sem correr por
mais de uma hora; quando avistaram no fim de uma subida as luzes e os luminosos
de um posto. A subida foi difícil, Xico quase se arrastando.
O lugar estava cheio de
caminhões, carros de passeio, gente comendo, bebendo e conversando. Não foi
difícil achar um caminhoneiro amigável para dar carona. E, se não fosse aquele
caminhão carregando laranjas para o mercado, não chegariam em casa senão no dia
seguinte. O motorista, muito camarada, depois de ouvir a aventura de Xico,
mesmo não acreditando muito na conversa do menino, deixou os dois bem perto do
bairro onde moraram. Era madrugada quando conseguiram chegar. Mas, mesmo no
meio da noite, Xico correu para o porta da Risoleta e quase a botou abaixo com
batente e tudo, de tanto esmurrar para acordara moça. Acordou a família inteira
e, assim que viu Risoleta, ainda meio dormindo na frente dele, gritou:
— Você não sabe o que
aconteceu. Eu sei onde estão os carros alegóricos, foi contando tudo para a
moça. Despejou tudo o que tinha acontecido, tim-tim por tim-tim, sem se
esquecer de nenhum detalhe, enquanto Risoleta ouvia com os olhos arregalados de
espanto, o sono sumido e ela alerta.
Quando acabou, a moça
falou:
— Corre, chame o Quelé,
enquanto eu me visto.
— Poxa, Risoleta, eu faço
tudo, tô moído, tô quebrado, e você manda chamar o Quelé ...
— Meu bem, respondeu ela,
não seja ciumento. Eu te adoro. Você foi super corajoso e é meu herói, mas
precisamos de um homem para ajudar e o Quelé é bom ...
— Tá bem, disse Xico
conformado, sabendo que a sua Risoleta tinha razão. Vou chamar ...
Uma hora depois, o dia
ainda não tinha amanhecido, toda a rapaziada da bateria estava reunida com dois
grandes caminhões. Xico estava muito feliz, primeiro, tinham acreditado nele,
segundo, tinham agido com presteza, tirando todo mundo da cama, componentes da
escola e motorista de caminhão. Na verdade, foi uma trabalhadeira dos diabos
arrumar caminhões no peito, que todo mundo estava numa dureza de dar gosto, mas
a turma era resolvida, estava disposta a tudo.
— Será que estes caminhões
vão dar? perguntou Quelé.
— Pelo que vi dos carros,
acho que vão, respondeu Xico com ar de entendido e
conhecedor dos carros.
— Bem, resolveu Quelé, a
gente volta pra fazer mais uma viagem se for preciso. Todos reunidos, pê da
vida com Seu Vado, Xico comandou:
— Xulé, ache o caminho de
volta, e rápido.
E para os motoristas:
— Sigam o cachorro! Ele
vai pelo acostamento quando chegar na rodovia.
Xulé foi farejando,
assuntando, às vezes parava, virou pelas ruas do bairro, atravessou um viaduto,
pegou uma via expressa, sempre trotando na frente, com aquela estranha
procissão atrás dele. Quando parava para dar uma nova farejada, uma cheirada
bem caprichada, aproveitava pra descansar um pouco, o coitado já estava com a
língua de fora. Quando acontecia isso, a turma em cima do caminhão, que ia a
dez por hora, gritava para o coitado: Vamos? Xuté, pra frente, Xulé. E ele
continuava.
Chegando na rodovia,
parou, olhou para a esquerda, parou, olhou para a direita, olhou para o
caminhão onde Xico estava como que dizendo, e agora? Mas Xulé era um cão
decidido, virou para a direita e continuou o caminho, assumindo toda a
responsabilidade.
Em cima do caminhão a
turma estava no maior silêncio, torcendo para o Xulé estar no caminho certo.
Ele estava. Rodaram durante muito tempo, Xulé trotando no acostamento, os
caminhões devagarinho seguindo o mestre, e o danado achou a estrada de terra
que saia da rodovia e serpenteava no meio de árvores e plantações. Quase
chegando na porteira do sitio, Xico mandou parar, comandando a operação de
guerra.
— Vamos a pé pra não
assustar os dois. Venham atrás de mim, sem fazer barulho. Xico, parecia um
verdadeiro comandante. Já não sentia nem mesmo cansado, estava alerta e
acordado, o sangue cheio de adrenalina para dar o bote. Ordenados e em fila, o
grupo se aproximou lentamente, sem o menor ruído, passando pelo galpão onde os
carros estavam alojados, olhando de raspão, admirados, o magnífico sol
dourados, os cavalos, as sereias deslumbrantes que brilhavam na semiescuridão.
Mas ninguém deixou escapar um ruído de admiração, um comentário sequer. Atrás
de Xico, que, corno bom comandante, puxava a fila, dirigiram-se para a casa,
ainda tinha a mesma janela iluminada, e pararam quietos na porta, ninguém
sabendo o que fazer. Quelé e Xico na frente do grupo fizeram ao mesmo tempo,
como se tivessem até combinado, um gesto com a mão, um sinal de vamos em frente
pessoal e todos se arremeteram contra a porta que nem trancada estava. Com
gritos de mata, esfola, capa, pega, invadiram a salinha onde Seu Vado e o Nariz
Chato jogaram baralho na maior paz.
Seu Vado caiu pra trás,
com cadeira e tudo, o baralho voando das mãos que nem borboletas. O outro ficou
de pé, sem saber o que estava acontecendo, as mãos no ar como que pedindo calma-pessoal-eu-explico-tudo.
Meu Deus, que surra Seu
Vado e Nariz Chato levaram! A rapaziada da bateria não fez-cerimônia, bateram
com tanta vontade, como se estivessem batendo nos bumbos, nos surdos e nas
caixas. Era dente que voava, perna que estalava, osso que quebrava, mão que
virava pra trás, nariz sangrando, chumaço de cabelo voando no ar, olho roxo,
sangue pintando as paredes, roupa rasgada. Quase mataram os dois que ficaram
estendidos no chão, quase pelados, esfarrapados e ensanguentados, imóveis e
desmaiados, praticamente esperando os urubus.
Foi preciso Xico colocar a
mesa que estava de pernas para o ar de pé outra vez e subir em cima dela com
Xulé, um gritando e outro latindo, para os irados membros da "Unidos
Venceremos" pararem a ação.
— Chega pessoal, Chega!
Foram parando de bater,
ofegantes, chegando para trás, para um canto da sala e espiando os estragos.
Não havia móvel inteiro, a não ser a mesa onde Xico estava de pé.
Eles próprios estavam
despenteados e desmontados.
— 5 —
— Xulé, amigão, falou
Xico. Você não deve estar entendendo nada. Mas está se comportando muito bem.
Os dois estavam passando
em frente ao palanque onde estavam todos os membros da comissão julgadora.
Estavam em cima de um carro alegórico, num lugar de honra concedido pelos
componentes da Escola de Samba "Unidos Venceremos", que fizeram
questão de ter os dois com eles enquanto desfilassem.
E, de lá do alto, Xico
podia ver a maravilhosa evolução dos sambistas, as alas com fantasias
coloridas, a bateria tocando num ritmo perfeito.
Xico sabia que, no meio da
multidão que assistia ao desfile, aplaudia a escola e cantava o samba-enredo,
estavam seus pais. Estavam orgulhosos dele e permitiram que ele desfilasse
naquele dia. Haviam entendido que Xico estava apenas participando de uma festa,
de uma festa onde, além da alegria, havia a amizade entre seus participantes.
Orgulhoso e feliz, Xico
realizou o seu sonho de estar na avenida, no meio de seus amigos.
— Sabe, Xulé, ele falou,
acho que você está ouvindo nada com esta barulheira, esta cantoria e também por
causa do batuque da bateria. Mas não faz mal. Faz de conta que você está me
escutando, porque eu tomei uma decisão importante. Quando eu crescer vou ser
detetive e você vai ser meu assistente.
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