sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Conto infantojuvenil



Xico e Xulé

 

— 1 —

 

— Vem cá Xulé, vamos espiar a turma da escola na oficina.

— Au: Au! respondeu Xulé pulando e sacudindo o rabo peludo.

Xico pendurou a caixa de engraxate no ombro. Já tinha feito uma boa féria e podia se dar ao luxo de se divertir um pouco.

Xule corria na frente, cheirando cada pedaço da calçada, parando em cada poste para levantar a perna traseira e deixar sua marca registrada.

— Para Xulé, gritou Xico. Precisamos ter cuidado. Eles não deixam a gente entrar.

E segredo o que eles estão fazendo.

Realmente, era impossível penetrar na oficina da Escola de Samba "Unidos Venceremos". Ali estavam sendo preparados, no mais absoluto segredo, os carros alegóricos que iriam desfilar no domingo de carnaval. E, o diretor da escola, Seu Vado, havia comentado mais de uma vez que estavam lindos e que a escola, fatalmente, iria ganhar o primeiro lugar. Por onde passava, no bar, para tomar uma cervejinha, na banca de jornal, na praça onde Xico engraxava, nos ensaios da escola na quadra, por todo lugar mesmo, ele ia espalhando a notícia e fazia questão de falar bem alto que a escola estava mais afiada que nunca no enredo, que os carros alegóricos iriam deixar o povo e a comissão julgadora de queixo caído. A notícia se espalhou por todo o bairro, só se falava nisso, até grandes apostas estavam sendo feitas, mas dizer como os carros eram, o que estava sendo feito e guardado a sete chaves, isso ninguém sabia. Só mesmo o Seu Vado e os que estavam trabalhando na construção deles é que entravam na oficina, mas tinham jurado guardar segredo e não contavam nem em casa o que estavam fazendo. À noite o barracão da oficina era guardado por dois homens fortes, bons de braço e de briga, contratados especialmente para fazer a segurança do lugar, e ajudados por dois enormes cachorros bravos.

Todas as alas da escola ensaiavam com grande entusiasmo pois todos tinham a certeza que, naquele ano, finalmente, a "Unidos Venceremos" seria a gloriosa campeã da avenida. A bateria estava afiada. contagiante, deixando todo mundo doido, as pastoras afinadíssimas e o samba enredo já era cantado pelo povo. A importante ala das baianas estava divina, animadíssima para entrar na passarela, não desfazendo das outras alas que, mesmo sem a importância das baianas, ondulavam num ritmo perfeito nos ensaios da quadra.

Xico não aguentava de curiosidade. Seus vizinhos, todos eles eram da escola e não falavam em outra coisa. Só os pais dele é que não participavam daquela alegria e festança, por motivos religiosos, pois seguiam uma seita muito severa, mas não proibiam o menino de ver e se divertir com a brincadeira dos amigos.

Por ser curioso e estar contagiado pelo entusiasmo da rua, da praça e do bairro, Xico resolveu furar a vigilância e ver de perto as maravilhas anunciadas, porém muito bem escondidas, quase prontas, pois o carnaval estava chegando, e ele morria de vontade de poder entrar na escola e participar daquela, aventura colorida, daquela loucura coletiva. Quando ficasse maior e pudesse tomar suas decisões, sozinho sem o consentimento dos pais, e o dinheiro sobrasse para poder gastar na fantasia, ele iria entrar naquela turma festeira e alegre. Mas, enquanto não podia, o jeito era ficar de fora bisbilhotando e participando como conseguia.

— Nada de latir, hein, Xulé. Não ponha tudo a perder.

Xulé era um cãozinho maravilhoso, só faltava falar língua de gente, porque entender, entendia. Seguiu direitinho atrás do dono que ia apalpando as tábuas do fundo do barracão. Xico sabia que tinha uma quase solta, era só forçar um pouquinho e ela cederia para que eles pudessem entrar e desvendar o mistério. Ainda estava claro e havia gente trabalhando nos carros.

Dito e feito, a tábua estava mole, balançando e foi só dar um empurrãozinho que ela bambeou de vez. Xico olhou para dentro. Moleza. Bem em frente do buraco havia uma pilha de material. Era só se esconder atrás e espiar, tranquilamente, para ver as maravilhas. — Olha, Xulé, você pode entrar também, mas se fizer um barulhinho a gente tá frito. Vão cair de pau em cima de nós e não vai sobrar cachorro pra fazer salsicha.

Xulé virou a cabeça de um lado para o outro, sem fazer nenhum ruído. Xico entrou de gatinhas no barracão e se agachou atrás da pilha esperando os olhos se acostumarem com a iluminação do ambiente. Xulé, quietinho do lado.

Um bando de homens trabalhava, martelando, colando, pintando, colorindo, afixando plumas e papel laminado. Que beleza estavam os carros. Um, parecia uma floresta, com pássaros de plumagem colorida, outro dourado com um grande sol. Os olhos do menino iam de um lado para o outro, procurando decorar as formas e as cores.

— Pôxa, pensou, não é à toa que Seu Vado tá tão convencido. As alegorias esbanjavam cores, as das escolas, verde e rosa e muito dourado que se esparramava em cascatas de papel laminado e isopor, formando figuras de cavalos alados com asas de ouro, oceanos verdes povoados de sereias também de ouro, peixes multicoloridos e, um vulcão resplandecente de onde iriam jorrar toneladas de confete prateado que subiriam para o céu e caíram como estrelas sobre o povão embasbacado. Xico ouvia a conversa dos trabalhadores, descrevendo o que iria acontecer na avenida e examinava cada detalhe de todos os carros. Estava tão distraído, tão deslumbrado, que nem notou um dos trabalhadores chegando perto dele, para retirar alguma coisa da pilha de material.

— Abaixa, Xulé, cochichou e os dois se esparramaram no chão, tremendo de medo.

O homem nem desconfiou. Cantarolando o samba enredo, chegou até a pilha, abaixou-se e pegou alguns sacos para levá-los, voltando para o seu trabalho. Um dos sacos que estava empilhado estava furado e, com a retirada dos que estavam em cima dele, um pouco de um pó caiu bem em cima de Xulé. Mas. mesmo assim, o cão ficou quietinho. Recebeu um banho daquela coisa e nem se mexeu,

— Vamos embora Xulé, chamou baixinho, passando para o lado de fora do barracão, onde tinha deixado sua caixa de engraxate.

Lá fora, colocou a tábua e o lugar, com muito jeito e cautela para não fazer barulho, escorando-a com uma pedra e correu a mais não poder com o cão nos seus calcanhares. Parou num terreno baldio, o coração pulando dentro do peito, fazendo tum-tum-tum-tum pela corrida e pela aventura, respirou fundo, soltou a. caixa no chão e sentou-se pesadamente ao lado dela. Só então olhou para Xulé. Ele brilhava, focinho, orelhas, um cachorro todo dourado, brilhando até no escuro, dava até pra desfilar como destaque num carro alegórico.

Xico rolou no chão de tanto rir. Mas, e agora? Teria que dar um banho nele. Se ele aparecesse com um cachorro brilhante, cor de ouro, todos iriam querer saber das coisas e, junta aqui, junta ali, logo descobririam que ele estivera na oficina.

Examinou o pelo dele. O pó era diferente de purpurina essa ele conhecia. Era um material bonito, como ele nunca vira igual. Bonito e grudento. Passou o dedo no pelo de Xulé e a coisa grudou que nem visgo nele, não saindo nem quando esfregou o dedo no chão, com força, quase arrancando a pele.

— Preciso tirar isto de cima do Xulé. Vou tentar. Deve ser material das estranjas, pensou.

Mas, dar banho no Xulé era um problema dos diabos. O cão era fedido e ensebado, fugia até de água de chuva. Tinha uma inclinação natural para a sujeita e imundície, lixos e porcarias.

— É companheiro, disse. Dessa você não escapa, senão estamos fritos. Se o Seu Vado botar os olhos em cima de você do jeito que está, o pau vai cantar no nosso lombo.

Dirigiu-se para o riacho que corria lá no pé do morro, um bocado longe. Tirou a correia que servia para carregar sua caixa e fez com ela, uma trela para o pescoço do cão. Xulé, quando viu a água do riacho, desconfiou que alguma coisa ia mal, que ia sobrar pra ele, tentou fugir, mas foi impedido pela trela na mão de Xico. Esperneou, gemeu, ganiu, deitou-se no chão com as patas viradas para cima como morto, lambeu a mão do dono como que pedindo piedade, fez tudo quanto era chantagem para não ser levado pra dentro d'água. Xico, segurando firme, apertando a correia na mão até ficar com a pele queimando, entrou no riacho e arrastou o cão que pulava pra cima dele como um gato, querendo agarrar o braço que o arrastava e subir no ombro dele, fugindo desesperadamente da água. E os dois, cachorro e dono, estatelaram no leito do riacho. Mas Xico segurou firme e não deixou o infeliz escapar. Sentou-se o melhor que pode, enfiado dentro da água fria e gostosa, esfregando o bicho até não poder mais. Esfregava o Xulé com a mão livre com tanta força que os pelos do animal saíam aos tufos, esfregava o focinho e as orelhas quase arrancando a pele do bicho. Xulé latiu, gemeu, ganiu, esperneou, fez o que pode mas foi lavado.

— Pena eu não ter sabonete aqui. Se tivesse eu tirava seu fedor de vez.

Contudo, mesmo com todo aquele estardalhaço, com toda a esfregação e água, o cão em várias partes; do corpo. Onde o pó havia grudado, havia ficado, só havia saído nos pedaços do corpo em que não tinha se agarrado tanto. Pingando, molhado e infeliz, assim que foi solto, Xulé correu para fora da água como diabo fugindo da cruz e rolou na terra que beirava o riacho. Rolou para a esquerda, para a direita, coçou as costas no chão, esfregou o focinho e as orelhas, rolou até se tornar mais parecido com uma pelota de barro do que com um cão.

— Diabo de cachorro porco. Parece que nasceu pra ser fedido e sujo. O primeiro banho que toma e se emporcalha todo. Bem, quem sabe a terra em cima dele vai esconder o brilho de pó que ficou grudado nele, depois de secar.

— 2 —

Xico não contou pra ninguém as maravilhas que tinha visto no barracão. Guardou segredo até mesmo para sua vizinha de porta, a Risoleta, que estava acabando sua fantasia de Porta-estandarte. Estava linda, toda bordada de pedrinhas coloridas e babados, com uma gola enorme de plumas nas cores da escola.

Risoleta gostava muito de Xico. Ela trabalhava numa fábrica de balas e sempre achava um jeitinho de trazer um pacotinho para seu amiguinho. Xico também adorava a mocinha, o amor mútuo era feito de carinhos e agrados. Xico não passava um dia sem ir ver a Risoleta, catava os botões de rosa da praça e trazia os mais lindos para o cabelo dela. Quando ela empunhava o estandarte da "Unidos Venceremos" e deslizava numa cadência faceira, era uma deusa para o menino. Ela e Quelé, seu namorado, bom na bateria e no batuque, às do ritmo, tão bom que, quando começava o seu tique-tum, tique-tum, todo mundo começava a balançar o corpo, mesmo sem querer, eram os grandes amigos de Xico. Mas, mesmo gostando do Quelé, ele sempre dizia para seu amigo ainda maior, Xulé:

— Sabe, Xulé, eu gosto do Quelé, ele é batuta, bom de papo, amigão mesmo. Mas, quando eu acabar de crescer vou casar com a Risoleta, vou tirar minha deusa do Quelé. Aí eu vou tá um gatão, o Quelé já vai ser velho e eu vou chegar para ela e dizer "Pronto já cresci", vamos embora, vamos casar. Tenho até dó do Quelé, coitado, vai até criar um caso comigo, mas eu não vou arredar o pé. Caso com ela. Por enquanto, ele tá tomado conta dela pra mim, é meu amigo, protege a Risoleta.

Pois nem mesmo para sua deusa e seu namorado se atreveu Xico a contar as suas andanças pelo barracão. Guardou segredo absoluto e como Xulé não falava língua de gente, ninguém ficou sabendo da bisbilhotice.

Na sexta-feira, quando tudo já deveria estar pronto para o desfile de domingo e para a grande vitória, Risoleta apareceu na casa de Xico, chorando feito um bezerro desmamado. Era muito cedo ainda, o sol nem tinha saído, mas na casa de Xico todos já tinham saído para o trabalho. Só o menino dormia e foi acordado pela voz aflita dela:

— Xico, aconteceu uma desgraça. Vieram me avisar. Vai chamar o Quelé pra mim.

— Que desgraça? Morreu alguém?

— Os carros alegóricos foram roubados. Roubados ontem à noite.

— Minha nossa! exclamou Xico.

— Como vamos desfilar? Chorava, Risoleta, inconformada.

— Mas como? E os guardas? E os cachorros?

— Me contaram que deram algum remédio pra eles e eles estão dormindo até agora que nem defunto.

— Quem? os guardas?

— Não, Xico, os cachorros. Os guardas levaram uma paulada na cabeça. Ficaram caídos e não viram quem foi.

— Que desgraça mesmo, disse Xico.

— Vai chamar o Quelé pra mim, não vou trabalhar hoje, eu não aguento, chorava Risoleta.

Nem precisou ir atrás do Quelé. Este apareceu com um bando de rapazes da bateria, todos lamentando o acontecido, desanimados, sem saber o que fazer.

— Ô meu, logo este ano que a gente tá fervendo de animação, lamentavam-se.

Logo se formou uma zona na rua, gente chegando pra saber quem tinha morrido, gente gritando nas janelas, ameaçando atirar água se não acabasse a zoeira, as moças das alas chorando, fazendo um escândalo dos diabos. Um rapaz bateu palmas e gritou silêncio tão forte que todos se aquietaram. Alguém perguntou:

— E o Seu Vado? Já sabe?

— Foi ele que deu a notícia. .Os guardas, quando acordaram das pauladas, agora de manhãzinha, correram pra casa dele, respondeu Risoleta.

— É. Agora ele tem carro, não anda mais de bicicleta. Deve tá rodando por aí pra ver se descobre alguma coisa.

— Já chamaram a polícia mas os guardas não sabem como foi.

— Deve ser a campeã do ano passado. Os inimigos sabiam que a gente ia entrar na avenida pia ganhar. Tinham medo da gente.

Cada um tinha uma coisa para dizer, para comentar. E a zona voltou a se instalar na rua, o tempo a passar.

Xico precisava trabalhar. Tomou uma xícara de café com um pedaço de pão, catou sua caixa e chamou Xulé que estava escondido debaixo da cama ... Parecia que ele sabia que, debaixo da terra seca grudada nos fios de seu pelo havia um pó dourado. Olhando bem o cachorro, podiam-se notar grãozinhos brilhantes aqui e ali, onde a sujeita do barro não ia grudado. O menino engraxate, seguido pelo seu cão, que se esgueirava pelos cantos e cabeça baixa, foi para o seu ponto, no centro do bairro. Mesmo com tanta desgraça não podia deixar de ganhar para ajudar em casa. E, enquanto ia engraxando, não saía da cabeça dele a malvadeza que havia sido feita para a turma da escola e para a sua Risoleta, tão animada e certa da vitória. Será que a escola não ia mais sair? Será que ele não veria a beleza da Risoleta no seu vestido de princesa deslizar como uma deusa na avenida? Será que os surdos iriam ficar mudos também?

— 3 —

Quando chegou o sábado, véspera do desfile, as coisas estavam na mesma, estavam pretas. Não se sabia dos carros, não havia ao menos uma pequena pista deles. Parecia um caso difícil toda vida, impossível de ser resolvido.

— Puxa vida, Xulé. Aqueles carros lindos de morrer eram grandes. Como podiam se evaporar, sumir daqui, sem ninguém saber onde andam. Parece até coisa de bruxaria! Quem fez o trabalho, fez bem feito mesmo.

Na hora do almoço, quando Xico já ia recolher a caixa para pegar o grude em casa, Xulé latiu olhando em direção de um Chevete que havia acabado de estacionar do outro lado da praça. Pois não era o carro do Seu Vado? Desde que largara a bicicleta, uns quinze dias atrás, Seu Vado tinha adotado um ar importante de gente rica. Nem parecia mais que marretava todos os dias nas feiras, fugindo dos fiscais. Agora andava todo emproado, numa frescura de dar gosto, rodando pelo bairro no carro que nem era zero, um carro velho à gasolina, parecendo ter o rei na barriga. Todo o bairro comentava que, desde que tinha montado no Chevete branco, Seu Vado já não era o mesmo, ficara orgulhoso, fizera novas amizades com gente metida a sebo.

Um homem com um nariz chato de lutador de box desceu do Chevete, nova amizade do Seu Vado, e foi para o lado de Xico. Seu Vado tocou o carro e sumiu.

— Ei, menino! Quero engraxar.

— Tô indo pra casa, moço, hora da bóia, disse Xico.

— Pago o dobro se engraxar agora.

— Bem, pensou Xico reconsiderando, uma engraxada pelo preço de duas vale a pena fazer uma barriga esperar.

E disse para o homem de nariz chato:

— Vamos lá, seu moço. Pode sentar e colocar o pé.

O Nariz Chato colocou o pé na caixa. Xulé se enfiou debaixo do banco do jardim, com o focinho entre as patas, fingindo dormir.

— Tira a mancha do sapato, garoto.

A mancha. Xicou olhou bem. Xulé esticou o focinho, farejando. A mancha estava ali, muito pequena mas bem dourada e reluzente, do mesmo pó que obrigava Xulé tomar o banho forçado.

— Aí tem coisa, pensou o menino enquanto ia limpando e esfregando. A mancha não saiu. Precisou ser tingida com graxa, pedacinho por pedacinho até desaparecer, deixando por debaixo o danado do pó dourado escondido.

Aquilo não saiu da cabeça do menino. Assim, depois que almoçou, disse para o cão:

— Xulé, vamos investigar. Não vou levar a caixa pra rua. Vamos vigiar a casa do eu Vado. Ele conhece o Nariz Chato. E o Nariz Chato conhece a oficina de onde os carros oram roubados. Se este cara aparecer por lá vamos ver se achamos o fio da meada.

 

— 4 —

O Chevete estava parado em frente a casa do Seu Vado. Lustroso, era lavado . ariamente com uma mangueira e lustrado com cera. Podia ser velho, mas estava muito bem cuidado.

— Venha cá, Xulé, tenho uma ideia, disse Xico.

Xico arrumou um pedaço de pau, caído pelo chão e, com ele, cutucou o porta-malas.

Mexeu por baixo, examinou cada pedacinho. Não era fácil abrir aquela tampa, não dava pé mesmo, iria precisar das chaves. Tornou uma decisão. Pulou o portãozinho da casa do Seu Vado com Xulé no colo, e os dois, de mansinho, se esgueirando e rastejando chegaram à janela escancarada. Seu Vado roncava, estendido no sofá vermelho da sala, sem camisa, o barrigão descendo e subindo. Estava só mas vinha barulho da cozinha ao lado. Lá estavam elas. As chaves do Chevete branco, imóveis em cima da mesa, bem na beirada. Xico se abaixou, pegou Xule, levantando-o Cochichou no ouvido do cão:

— Xulé, tá vendo aquelas chaves? Vou botar você pra dentro. Você pega as chaves e fica de pé na beira da janela. Eu pego as chaves, você volta e espera escondido debaixo do sofá.

Xulé abanou o rabo. Tinha entendido muito bem o que precisava fazer. Com cuidado, sorrateiro, já dentro da sala, pegou as chaves com a boca. As chaves fizeram tilim-tilim e Xulé parou, imóvel como um perdigueiro, esperando Seu Vado acordar. Mas foi um barulho muito fraco e tudo continuou na mesma, por isso foi para a janela e ficou de pé com elas ainda na boca. Assim que Xico tomou posse delas, foi para seu esconderijo e ficou esperando.

O porta-malas aberto, as chaves de volta no lugar, foi só suspender o cão para fora, Seu Vado nem se mexendo no seu sono pesado, roncando gostoso, alheio ao movimento que havia acontecido em volta dele.

A ação tinha sido lenta e perigosa, poderiam ter sido flagrados.

— Credo, se me pegarem vou em cana, pensou Xico. No mínimo pego Febem.

Aberto o porta-malas, Xico enfiou Xulé dentro dele e se acomodou também no meio de algumas tralhas jogadas no fundo. Ficou esperando, espiando por uma pequena fresta, pois havia deixado a tampa meio aberta, porém firmemente escorada, para poder espiar e observar a casa.

Que sufoco! Além do medo de estar ali e ser apanhado escondido, havia o fedor de Xulé que, naquele ambiente abafado era de dar ânsia de vômito.

— Tá loco, SÔ, nunca vi um bicho com nome assim tão certinho! Você fede, hein, amigão?

Os dois estavam quietinhos há tanto tempo que as pernas e os braços de Xico adormeceram. Seu corpo doía e ele, mesmo se acostumando com o terrível cheiro do cão, sentia-se mal naquele abafamento.

— Não aguento mais Xulé. Acho que vou desistir.

Xulé começou a lamber o amigo, com pena dela, tentando agradá-lo. Com ele tudo bem, estava bem acomodado, perto do dono, não sentia nada a não ser sono.

— Na cara não, gritou Xico.

— Tá. bem, pensou Xulé, e lambeu as pernas dormentes do dono. O tempo foi se assando e nada acontecia. Xulé, tão quietinho e acomodado começou a não gostar da Mércia e reclamou dando uns gemidos baixinhos. Ninguém aparecia, Nariz Chato não havia dado, ainda.

Quando Seu Vado saiu da casa e entrou no carro, os dois ficaram mais animados.

— Ufa! Finalmente vai acontecer alguma coisa pra chacoalhar a gente. Acho que o carro vai andar. Segura, Xulé!

Seu Vado ligou o motor, o carro começou a roncar e rodar, chacoalhando de verdade os clandestinos no porta-malas. Tomou a direção de uma rodovia, depois de rodar por algumas avenidas. Olhando pela fresta do porta-malas Xico viu que saíram da cidade e, depois de rodar algum tempo no asfalto, pegou uma estradinha de terra, poeirenta e esburacada, fazendo tudo sacudir ainda mais, a lataria velha, as tralhas no fundo do porta-malas, Xico se agarrando como podia para não bater com o traseiro no fundo e a cabeça na tampa, Xulé rolando de um lado pra outro, se contorcendo e ganindo, um desconforto dos diabos, um barulhão enchendo os buracos dos ouvidos.

Finalmente, o carro parou, uma brecada rápida que jogou os dois para frente e para trás.

— Graças a Deus, disse Xico. Acho que vou morrer. Não. Acho que já estou mortinho. Não estou aguentando mais, acho que tenho algum osso quebrado, meu estômago mudou de lugar, meu pescoço entortou de vez.

Ficou parado, quieto no meio do silêncio, esperando, só ouvindo o barulho dos grilos no meio da noite. Depois, saltou com o cão para fora do esconderijo, pulou e se esticou todo até se sentir melhor e com as juntas das pernas e braços no lugar certo. Olhou em volta e enxergou uma janela iluminada de uma casa pequena de sítio, ao lado de um galpão de onde vinham faíscas de objetos luminosos e brilhantes, visíveis na luz do luar.

— Vamos Xulé, comandou. Vamos examinar aquilo. Aquilo eram os carros alegóricos da "Unidos Venceremos".

O queixo de Xico caiu. Ficou imóvel olhando mais uma vez para aquelas coisas lindas, o sol dourado, os cavalos alados. Ele tinha o corpo todo dolorido. Ainda não estava legal, ainda doía tudo, até a ponta do dedão, mas já que havia começado, o jeito era ir até o fim, principalmente com a grande descoberta que havia feito. Ele sabia onde estavam os carros roubados. Sentou-se nas sombras, com Xulé ao seu lado e esperou um bocado de tempo até passar a sensação de corpo moído, chacoalhado em liquidificador.

Só quando se sentiu realmente bem, pronto para correr se fosse preciso, é que foi olhar o que havia de trás da janela iluminada. Dentro da casa, na maior camaradagem, Seu Vado conversava o Nariz Chato.

— Aqui está o resto do dinheiro pelo serviço, disse Nariz Chato, dando um bolo de notas para o Seu Vado. Bom trabalho, tiramos a "Unidos Venceremos" da avenida.

— É. Foi mole, disse Seu Vado.

Ele contou o dinheiro cuidadosamente e enfiou o bolo no bolso parecendo muito contente.

— Vamos ficar por aqui até amanhã para garantir que nada impedirá o sucesso do trabalho. Tenho bastante cerveja. Como a Escola não vai sair sem os carros você fica aqui para eu ter certeza que não vai se arrepender do negócio e dar com a língua nos dentes.

— Que é isso, ô meu? Sou cara de uma palavra só, respondeu Seu Vado ofendido.

Quando fiz o negócio, topei a parada, era pra valer.

Mas eu fico. Vamos virar umas cervejinhas e jogar um baralhinho pra passar o tempo?

— Assim que se fala, bicho. É pra já.

Xico já tinha ouvido tudo que precisava. Se afastou com muito cuidado na branda dão da noite, iluminada por uma lua camarada, Xulé quietinho nos seus calcanhares, até a estrada de terra.

— Agora é com você, Xulé, ache o caminho de casa.

Xulé entendeu a ordem. Seguiu em frente, farejando aqui e ali, correndo e parando, até chegarem ao asfalto. Já era muito tarde da noite e o caminho para casa era longo. Xico estava muito cansado e a rodovia era perigosa, não dava para correr, mesmo pelo acostamento. Carros passavam velozes, nas duas direções, com faróis enormes que cegavam e iluminaram a estrada sem fim.

— Pera aí, Xulé. Deste jeito não chegamos nunca. Vamos pedir uma carona até a entrada da cidade.

Os dois ficaram parados, Xico fazendo sinais com os braços, mas ninguém parava.

— Vamos andar mais um pouco, Deve haver um posto, um lugar qualquer por perto, eu me lembro que passamos por um. Vamos! em frente marchar!

— Au! Au! Au! respondeu Xulé, abanando o rabo e continuando a caminhada.

— Xulé, você tem certeza que estamos na direção certa? perguntou Xico.

Xico já estava tão cansado que tinha medo de estar andando em direção errada e se perder por aquele mundão. Mas Xulé respondeu com mais dois latidos, sacudiu o rabo e farejou, cheirou o chão da estrada, o chão do acostamento, olhou para Xico como que dizendo é por-aqui-mesmo e trotou na frente. Andaram os dois, sem correr por mais de uma hora; quando avistaram no fim de uma subida as luzes e os luminosos de um posto. A subida foi difícil, Xico quase se arrastando.

O lugar estava cheio de caminhões, carros de passeio, gente comendo, bebendo e conversando. Não foi difícil achar um caminhoneiro amigável para dar carona. E, se não fosse aquele caminhão carregando laranjas para o mercado, não chegariam em casa senão no dia seguinte. O motorista, muito camarada, depois de ouvir a aventura de Xico, mesmo não acreditando muito na conversa do menino, deixou os dois bem perto do bairro onde moraram. Era madrugada quando conseguiram chegar. Mas, mesmo no meio da noite, Xico correu para o porta da Risoleta e quase a botou abaixo com batente e tudo, de tanto esmurrar para acordara moça. Acordou a família inteira e, assim que viu Risoleta, ainda meio dormindo na frente dele, gritou:

— Você não sabe o que aconteceu. Eu sei onde estão os carros alegóricos, foi contando tudo para a moça. Despejou tudo o que tinha acontecido, tim-tim por tim-tim, sem se esquecer de nenhum detalhe, enquanto Risoleta ouvia com os olhos arregalados de espanto, o sono sumido e ela alerta.

Quando acabou, a moça falou:

— Corre, chame o Quelé, enquanto eu me visto.

— Poxa, Risoleta, eu faço tudo, tô moído, tô quebrado, e você manda chamar o Quelé ...

— Meu bem, respondeu ela, não seja ciumento. Eu te adoro. Você foi super corajoso e é meu herói, mas precisamos de um homem para ajudar e o Quelé é bom ...

— Tá bem, disse Xico conformado, sabendo que a sua Risoleta tinha razão. Vou chamar ...

Uma hora depois, o dia ainda não tinha amanhecido, toda a rapaziada da bateria estava reunida com dois grandes caminhões. Xico estava muito feliz, primeiro, tinham acreditado nele, segundo, tinham agido com presteza, tirando todo mundo da cama, componentes da escola e motorista de caminhão. Na verdade, foi uma trabalhadeira dos diabos arrumar caminhões no peito, que todo mundo estava numa dureza de dar gosto, mas a turma era resolvida, estava disposta a tudo.

— Será que estes caminhões vão dar? perguntou Quelé.

— Pelo que vi dos carros, acho que vão, respondeu Xico com ar de entendido e

conhecedor dos carros.

— Bem, resolveu Quelé, a gente volta pra fazer mais uma viagem se for preciso. Todos reunidos, pê da vida com Seu Vado, Xico comandou:

— Xulé, ache o caminho de volta, e rápido.

E para os motoristas:

— Sigam o cachorro! Ele vai pelo acostamento quando chegar na rodovia.

Xulé foi farejando, assuntando, às vezes parava, virou pelas ruas do bairro, atravessou um viaduto, pegou uma via expressa, sempre trotando na frente, com aquela estranha procissão atrás dele. Quando parava para dar uma nova farejada, uma cheirada bem caprichada, aproveitava pra descansar um pouco, o coitado já estava com a língua de fora. Quando acontecia isso, a turma em cima do caminhão, que ia a dez por hora, gritava para o coitado: Vamos? Xuté, pra frente, Xulé. E ele continuava.

Chegando na rodovia, parou, olhou para a esquerda, parou, olhou para a direita, olhou para o caminhão onde Xico estava como que dizendo, e agora? Mas Xulé era um cão decidido, virou para a direita e continuou o caminho, assumindo toda a responsabilidade.

Em cima do caminhão a turma estava no maior silêncio, torcendo para o Xulé estar no caminho certo. Ele estava. Rodaram durante muito tempo, Xulé trotando no acostamento, os caminhões devagarinho seguindo o mestre, e o danado achou a estrada de terra que saia da rodovia e serpenteava no meio de árvores e plantações. Quase chegando na porteira do sitio, Xico mandou parar, comandando a operação de guerra.

— Vamos a pé pra não assustar os dois. Venham atrás de mim, sem fazer barulho. Xico, parecia um verdadeiro comandante. Já não sentia nem mesmo cansado, estava alerta e acordado, o sangue cheio de adrenalina para dar o bote. Ordenados e em fila, o grupo se aproximou lentamente, sem o menor ruído, passando pelo galpão onde os carros estavam alojados, olhando de raspão, admirados, o magnífico sol dourados, os cavalos, as sereias deslumbrantes que brilhavam na semiescuridão. Mas ninguém deixou escapar um ruído de admiração, um comentário sequer. Atrás de Xico, que, corno bom comandante, puxava a fila, dirigiram-se para a casa, ainda tinha a mesma janela iluminada, e pararam quietos na porta, ninguém sabendo o que fazer. Quelé e Xico na frente do grupo fizeram ao mesmo tempo, como se tivessem até combinado, um gesto com a mão, um sinal de vamos em frente pessoal e todos se arremeteram contra a porta que nem trancada estava. Com gritos de mata, esfola, capa, pega, invadiram a salinha onde Seu Vado e o Nariz Chato jogaram baralho na maior paz.

Seu Vado caiu pra trás, com cadeira e tudo, o baralho voando das mãos que nem borboletas. O outro ficou de pé, sem saber o que estava acontecendo, as mãos no ar como que pedindo calma-pessoal-eu-explico-tudo.

Meu Deus, que surra Seu Vado e Nariz Chato levaram! A rapaziada da bateria não fez-cerimônia, bateram com tanta vontade, como se estivessem batendo nos bumbos, nos surdos e nas caixas. Era dente que voava, perna que estalava, osso que quebrava, mão que virava pra trás, nariz sangrando, chumaço de cabelo voando no ar, olho roxo, sangue pintando as paredes, roupa rasgada. Quase mataram os dois que ficaram estendidos no chão, quase pelados, esfarrapados e ensanguentados, imóveis e desmaiados, praticamente esperando os urubus.

Foi preciso Xico colocar a mesa que estava de pernas para o ar de pé outra vez e subir em cima dela com Xulé, um gritando e outro latindo, para os irados membros da "Unidos Venceremos" pararem a ação.

— Chega pessoal, Chega!

Foram parando de bater, ofegantes, chegando para trás, para um canto da sala e espiando os estragos. Não havia móvel inteiro, a não ser a mesa onde Xico estava de pé.

Eles próprios estavam despenteados e desmontados.

— 5 —

— Xulé, amigão, falou Xico. Você não deve estar entendendo nada. Mas está se comportando muito bem.

Os dois estavam passando em frente ao palanque onde estavam todos os membros da comissão julgadora. Estavam em cima de um carro alegórico, num lugar de honra concedido pelos componentes da Escola de Samba "Unidos Venceremos", que fizeram questão de ter os dois com eles enquanto desfilassem.

E, de lá do alto, Xico podia ver a maravilhosa evolução dos sambistas, as alas com fantasias coloridas, a bateria tocando num ritmo perfeito.

Xico sabia que, no meio da multidão que assistia ao desfile, aplaudia a escola e cantava o samba-enredo, estavam seus pais. Estavam orgulhosos dele e permitiram que ele desfilasse naquele dia. Haviam entendido que Xico estava apenas participando de uma festa, de uma festa onde, além da alegria, havia a amizade entre seus participantes.

Orgulhoso e feliz, Xico realizou o seu sonho de estar na avenida, no meio de seus amigos.

— Sabe, Xulé, ele falou, acho que você está ouvindo nada com esta barulheira, esta cantoria e também por causa do batuque da bateria. Mas não faz mal. Faz de conta que você está me escutando, porque eu tomei uma decisão importante. Quando eu crescer vou ser detetive e você vai ser meu assistente.

 

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